Trago hoje um novo conto para o blog. Se trata de 'Na Sombra da Cerejeira', um conto de escola de magia preparado para a antologia Imaginários 5, da Editora Draco, mas que acabou ficando de fora dos selecionados. De qualquer forma, ele estará presente na quinta antologia de publicação independente que logo disponibilizarei, a Dizeres de um Fantasista (nome provisório), mas deixo-o aqui para que possam ler e comentar.
Até a próxima.
Eu me lembro
como se fosse ontem.
Estava lá, em
seus braços, esperando pela carícia delicada de suas mãos, pelo toque suavizado
de sua pele macia. A tez pálida me alisava o rosto, topando contra o abismo de
meus lábios, desbravando a impureza de minha barba por fazer. Eu estava em seus
braços, como sempre sonhei, como sempre desejei para minha vida, no melhor dos
sonhos que poderia sonhar.
Então, o caos, o
distúrbio, as sombras, as trevas.
Nada me restou,
ou talvez restasse tudo. Não ela.
Sem ela, tudo
não me seria o suficiente. Sentei-me nas sombras carinhosas de uma árvore que
antes inexistia. O solo era um gramado gracioso, manchado pelo adubo
artificial, despejado na manhã que há muito se perdera pelo pesado sol que se
exibia no azulão do céu. As raízes sobrepujavam as plantas, surgiam revoltosas
acima de frestas rebeldes, rompiam o chão com a força descomunal da natureza em
ação.
Dentro daquela
paz falsa, o sangue ribombava numa melodia dolorosa, coberto por lembranças de
tempos felizes, acolhidas numa paixão próxima, no amor ideal e visível,
palpável, mas que nada poderia fazer para salvá-la.
Lá estava eu,
tal amor, abraçado à enorme cerejeira que um dia fora minha vida. Debruçado
sobre o caule deformado daquela árvore, enxergava entre as madeixas floridas o
sol puritano, forçando-se entre os cabelos folheados de minha amada. Fazia doer
os olhos, mas nada me doía mais do que o peito, o inchaço do coração como um
incômodo que jamais me abandonaria.
Aquele homem
pagaria por tal ato.
Se o sangue de
minha amada tinha de fecundar junto do solo, seu corpo seria enterrado ali, ao
lado da pureza da minha dama, servindo-lhe como o adubo que a manteria viva
pela eternidade.
***
Antes disso, eu
sabia o que era felicidade.
—Como foi o seu
dia, meu anjo?
A pergunta era a
mesma de sempre, aquela que eu aguardava ansioso após abrir a porta de minha
moradia. Naquele dia, entretanto, ela não veio como de costume, mas surgiu em
minha imaginação. Peguei-me respondendo à alucinação que me surpreendera,
obrigado a sacudir a mente para forçar a compreensão daquele momento. Ela não
estava lá, como sempre estivera. Não perguntara como fora meu dia, pois não
estava em meu lar.
Algo estava
errado.
—Alina?
Esperei por
qualquer resposta, desde uma lamúria de agonia ao gemido de últimos instantes,
ou mesmo um abraço coberto de ternura e aconchego. Contrariando minhas
expectativas, fui recebido pelo silêncio, que me acolheu como um abraço materno
e caloroso, mas seu calor era o inferno. Percebi-me marejar os olhos, engoli o
choro como o faz uma criança temerosa. Por um único momento, senti saudades das
lágrimas. Aos meus trinta e poucos anos, sequer me lembrava qual era a última
vez em que havia chorado. Nunca me preocupei com tal sentimentalismo barato,
não havia choro ou tristeza. Havia maus momentos, obviamente, a vida é sujeita
a coisas similares, de perversão duvidosa. Tristeza, no entanto, era pouco mais
do que um conto de fadas. Ao lado de Alina, encontrei uma felicidade que não
era passageira, uma emoção que me fortalecia, como homem, como pessoa, como
feiticeiro.
