Até a próxima!
IX
Deitado
sobre um carpete de estacas, Trevor se sentia perfurado pelas verdades. Ao
redor de si, silhuetas infernais, grotescas e peculiares, movendo os membros
elásticos e tentaculares para todas as direções.
Acima
de Trevor, o paraíso, o Éden. Tinha suas árvores belas, seus frutos suculentos,
suas flores perfumadas e garbosas.
Abaixo,
o inferno, queimando em chamas violentas, onde tudo era o mais puro breu. Mesmo
as chamas eram negras, crepitando como o magma fervoroso a jorrar de um vulcão
ativo, num frenesi incontestável de malícia e perversidades.
O
ceifador estava no meio de tudo, no encontro dos mundos, nas torturas sem fim.
Ali, como muitos chamavam, era o purgatório, o local das escolhas, dos
julgamentos. Naquele jardim de espinhos e lâminas, Trevor era julgado, apontado
por incontáveis sombras de existências, relembrando seus pecados e suas
virtudes.
“Fora
um bom homem.”
“Errara
demais.”
“Está
banhado em sangue!”
“Defendeu
sua própria raça quando poucos ousariam defender!”
“É
apenas um tolo com poderes demais.”
“Um
vagabundo que se aventurava nos sonhos dos outros!”
“Ele
não merece o paraíso!”
As
vozes não paravam. Trevor não queria, mas escutava seu próprio julgamento, a
opinião de inúmeros seres sobre sua alma impura. Faziam-no lembrar de cada dia,
de cada acerto e cada erro, de cada criatura que tombara em suas mãos.
“Ele
é um Sangue Azul!”
Muitas
das vozes se calaram. Predominou aquela aura feminina, exalando uma fragrância
incomensurável, capaz de amaldiçoar padres e seus votos de castidades. Mesmo
sem forma, sem corpo, sua presença era linda e apaixonante.
Naquele
momento, entretanto, ninguém se importou com ela. As palavras eram
surpreendentes demais.
“Sangue
Azul?”
“O
que é um Sangue Azul?”
“Como
ele pôde!”
“Maldito!”
“Esse
homem tem de morrer!”
“Pensei
que não mais existissem tais monstros!”
“Que
absurdo!”
“Tão
belo, mas tão tolo.”
Trevor
girava no lugar.
Falavam
dele. Apontavam-no como um monstro, como um ser pior do que aqueles que caçava.
Era aquilo que diziam, um Sangue Azul, ainda que escondesse a verdade de todos
ao seu redor, de si mesmo, quando possível. Um crime que homem algum seria
capaz de esquecer, de se livrar.
O
maior dos pecados.
“Sangue
Azul.”
Era
aquela voz encantadora e, de repente, só restava ela. Todas as vozes e
presenças e formas assombrosas desapareceram ante aquela criatura, deixaram-na
a sós com Trevor.
O
ceifador gritou.
Como
criança, como menina, gritou pelo
desespero de sua vida. Sabia quem era aquela mulher, sabia que sequer era uma
mulher. Sabia que aquele era seu erro, que ela era a culpada, que ele era
apenas um boneco.
Gritou,
apavorado por seus próprios pecados.
“Saia
daqui!”
“Está
me expulsando, garotinho? Logo eu,
que tanto fiz por você?”
“Saia!
Desapareça!”
Os
gritos ecoavam no nada, destruíam o universo ao seu redor. Logo restou apenas a
voz, o corpo de Trevor e seu sangue, escorrendo por cada agulha que lhe
trespassava.
“Não
posso sair. Não posso desaparecer.”
“O
que você quer?”
“O
que eu quero? Não é simples? Você demorou pouco para descobrir, da primeira
vez.”
“Não
posso te ajudar. Não vou te ajudar!
Não cairei em seus truques outra vez, demônio!”
“Vamos,
Trevor, toda sua pele está suja de sangue! Está sentindo dor? Está prestes a
morrer? Deixe de atuação barata, ceifador, este sangue sequer é seu!”
Não
era. As agulhas eram falsas, um teatro surreal, a dor era apenas fingimento.
Mas o sangue estava lá, cobrindo todo seu corpo, agraciando sua língua com um
sulco esponjoso e quente, o gosto de metal inundando sua garganta seca.
O
sangue era de outro. Mas parte era seu.
“Por
que? Por que isso está acontecendo? Por que?!”
“Porque
você se entregou, Trevor. Porque foi fraco quando mais precisava ser forte.
Porque se rendeu a mim.”
“Eu
não vou me entregar outra vez.”
“Pare
com essa mania de medievalismo, ceifador. Não há heróis em seu mundo. Não mais
restaram os cavaleiros para enfrentar dragões e demônios. São todos homens,
todos tolos, todos fracos.”
“Vá
embora!”
“Aceite
sua verdade, Trevor. Aceite que é um Sangue Azul, aceite sua nova faceta.
Entregue-se ao seu objetivo.”
A
voz então se materializou, era realmente linda. Uma mulher de cabelos negros,
de tez pálida, de olhos bicolores. As tatuagens riscavam seus braços, um
mutirão de cores e formas desenhavam sua pele macia.
Trevor
se apaixonou outra vez.
Choramingou.
“Não
vou... Não quero, não posso... Não vou!”
“É
tarde demais, Trevor. Tudo já está perdido.”
Talvez
estivesse, mas Trevor nunca aceitaria aquilo. Ergueu as mãos, havia entranhas e
vísceras em seus dedos, carne apodrecida abaixo das unhas. Sangue, muito
sangue, escorria por sua pele, manchava as vestes e o solo inexistente, gotejava
com uma melodia horrenda.
“Não
vou permitir que isso aconteça!”
O
mundo ao redor de si se rompeu, despedaçou como uma frágil camada de vidro. A
mulher sorriu com malícia, desapareceu nas sombras. Trevor praguejou.
Acordou
de súbito, suava frio.
Tudo
fora apenas um pesadelo, no fim.
Levantou-se,
caminhou até o banheiro, gritou pelo choque da situação.
Em
seu espelho, escrito com um líquido espesso e asqueroso, encontrou os seguintes
dizeres:
Sangue Azul é aquele que se
relaciona com demônios, que perde sua humanidade, que se entrega aos prazeres
de tais seres. Nunca vou lhe deixar esquecer.
Não
deixaria.
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