Vamos a mais um ato da nova Light Novel do blog?
Não deixem de comentar, é um grande incentivo para a continuação do projeto.
Até a próxima!
VII
Adiel
viu a si mesmo no reflexo do céu.
Desejou
a morte, mas talvez nem mesmo ela seria capaz de fazê-lo esquecer a visão
perturbadora que encontrou naquela devaneio.
Estava
lá, ao mesmo tempo em que estava distante da existência. Dentro do espelho,
dentro de si, dentro de uma verdade capaz de cegar o mais cético dos homens.
“O
que é você, Adiel?”
Falava
consigo mesmo, mas era outro. À frente de si, ele próprio o provocava com
gestos e acenos, expressando sua ironia nos olhos e lábios.
“Eu
sou um homem de valores.”
A
gargalhada ecoou num mundo de quatro paredes.
“De
valores, mas é claro! E quais são seus valores, Adiel? Trair sua esposa,
esquecer-se dos filhos, desprezar a família, encontrar uma amante. Assassiná-la
por carregar um filho seu, fruto de um erro que você mesmo causou. São grandes
valores para um grande homem, meu caro.”
“E
você, quem é?”
“Ora,
que pergunta sem sentido. Eu sou você, tolo.”
“E
por que zomba de meus valores, se faz parte de minha existência?”
A
risada foi diminuta, mas dispersou-se na imensidão de uma planície sombria.
“Não
me envergonho de ser o que sou, Adiel. Sou você, e você sou eu. A diferença
entre nós é que sei aceitar sua podridão.”
“Acha
que eu não posso aceitar estas palavras perversas?”
Procurou
um nome para chamar aquele homem, não encontrou. Era ele, um reflexo, um sósia.
Ele mesmo.
“É
simples aceitar as palavras de alguém, amigo. Difícil é aceitar o que aquela
pessoa é ou representa.”
“Se
você sou eu, afirmo que te conheço. Não há nada que não saiba sobre mim mesmo.”
Desta
vez, a gargalhada avançou até uma tosse súbita e incontrolável. Recobrado de
seu surto, o sósia continuou.
“Quanto
tempo foi casado, Adiel?”
Foi
difícil se lembrar.
“Onze
anos.”
“Onze
anos. É a vida de uma criança, concorda? Bastante tempo. Conheceu sua esposa?”
“Como
ninguém.”
“As
mesmas palavras que ela lhe dizia.”
Antes
de se perguntar como aquele estranho sabia daquilo, engoliu a verdade de que
falava consigo mesmo. Estava louco, sem volta.
“Tanto
faz.”
“Mas
ela estava errada, Adiel. Ela acreditou em você por te conhecer, por confiar em
sua palavra. O que recebeu em troca? Amor? Um casal de filhos adoráveis? Uma
traição desmedida, capaz de destruir toda a vida de uma mulher de valores?”
Engoliu
a saliva com gosto de ácido, deixando o pânico da realidade assombrar seu
olhar. Buscou argumentos, inexistiam. Calado, apenas escutou:
“O
que lhe assegura a sua confiança, Adiel? Você mesmo provou-se errado, traiu a
confiança da mulher que jurou amar! Como pode acreditar que a conhecia? Pior
ainda, como pode acreditar que se
conhecia?!”
Cerrava
os punhos, pressionando sua angústia nas mãos suarentas. Os olhos se perdiam na
confusão daquele momento, a situação fugia de controle.
“Eu
estou ficando louco.”
“Não
está, Adiel. Só está próximo da verdade. Está próximo de si mesmo.”
Adiel
riu sozinho, mas não havia graça.
“Próximo
de mim mesmo?”
Parecia
ironia.
“O
que a bíblia diz sobre nós, Adiel? Sei que conhece a religião, que buscou nela
o apoio quando julgou necessário, assim como todos os porcos da sua raça o
fazem. O que ela fala sobre as crias de Deus?”
Deu
de ombros. A bíblia contava diversas histórias, mencionava incontáveis vezes os
homens e sua procriação. Estranhamente, nada lhe veio à mente naquele momento.
“Não
sei lhe responder.”
“Quanto
orgulho! A bíblia diz que Deus criou os homens à sua semelhança. Algumas
religiões citam que nossas vidas são celestiais, similares aos lacaios angelicais
que serviam ao Senhor. Tenho certeza que já escutou essa história.”
Fez
que sim com a cabeça.
“Pois
bem, elas não estão totalmente corretas. Talvez, num momento ancestral,
tivéssemos a semelhança dos anjos. Criados para a perfeição até o pecado original,
e então servindo de abrigo para todas as desgraças que se seguiram. Nunca
seríamos perfeitos, nunca semelhantes a Deus. No entanto, somos idênticos aos
anjos. Isso lhe deixa feliz, Adiel?”
“Não
faz diferença. Saber se somos ou não iguais aos anjos não altera a minha vida.”