Ah sim, talvez
tenha esquecido de dizer: eu, Edgar Monstaville, era um bruxo do contemporâneo.
—Alina, você
está aí?
Parte de mim
esperava que ela não estivesse. Esta seria uma boa opção, afinal, nada
impediria Alina de ter saído para um passeio vespertino, uma viagem rápida até
a padaria ou mesmo um dia de compras, certo? A outra parte de mim, entretanto,
conhecia uma verdade diferente. Alina era paraplégica, ainda que mais
sorridente do que muitas pessoas normais.
Não que ela fosse anormal, muito pelo contrário. O acidente despertara naquela
mulher um conhecimento do mundo, o coma a levara para um tempo e espaço
avariado, e isso a fez forte. Forte na emoção, nos sentimentos, na sabedoria,
mas fraca como pessoa. Incapaz de deixar minha residência sem meu auxílio,
incapaz de viver parte de sua vida sem que meus membros empurrassem o invento
que a permitia caminhar sobre rodas de alumínio. Pior do que isso; forte no
pensamento, mas ingênua como mulher. Fácil de se ludibriar, delicada a ponto de
acreditar naquele que acabou de traí-la, se necessário fosse. Alina era assim,
perfeita e imperfeita ao mesmo tempo.
Eu, entretanto,
era apenas o caos com braços e pernas e olhos confusos e lacrimejados.
—Alina...
Eu falava
sozinho, no fim das contas. Alina não estava ali, não mais estaria. Não saíra
por si própria, muito menos carregada por meus braços. Fora levada de mim,
tirada de meu amor, de meu aconchego. Cheguei a ter dúvidas, oscilar nas
escolhas que faria dali para frente. Dentro de meu cérebro, ainda que perguntas
e mais perguntas explodissem num falso céu de ideias como fogos de artifício de
um espetáculo de fim de ano, ribombava apenas um nome, e não era o de minha
amada. Era o nome que eu odiava, o nome que me odiava ainda mais. O nome que
trouxera à minha vida algum sofrimento, mesmo após a felicidade em forma física
que era Alina surgir em meus dias, incapacitando qualquer dor de me abalar. O
nome de meu inimigo, de meu rival, daquele que jamais me perdoaria por erros
que até mesmo eu já esquecera.
Gwendal.
Eu era um bom
feiticeiro.
Costumava ser
naqueles dias, assim recebi uma oferta irrecusável: lecionar uma classe de
aprendizes, numa escola de magia disponibilizada na Irlanda, uma das últimas de
nossos dias. Raros eram aqueles nascidos com o dom da feitiçaria, ainda mais
raros eram os que, entre estes, conseguiam despertar a centelha do saber, do
produzir, do criar e modificar. Tornavam-se cada vez mais escassos, pois a
tecnologia afastara a mágica de nosso povo, as facilidades desenvolvidas pelo
homem libertavam os humanos do pensamento, da vontade e da sabedoria,
tornando-os escravos de mordomias, servos de um sedentarismo incomum. Assim,
lecionar numa escola de magia era uma oportunidade única e incrível, a chance
de conhecer e lidar com pessoas de dons raros, de talentos que deixariam o mais
cético dos homens boquiaberto. Ensinar aos mais jovens a magia que tanto
admirava era uma coisa que não deixaria passar por meus olhos de maneira
alguma.
Aceitei de
imediato, obviamente.
Alina me deu todo
o apoio, como sempre fizera. Aplaudiu a oportunidade, tão felicitada quanto eu
mesmo, talvez mais. Naqueles dias, já tinha as pernas incapazes sobre uma
cadeira de rodas, mas o sorriso não lhe abandonava o rosto por momento algum.
—Você vai, não
é?
Certamente eu
iria, e logo parti no primeiro trem, deixando para trás memórias de um bom lar,
mas levando comigo todo o necessário para reconstruir uma nova vida: Alina.
