Dando prosseguimento à nova Light Novel do blog Elhanor, trago-vos hoje o segundo ato do primeiro caso de Delirium. Espero que apreciem a leitura, e não deixem de comentar logo abaixo, ajuda bastante nas produções posteriores.
Até a próxima!
II
Adiel
estava no escuro, sozinho. Abraçado às próprias pernas, sentia o corpo todo
tremer descontroladamente, perdido nos devaneios que o assombravam.
(Onde
eu estou?)
Não
conseguia ver a si mesmo, e nada do que o circundava auxiliava na iluminação.
Não havia sequer a penumbra; estava abandonado no mais completo breu.
Então,
uma chama escarlate bruxuleava nas proximidades, irradiando a expressão
pavorosa que aturdia seu rosto. Ela o fazia lembrar sua antiga vida, de quando
tinha uma esposa, uma família, um lar para retornar. Agora, estava sozinho.
Após o divórcio, sentia-se um completo inútil, assistia ao seu enlouquecimento
sem nada poder fazer para ajudar.
Criou
coragem, se levantou. Relutava com esforço para ser obedecido por suas pernas,
que ousavam desafiar o comando de seu cérebro, insistindo para manterem-se
imóveis. Esticando um dos braços para frente, na direção das chamas, Adiel
seguiu com passos hesitantes, tentando não tropeçar em coisa alguma.
Mas
tropeçou, muito antes de alcançar a chama.
(O
que é isso?)
Era
algo rígido, ainda que amolecido por seu pé. A sensação era peculiar, um pouco
nauseante, mas ele não temia. Não olhou para baixo, entretanto. Achava melhor
não saber aquilo que estava atirado no chão.
Continuando
seu caminho, Adiel tropeçou mais uma vez. Escorregando por alguns passos,
trombou de frente com alguém, a pessoa miúda caiu à sua frente.
“Me
desculpe!”
Sua
voz estava diferente, mas tudo estava. Estava ficando louco. Estava perdendo a
noção.
Suas
confirmações vieram quando aquela coisa o fitou.
Num
primeiro momento, parecia apenas uma criança, vestida com um uniforme escolar
manchado por uma lavagem malfeita. Caindo de bruços pela trombada de Adiel, a
garota se levantou, ajeitou a saia de babados, pressionou a mochila em suas
costas.
(Não
preciso ter medo. É apenas uma garotinha.)
Então
se virou, e seus olhos estavam fundos. As pupilas dilatavam cada vez mais, os
cílios despencavam, e logo o mesmo ocorreu à sua pele, soltando-se do crânio
delicado e infantil.
“Você
está bem?”
Sabia
que não, mas não conseguiu evitar a pergunta.
A
criança grunhia algo sem significado, parecia pedir ajuda. Esticou os braços na
direção de Adiel, que recuou temeroso. Os dedos tombaram, um a um se
desprenderam de suas mãos fragilizadas, caíram no chão com suavidade.
Debatiam-se como pequenas minhocas, erguendo-se numa fileira de membros humanos
que tentava desesperadamente escavar o chão inexistente.
A
garota vomitou sangue.
“Oh
merda, o que é você?”
Adiel
queria ajudá-la, mas não podia. Não era um médico, não era nem mesmo um homem.
Não tinha coragem, não tinha vontade.
Correu
para longe, sempre na direção das chamas.
Em
seu caminho, tropeçou em incontáveis outras coisas, não olhava para trás.
Virava a cabeça inconscientemente, via olhos vermelhos, vultos e lampejos.
Chorando, fugia de um mundo de assombrações, todas dispostas a devorá-lo.
O
fogo longínquo era sua única salvação, portanto acelerou com todo seu vigor
para alcançá-lo.
Quando
o fez, descobriu que estava errado.
O
fogo era uma armadilha.
“Merda!”