“Então
vamos tratar de um novo assunto. Lúcifer, o grande traidor de Deus, o único
antagonista do teatro bíblico capaz de confrontar o Criador, era originalmente
um anjo, estou certo? Caído pela tentação, tomado pela ganância, ordenhado pela
ambição que assolou os homens logo após sua criação.”
“Está
me rezando uma missa?”
“Estou
te levando à realidade, Adiel. Se Lúcifer, um anjo, cometeu tamanho desaforo
para com Deus, e somos todos nós semelhantes aos anjos, somos capazes de alcançar
alguma conclusão feliz, amigo?”
“Não
entendo onde quer chegar.”
“Palavras
talvez sejam vagas. Partiremos para as imagens, então.”
E
assim foi feito. Adiel, ou aquele que se fazia passar por seu reflexo,
destrinchou-se numa massa sanguinolenta e fétida, que logo começou a se
misturar. Movia-se com lentidão, exalando o odor de pecados, de vontades
pervertidas, de homicídios, estupros e furtos. Cresceu descontrolada, tornou-se
um monstro de asas raquíticas, de carne rubra, de olhos foscos.
Tornou-se
um demônio.
Adiel
tremeu.
“Os
anjos eram perfeitos, Adiel. Mesmo eles foram destruídos pela ganância, pelo
mal. Pelo Diabo. Tornaram-se maus, caídos, anjos negros. Demônios. Eles e sua
perfeição. E os homens e todos os seus pecados? O que se tornariam?”
Tentou
fugir, não havia um caminho.
O
monstro se aproximou, ameaçando-o com garras afiadas, mas muito mais ameaçador
era seu sorriso malicioso.
“Saia
de perto de mim!”
“Não
posso me afastar de você, Adiel, sabe disso. Estarei sempre presente, sempre ao
seu lado. Sempre dentro de você.”
“Não!
Saia de perto de mim! Eu estou endoidecendo, estou vendo demônios, monstros das
histórias que tanto escutei em minha vida! Tudo é falso, são apenas
alucinações! Isso não está acontecendo, não está!”
“Você
não está alucinando, traidor medíocre. Está aqui, à minha frente, rebolando sua
nádega fedorenta que adorava utilizar enquanto fodia a vagabunda da sua amante.
Está aqui, dentro de si mesmo, enxergando a realidade dos homens, a sua
realidade, enquanto hesita com os mesmos lábios que tocavam a vagina da sua
esposa nos momentos em que sua mente pensava na mulher que o satisfazia, não
naquela vadia que carregava seu nome numa aliança!”
“Cale
a boca! Saia de perto de mim, você não é real!”
“Posso
me calar, Adiel, mas pense em tudo o que eu disse. Sou horrendo, grotesco,
tenho de admitir. Você tem cabelos, uma pele agradável, um rosto bem cuidado.
Mas olhe o que você fez! Pense em suas atitudes, em suas ações! Quem é o
verdadeiro demônio, Adiel?”
Era
ele. Ambos eram ele, mas Adiel era um demônio pior do que qualquer outro.
Todos
os humanos eram.
Ali,
dentro do espelho capaz de revelar a verdade, Adiel entendeu que os homens,
nascidos para a perfeição, para a similaridade com os anjos, eram demônios
piores do que aqueles conviventes do inferno.
“Cale
a boca!”
O
demônio gargalhou.
“Adoro
quando você me insulta, Adiel, pois isto revela apenas a sua própria fraqueza!
Aceite-me, homem! Aceite a si mesmo!”
“Saia
de perto de mim! Nunca vou me aproximar da atrocidade de sua imagem! Você blasfema
contra Deus! Sua existência é uma blasfêmia!”
“Tornou-se
um pastor, Adiel? É isso o que quer? Tornar-se o filho da puta de um pastor,
rezar para os pobres coitados enquanto fode suas esposas, come com seus
salários e sustenta uma família secreta de diabinhos sem futuro?”
Adiel
jogou-se ao chão, rolando e soluçando como uma criança desesperada. Cobria os
ouvidos, os olhos, a boca. Queria gritar, mas não queria ouvir. Não queria
escutar sua voz, a do reflexo, ou voz nenhuma. Rezou para ser surdo, cego e mudo,
mas parou de rezar. Sentiu-se indigno para com Deus, se realmente existisse
algo como uma divindade.
“Cale
a boca, por favor, cale a boca!”
“Então
olhe para mim.”
O
ser agarrou as pálpebras de Adiel, abrindo seus olhos com seus dedos
malcheirosos. Aproximou-se, tocou seu rosto com sua nojeira, lambeu as
bochechas daquele homem insano, a pele ruborizada pelo nervosismo.
Adiel
tentou fechar os olhos, falhou.
“Não
pode me obrigar!”
“Veja
a verdade, maldito, veja o que é!”
Choramingava.
“Quem
é você?”
O
demônio sorriu.
“Não
negue sua essência, filhote de rapariga. Eu não sou nada nem ninguém. Nós somos Adiel.”
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