Além dela, nada mais era preciso. Teríamos um novo lar, uma nova casa para
mobiliar, uma nova cidade para conhecer. Novos lugares, novas pessoas, novos
ares para aproveitar nossos dias.
Apenas o amor
era o antigo, mas não velho. Renovávamos a cada instante, a cada abraço, a cada
olhar.
Ajeitamos nossas
coisas com certa facilidade, sem frescuras costumeiras de pessoas após uma
mudança inesperada. Aproveitamos de uma boa noite de sono, sonhando com os
momentos que se seguiriam após aquele recomeço. Despertei horas mais cedo,
ansioso pela função que me seria apresentada naquele dia. Alina me acompanhou,
preparou um café delicioso, me deu boa sorte antes que saísse.
Agradecendo às
divindades do plano superior pela alegria que me possibilitavam, parti,
direcionando-me para a escola de magia, onde começaria uma nova vida.
Aquele era o meu
sonho, logo descobri. Recebi os cumprimentos de cada instrutor, eram
feiticeiros de renome, muito mais famosos do que eu seria em toda minha vida.
Um deles era Gwendal, um jovem talentoso que saíra das classes para a profissão
que ocupava há alguns anos. Como todos os outros, Gwendal me saudou.
—Será feliz
entre estes muros, senhor Edgar —disse ele, garboso pela boa educação de seu
povo escocês.
—Certamente o
serei, meu amigo.
Não sabia o que
Gwendal faria naquele instante, mas quem era eu para dizer? Não sabia nem mesmo
o que eu faria.
Ainda hoje, não
sei dizer o que fora pior. Talvez matar Gwendal naquele instante resolvesse as
coisas. Ou apenas faria tudo pior. É bom viver como um feiticeiro na maioria
das vezes. Difícil é viver como humano, aceitando todos os erros.
Decidiram que eu
lecionaria sobre as propriedades dos elementos para uma turma de adolescentes.
Eram nove alunos de partes distintas do mundo, reunidos para que aprendessem
sobre as artes que despertaram durante suas vidas. A grande maioria deles tinha
uma história triste para contar, geralmente é o trauma que nos torna capaz de
utilizar a magia. Morte de parentes, amigos próximos ou parceiros de
relacionamentos malformados eram coisas mundanas, presentes em quase todos os
feiticeiros da atualidade, mas havia gêneros ainda piores como estupros,
moléstia e demais tipos de abusos. O clima daquela sala era sombrio e
silencioso, diferente da minha época, onde todos eram ensinados com risos e
zombarias. Decidi que tinha de fazer algo por aqueles jovens, ou cresceriam como
pessoas reprimidas pela sociedade não-mágica.
—Bom dia, jovens
aprendizes —comecei com um sorriso que não foi retribuído. —Meu nome é Edgar, e
serei o novo professor de elementalismo. Não conheço nenhum de vocês, meus
amigos. Que tal começarmos com uma apresentação?
Ouvi o nome e a
história de cada um daqueles rostos deprimidos. Três garotas, seis garotos,
todos conturbados por vidas e pessoas doentias, familiares jogados na sarjeta
dos não-mágicos ou mesmo feiticeiros dispersos em magia negra e necromancia,
vendidos para as artes da escuridão. Uma garota chamada Nicole demonstrou um
potencial incomum para a mágica, pude dizer apenas por ouvi-la se apresentar.
Era filha de búlgaros, mas falava um inglês fluente, possivelmente melhor do
que muitos americanos ou ingleses. Percebi que teríamos um bom ano de ensino.
Estava enganado,
é claro. Seria um péssimo ano.
Na primeira das
aulas práticas, Nicole se mostrou mais talentosa do que eu poderia esperar.