Lá
estava a garota que se recusou a ajudar. Sem mochila, sem pele, sem humanidade
alguma. A cor cinzenta de seu corpo depredava a visão cética de Adiel,
parecendo um pequeno demônio das histórias, mas aquilo não deveria existir.
Se
fosse apenas ela, Adiel poderia acreditar em efeitos tardios de remédios
antidepressivos, em boas doses de álcool, mas havia mais. Outros, como ela,
infindáveis pequeninos de chifres e cauda, de pele enrugada e mórbida, de olhos
foscos saídos de pesadelos.
Adiel
contou dez, vinte, sua percepção lhe mostrou mais de cem. Jogou-se ao chão,
debatendo-se como criança, implorou por sua vida.
“Não
me matem, por favor! Eu não fiz nada, eu juro, não fiz nada!”
As
criaturinhas se agrupavam ao seu redor, cochichavam algo numa língua incomum.
Algumas carregavam pedaços de galhos disformes, outras tinham metal retorcido
nas mãos.
Apenas
um deles tinha olhos vermelhos.
“Veja
o que fez a sua própria vida.”
Sua
voz era como um guincho, mas suas palavras eram entendíveis. Adiel se ajoelhou
à frente daquele ser, reverenciou de maneira humilhante, sem se importar.
“Eu
não fiz nada, eu juro, não fiz nada!”
“Desistiu
de sua vida, assim como desistiu da vida de um dos nossos.”
A
criatura apontou para o que antes fora uma garota, a mesma que Adiel temeu ao
ver se despedaçar na sua frente. Ela se aproximou, jogou-se no solo, ferida e
encharcada por um sangue azulado e asqueroso.
“Não
demonstrou compaixão ao vê-la morrer, mesmo que tivesse a aparência de uma de
suas crias. O que resta para você?”
“Me
perdoe, eu tive medo! Eu não sabia o que fazer, não sabia como agir! Não sou um
médico, não sou nada!”
“É
um covarde, Adiel. Homens são feitos de carne e espírito. Seu espírito não nos
serve para coisa alguma, nem mesmo serve para você. Resta apenas a carne. Sabe
o que é feito com a carne, Adiel?”
Tinha
uma ideia, mas rezou para estar errado.
“A
carne sem espírito é apenas comida.”
As
criaturas pareciam esperar por aquelas palavras, pois saltaram de imediato ante
a voz de seu líder, salivando pela fome, pela vontade de mordiscar aquele homem
desmerecedor da vida.
Adiel
tentou fugir, tentou correr, mas não podia. A chama que tanto seguiu estava lá,
nos olhos daquele monstro terrível, o mesmo monstro que ordenava que suas
proles devorassem Adiel. Agora, queria correr, se afastar, mas era tarde. Caíra
na armadilha, provara ser indigno da vida que lhe fora oferecida.
Caído,
sem forças para se debater e tentar evitar, Adiel sentia o corpo ser mastigado
por incontáveis bocas esfomeadas. As presas penetravam em sua pele, trituravam
os ossos como um pedaço de papel inutilizado, cuspiam o que não lhes serviria e
retornavam para um novo pedaço. Disputavam um espaço no burburinho que o
circundava, devoravam inexpressivos, banhados pelo sangue vermelho e ardente
que jorrava do que restou de Adiel.
“Parem,
parem! Parem pelo amor de Deus!”
“Você
não era o mais cético, Adiel? Não desacreditou em nossa existência? O que é
Deus afinal, se não um apoio sem forma, lembrado apenas nos momentos mais
desesperadores?”
Enquanto
Adiel pensava em uma resposta, sentiu os lábios arrancados por uma garra
afiada, e logo a língua o acompanhou. Incapaz de gritar ou de morrer, sentia
toda aquela dor, aquela ardência assombrosa e inacreditável.
(Parem...)
Mas
não parariam até que nada restasse. Os olhos foscos não lhes permitiam mentir:
eram demônios. Demônios famintos.
E Adiel era o alimento.
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