Enquanto alunos se esforçavam para controlar a chama fora dos candelabros que
disponibilizei, ela facilmente desenhou as suas próprias, dominando o elemento
com maestria. Ao fim, despejou sobre o fogo bruxuleante o extermínio aquoso de
sua feitiçaria, deixando fumegar o dom de seus poderes. Achei aquilo incrível
para uma garota de quatorze anos, logo ela conquistou minha atenção. Tinha
quinze anos quando consegui controlar um pouco dos elementos, e ela o fazia com
primor ainda mais jovem.
Decidi dedicar
mais tempo às suas aulas particulares, e assim o fiz. Uma parte de meus
ensinamentos dirigia-se aos oito feiticeiros aprendizes, e assim eles se
tornavam especialista, cada qual em sua arte
específica. Uma das garotas demonstrou uma aptidão ao vento, enquanto um garoto
admirou o uso das rochas em sua mágica. Discutia com eles os frutos resultantes
das demais aulas, inclusive aquelas oferecidas por Gwendal, o instrutor das
artes teóricas e dos rituais.
Do outro lado,
demonstrava artes avançadas para Nicole, que tentava imitá-las e, para minha
surpresa, conseguia na maioria das vezes, ainda que demonstrasse certa
dificuldade em controlar seus instintos. Seus poderes eram grandiosos, mas não
era capaz de dizer o mesmo de sua responsabilidade. O fogo a queimou por vezes,
assim como a água encharcou suas roupas e seus cabelos, mas ela estava lá,
sempre almejando mais, sempre evoluindo.
—Eu quero ser
uma grande feiticeira, professor —ela me disse num dia qualquer.
—Você já o é,
Nicole —disse com prazer.
—Quero ainda
mais, senhor Edgar. Mais do que nenhum outro já foi.
Era uma ambição
muito diferente do que uma garota de quatorze anos deveria ter. Naquela idade,
em geral, ainda somos crianças irresponsáveis, pensando em conjurar doces e
fazer travessuras com nossos companheiros. Ela parecia confiante, determinada.
De certo modo, senti que havia alguém interessado em seu talento, alguém que a
motivava, forçando-a a continuar aquela trilha de melhorias.
Enquanto
refletia nos corredores da escola, ao término de mais uma tarde de trabalho
singular, Gwendal me abordou.
—Sinto que
também se interessa por aquela garota, meu caro companheiro —foram suas
palavras. Estranhei num primeiro momento, mas não fiz mesura.
—Não demonstro interesse
por uma criança de quatorze anos, jovem Gwendal. Sou casado, tenho uma esposa
linda e amável e uma família para preservar.
—Não falo sobre
este interesse. Sabe bem sobre o talento incomum que encontramos naquela
garota.
—E o que
pretende fazer, transformá-la numa heroína? Quer que ela seja disputada por
feiticeiros obscuros?
Gwendal riu com
gosto, como se zombasse de minha expressão abismada.
—Quero o mesmo
que você, elementalista. Ensiná-la. Heroína ou vilã, pouco me importa. Que ela
seja a protagonista de uma obra de arte, ou a antagonista de um conto de fadas.
Não faz diferença. Quero apenas participar de sua vida, marcá-la como um mestre
marca a seu pupilo, como um fazendeiro marca cada um de seus gados.
—Assim são os
seus pensamentos, Gwendal?
—Há algo errado
nesta forma de pensar?
Dei de ombros.
—Quem sou eu
para dizer?
Eu não percebi,
mas as coisas mudavam ao meu redor.
Nicole aprendia
rápido demais, tornando cada vez mais difícil controlar sua mágica. Em pouco
tempo, ela era um apetrecho bastante útil nas demonstrações que tinha de fazer
diante dos demais alunos, exibindo um controle elemental que eu jamais sonharia
obter, nem mesmo após a maioridade. Disputava em confrontos encantados contra
sua feitiçaria, demonstrando os variados efeitos carregados pelo choque de
energias distintas, mas por vezes me sentia oprimido por seu poder. Tinha de me
esforçar para derrotá-la, o que era incomum, improvável. Eu não era o melhor,
certamente, mas era muito mais velho, possivelmente mais sábio e,
definitivamente, mais poderoso em termos de magia. Mas, a cada confronto,
sentia-me ofegar, enquanto assistia aquela garota exibir meigos sorrisos num
rosto vitorioso.
Certas noites,
quando precisava me ausentar da escola em horários mais tardios, via Gwendal
preparar alguns ensinamentos ousados nos campos da escola. Sua aula não tinha
partes práticas, o que tornava tais hábitos estranhos. Por vezes o via carregar
algo bizarro para as áreas externas, sempre com olhares preocupados, o que
tornava suas atitudes cada vez mais suspeitas.
—Talvez você
esteja possessivo demais —Alina falou com tranquilidade. Ela era uma adulta de
opiniões formadas, confiava em mim como jamais o faria por outra pessoa.
Sentia-me orgulhoso pelo fato de não existir ciúme algum naquele
relacionamento. No entanto, ela sempre estava preocupada com meus pensamentos,
agindo como conselheira nos momentos em que amigo algum manter-se-ia ao meu
lado. —Por que não a trata como uma aluna qualquer? Talvez essa indiferença
faça dela menos egocêntrica, ou piore as coisas. Acredito que valha a
tentativa.
O que Alina não
entendia era que meu erro já estava feito.
Nicole já me
vencia nos embates mágicos, o que era surpreendente. Deixei de lado a sugestão
de Alina, inspecionando a vida de minha aluna mais chamativa durante seu tempo
fora de classe. Sempre estudando nos alojamentos femininos, preparando novos
tipos de poções, trabalhando em feitiçaria muito avançada para sua idade,
Nicole era o exemplo de esforço e dedicação, o que, por vezes, parecia mais
ambição do que força de vontade. Seguindo-a nos corredores, percebi que ela
demarcava os territórios escolares num mapa de origem indizível, como se
planejasse algo muito maior.
A situação se
tornou pior quando, em uma de minhas investigações, assisti a um encontro
peculiar entre Nicole e Gwendal.
—Você está se tornando
uma feiticeira impressionante, Nicole —disse o professor de rituais. Debruçado
numa das estátuas dos campos da escola, escutava a conversa que se seguia entre
os dois, abusando de uma mágica para aguçar meus sentidos. —Cada vez mais me
orgulho de instrui-la.
—Sinto-me
honrada com suas palavras, professor Gwendal —sorriu a garota. —Acha mesmo que
é seguro prosseguir com essa ideia?
—É preciso.
—Gwendal parecia apreensivo em suas palavras, como se estivesse inseguro
perante a decisão que tomara. Olhava de um lado para o outro, constatando a
falta de observadores. Mantive-me invisível aos seus olhos. —Você tem que dar
continuidade a nosso avanço, Nicole. Esta é a melhor oportunidade de se
destacar diante seus companheiros. Mostre sua capacidade, imponha o respeito
que seu talento lhe permite. Abuse do talento que lhe foi atribuído.
Nicole estava um
pouco hesitante, mas assentiu, ruborizada pela situação. Esperei até que
Gwendal a acompanhasse, assistindo de longe enquanto ambos desapareciam na
penumbra.
Alguma coisa
estava muito errada naquela situação.
Semanas mais
tarde, tínhamos uma atividade prática em conjunto. Todos os instrutores estavam
envolvidos, apresentando cada avanço nas matérias específicas de maneira
cordial, seguindo um script preparado por nossa diretora, a senhora Cassandra.
Vestidos como cavaleiros medievais ou magos de batalha, nossos alunos
demonstraram seus maiores talentos interpretativos, seguindo diálogos
combinados em uma cadeia de eventos, com direito a efeitos especiais oferecidos
pela feitiçaria.
Nicole tinha um
papel importante naquela apresentação, mas não apareceu. Outra garota de sua
turma, a desfavorecida Nádia, também abandonara o teatro sem motivo aparente.
Juro que gostaria muito de acompanhar o desfecho daquele evento, mas fui
indicado pela diretora para encontrar as duas alunas, possivelmente perdidas
pela escola que, como uma construção mágica e antepassada, tinha o péssimo
hábito de alterar seu mapa teórico sem aviso prévio. Parti numa busca
aparentemente tranquila, seguido pelo olhar desconfiado de Gwendal, o que,
naquele momento, não me importou.
Seguindo a
trilha mágica de Nicole, mais luminosa do que qualquer outra que já vira na
vida, não tive dificuldades em encontrá-la. Logo constatei que Nádia estava
junto dela, facilitando as coisas. A situação, no entanto, me pareceu confusa
de início, e mais desesperadora conforme entendia o que se passava naquele
local.
—Nicole, não!
Gritei por
instinto, chamando atenção do prodígio dentre os alunos daquela academia
mágica, cujos olhos faiscavam como uma criatura espectral. Tomada por uma aura
corrompida, Nicole se atirava contra o esforço da pobre Nádia, incapaz de se
defender, seja na magia, seja na disputa física que se passava. Nádia era filha
de brasileiros, uma garota bela, de cachos escuros e pele bronzeada, mas com
pouco talento para a praticidade da magia. Era inteligente, estudiosa e
esforçada, mas nunca poderia se comparar com o talento demonstrado por Nicole,
eu sabia. Na verdade, ela também sabia, mas o pavor a forçava a tentar revidar
aquele ataque inesperado, incapaz de ser previsto.
—Professor, me
ajude!
Imaginei, como
qualquer pessoa o faria, que aquela voz pertencia à garota de origem latina,
pois seria ela a mais prejudicada no confronto direto. Surpreendi-me ao notar
que o pedido de ajuda vinha da própria Nicole, entretanto. A aura que a
circundava era seu espírito, o que nós, feiticeiros, entendemos como a
motivação pessoal de cada um, a alma das crenças religiosas. Enegrecia conforme
seu respirar, dificultada por um feitiço poderoso, de um mago perverso,
provavelmente conhecedor das artes obscuras, um dos mais perigosos caminhos da
magia. Aquela mágica era superior à vontade de Nicole, que tentava de qualquer
maneira superar a força avassaladora que a dominava.
—Me ajude,
professor, eu imploro!
—Enfrente isso,
Nicole!
Tentei ajudar
com palavras, mas chegara tarde demais. Os braços de Nicole pressionavam o
pescoço de Nádia, deixando-a arfando na tentativa de manter uma respiração
controlada. Preparei meus encantos elementais para tentar afastá-las, mas
hesitei, temendo ferir uma de minhas alunas, e a mágica enfraquecida por meu
temor sequer foi capaz de trespassar os escudos sombrios que protegiam Nicole.
Corri até elas, o fogo sombrio me queimava os braços e os tornozelos a cada
passo. Agarrei os ombros de Nicole com minhas mãos, a ardência me torturou como
magia alguma antes fizera.
—Escute a minha
voz! —tentei alcançar sua perdição aos brados. —Volte para mim, Nicole! Você
precisa enfrentar essa maldição que a assola!
Mas já era tarde
demais. Encontrei em seus olhos brilhosos uma treva que me amedrontou, uma
sombra capaz de engolir todo o mundo. Aquela garota tinha um talento sem igual;
seria de extrema importância para nosso mundo, caso dedicasse seu conhecimento
na criação da magnificência da cura ou coisa similar. Seria alvo de feiticeiros
da malícia, obviamente, um troféu almejado por incontáveis bruxos do
contemporâneo. Eu poderia tê-la ajudado, talvez. Poderia ter me esforçado mais,
usado todo meu poder, sacrificado parte de mim para impedir aquela destruição
que corroía o espectro daquela garota, transformando-a numa criatura poderosa,
mas descontrolada.
Pensei em Alina,
em tudo o que teria que deixar para trás. Valeria a pena?
O mundo ou minha
família?
—Me ajude,
professor! —implorava ela, com suas mil vozes agressivas e disformes.
Tive segundos
para tomar uma decisão que poucos homens seriam capazes de tomar. Heróis
optariam pelo sacrifício, pela morte honrosa que seria capaz de abolir tamanha
atrocidade feita àquela garota, impedindo-a de se tornar o ser vil que grunhia
o desconhecido sobre o corpo de uma colega de classe. Eu, no entanto, não era
um herói. Jamais morreria para salvar alguém além de Alina, não poderia
deixá-la sozinha naquele mundo terrível em que vivíamos. Ela precisava de mim,
de meus braços para carregá-la, de minha mente para ajudá-la nos problemas, de
meu coração para garantir amor àquela vida de amarguras e dores.
Hoje acredito
que a situação seja inversa; na verdade, sou eu quem precisa de Alina.
De qualquer
maneira, Nicole era forte demais, mas naquele momento, estava enfraquecida. Se
continuasse daquela maneira, Nádia morreria, e eu seria a próxima vítima. Não
poderia me defender de um ataque direto, tinha o conhecimento disso. Precisava
agir rápido. Era minha única chance.
—Eu sinto muito,
Nicole —e baixei os olhos.
—Professor, eu —
—Eu sinto muito
Abusando dos
elementais que controlei durante tanto tempo, extingui toda a vida que habitava
aquele corpo ingênuo e despreparado.
Nicole morreu em
minhas mãos e, em seu lugar, nascera uma muda de cerejeira.
Afastei-me da
escola, e logo decidi que não mais voltaria. Nunca mais me sentiria apto a
tomar responsabilidade por outros aprendizes, ainda que o número de feiticeiros
se tornasse cada vez mais escasso. Alina me apoiou, sempre com carícias
destinadas ao meu auxílio, disposta a mimos que me faziam esquecer o trauma
daquele ato. Era algo que nunca me abandonaria, certamente, mas teria de
superá-lo de algum modo.
Esse modo era o
convívio com Alina.
Durante meses,
esqueci-me da magia. Vivi como um homem comum, ao lado de uma mulher
fantástica. Alina tinha seus problemas, mas estava sempre risonha, o que
tornava possível esquecer qualquer empecilho que me afrontasse.
—Eu te amo,
Alina —repetia todos os dias, e era pouco se comparado ao merecido por aquela
mulher.
—Eu te amo ainda
mais, meu anjo —ela respondia, sempre sorridente, sempre carinhosa. Sempre
perfeita.
Até que alguém
bateu à porta.
Morávamos numa
casa afastada da civilização, próximos a uma fazenda que criação alguns animais
para a colheita de alimentos e distribuição nos pontos mais movimentados
daquela região. Nossa residência, entretanto, era pacata, esquecida pelo povo
que nos circundava. Recebíamos poucas visitas ao longo de um ano, portanto,
cada batida na madeira envernizada da entrada de nossa moradia parecera
surpreendentemente incomum.
—Eu atendo
—avisou minha esposa, mas senti algo estranho arrepiar meu corpo todo. Um
sentimento exótico, similar a uma previsão sombria e gélida. Era magia.
—Alina, deixe
que eu —
Um único grito
fez desaparecer minhas palavras, e a frente de minha casa explodiu pelo desejo
de um único homem, ou daquilo que restara de sua consciência. Gwendal se postou
em meu lar como um invasor, e cada passo forçado para o interior de minha
privacidade destruía aquilo que o circundava, do solo às paredes e então o teto
trabalhado com telhas simplórias.
—Gwendal!
—gritei, e ele gargalhou. Abriu os braços como um lorde, espalhou os destroços
de minha casa para os ares, deixando a grama servir de palco para nosso
confronto.
—Ora, se não é
meu caro companheiro de aulas, o nobre instrutor elementalista, senhor Edgar
Monstaville! —Sua voz, assim como ele próprio, estava destruída, enlouquecida
por uma mágica aterradora. —Cacei-o por muito tempo, maldito. Hoje, trago a
você aquilo que me trouxe.
Pouco escutei de
suas palavras. Preocupava-me o corpo de Alina, despejado de sua cadeira de
rodas, inerte aos pés daquele mago em demência. Vi-a respirar uma única vez, me
aliviei. Ainda vivia.
Com os braços
para cima, fiz o fogo e a água e o vento ruírem na direção daquele monstro
caótico, destroçado pelo turbilhão terrestre que o assolou após toda aquela
mágica canalizada. Na neblina dos destroços, restara sua gargalhada.
—Esta é a minha
vez de te fazer sofrer, Edgar —ouvi-o dizer. —Pela morte de Nicole, minha amada
filha. Por escolher o caminho do fracassado quando teve a oportunidade de
trilhar o rumo do herói. Por acabar com a vida daquela que seria a maior
feiticeira de todos os tempos.
Era ele, no
final das contas, o responsável pela aberração que se tornara Nicole. Ele era o
feiticeiro que corrompeu o espírito daquela garota, que a tornou um ser capaz
de ferir uma de suas amigas. Gwendal era o verdadeiro inimigo.
Aquele que me
obrigou a matar uma inocente.
—Se é o que
deseja, me enfrente!
Ele sorriu. Eu
congelei.
—Não vou
enfrentá-lo agora, Edgar. Pagará com a mesma moeda de meu sofrimento.
Tentei gritar,
mas foi em vão. Gwendal era um feiticeiro melhor do que eu; não fui capaz de
impedi-lo. Explodi em rajadas e encantos, mas ele não se importou. Juntamente
da melodia de todos os meus feitiços reunidos, escutei o grito da morte de
minha amada, e então tudo silenciou.
Gwendal fugira.
Restara apenas a
sombra de uma enorme cerejeira.
Eu perdi tudo,
pois tudo era somente Alina.
Ela foi tirada
de mim, assim como Nicole fora tirada de Gwendal. Havia decidido, uma vez
antes, que não mais voltaria à magia. Não seria professor, não seria
feiticeiro. Viveria ao lado daquela que amava, faria de tudo por ela, como um
homem comum. Este era o meu maior
desejo, no final das contas.
Mas a minha
oportunidade fora levada por um tirano.
Afastei-me da
cerejeira sem olhar para trás. Vinte, talvez trinta anos, não sabia mais contar
quanto tempo desde a última lágrima. Elas vieram de súbito, gritantes pelos
túneis de meus olhos, jorrando sobre meu rosto tristonho como uma cachoeira de
sentimentos perdidos. Deixei-me chorar ali, na sombra da cerejeira, até que
toda a minha saudade se tornasse lágrima, até que toda a minha dor enxaguasse
as raízes da árvore que representava —e para sempre representaria —Alina.
Ao fim do que me
pareceram séculos, limpei o rosto com as vestes, estudei a destruição que um
dia chamei de lar. Consertei os estragos com a mágica, reuni os destroços e os
dispersei pelo mundo. Não mais precisava de uma casa, talvez nunca mais viveria
em uma. Seria um nômade vingativo, um caçador sem lar, sem família, sem uma
vida para retornar. Gwendal era meu inimigo, não havia aliados. Tinha comigo o
amor de Alina, e apenas isso.
Nada mais me
importava. Cerrei os punhos num frenesi momentâneo, mas logo me acalmei. Em
nome de Nicole e de Alina, Gwendal pagaria por seus atos, pagaria por destruir
a minha vida daquela maneira.
Deixei para trás
a sombra da cerejeira, decidido a não retornar enquanto houvesse uma finalidade
em minha vida.
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