Domingo, dia de descansar, de sentar um pouco na frente do computador e ler alguma coisa, certo? Trago hoje para vocês mais um ato da Light Novel Delirium, chegando agora perto do fim do primeiro caso. Não deixem de comentar e criticar!
Até a próxima!
VIII
Trevor
gritou como um guerreiro.
A
foice cortava impiedosa, destrinchava as coisas e os demônios, feria a carne
gosmenta e asquerosa do gigantesco feto que o enfrentava.
A
víbora guinchava algo em seu estômago, parecia uma ordem. Subitamente, vomitou
outras incontáveis serpentes de carne e nervos, a lâmina curva mostrou a cada
uma delas seu fim precoce. Os braços eram decepados, revigoravam-se com uma
mágica macabra, aproveitando-se da carne dos seres que sobreviviam.
Eram
muitos, infinitos, poderosos. Trevor não parava de matar por um minuto sequer,
sempre atacando, sempre avançando.
O
Sangue Azul borbulhava.
“Está
nervoso por minhas palavras?”
A
assombração sabia provocar, sabia enfurecer.
Trevor
sabia ferir, sabia matar.
Ambos
faziam aquilo que sabiam fazer de melhor.
“Ordeno
que me diga quem é você!”
“Você
não é meu mestre, Sangue Azul!”
“Não
me chame por este nome! Quem é seu mestre?”
“Não
lhe devo explicações!”
“Ordeno
que fale, ou vou matá-lo!”
O
monstro sorriu, parou de lutar. Abriu os braços, não atacou, não se defendeu. A
víbora em seu corpo se aquietou, a pele se soltou por inteiro, deixando sua
carne avermelhada pulsar.
“Então
mate. Mate a criança que enfrenta, doutor Kraepelin. Sei que sente tesão ao
matar pessoas que não podem se defender.”
“Cale-se,
filho da mãe.”
Não
golpeou.
“Por
que deveria, se me divirto tanto com seu desespero? Por que deixaria de
assistir seu pavor, seu descontrole, se nada me impede de gargalhar de sua
fraqueza? Mas estou aqui, Trevor. Sou fraco, sou incapaz. Sou apenas uma
criança. Quer se livrar destas lembranças, destas provocações? Apenas me mate.”
Agitou
os braços, sinalizando para o golpe que esperava. Tinha confiança nos olhos,
segurança na expressão. Sabia, no fundo, que o ceifador seria incapaz de
matá-lo, pois não tinha suas respostas.
Estava
errado.
Trevor
atacou, degolando seu oponente, estripando-o com sua foice sem pensar duas
vezes.
Ofegava.
“Aquilo
que não me faz bem, me faz mal. Aquilo que me faz mal não deve existir.”
Um
antigo lema, de tempos remotos. Falou para si mesmo, pois ninguém estava lá
para escutá-lo. Nenhuma coisa, nenhum demônio. Sozinho, viu-se na imensidão,
nos devaneios de mais um paciente.
Ao
longe, Adiel agonizava.
“Merda.”
Correu
até ele, trazendo-o para seus braços. Adiel espumava pela boca, os olhos
virados e a língua enrolada, uma epilepsia inesperada.
Viu
sua verdade, mas não era forte o suficiente para suportar.
“Não
morra, Adiel! Você está a salvo, está livre de sua loucura! Não morra agora!
Fique aqui, enfrente essa verdade, suporte-a!”
Adiel
não se esforçou. O corpo manteve-se ali, impassível, mas a mente foi corrompida
pela realidade que homem algum conseguiria suportar. Esmagada como um papel
fora de uso, sua consciência se perdeu incontáveis vezes, mudando de forma a
cada retorno. Era Adiel, mas nada restava daquele homem. Apenas um rascunho, um
resto, um mísero recipiente para carregar órgãos, mente e espírito.
Viveria,
destruído pela verdade, como todos os outros.
Quase
todos.
Trevor
o abandonou no chão. Distante de sua força mental, Adiel livrou-se do efeito do
espelho, retornou ao consultório do doutor Trevor. O psiquiatra estava lá, sem
foice, sem poderes, sem coragem. Era apenas um homem, buscando o tratamento
para um trauma inexplicável.
“Como
se sente, senhor Adiel?”
Adiel
salivava. Limpou os lábios, esfregou os olhos. Estava acabado.
Mas
estava livre.
“Eu
estou bem, doutor.”
“Tem
certeza?”
Não
tinha. Na verdade, pouco sentia de sua própria existência, da vida que restara
naquela marionete de perversões. Culpava-se por seus atos, ainda que não se
recordasse de muitos deles. Alguns nomes estrondavam em sua mente: Annabeth,
Mariza, Brian, Angelina. Nada daquilo fazia sentido. Era simplesmente um nada, uma memória vaga, uma lacuna em
sua mente.
Uma
lacuna dolorosa.
“Sim,
doutor Trevor.”
“Acredito
que, de agora em diante, não mais será assombrado por seus devaneios. Temos um
prazo de retorno, se achar necessário. Posso lhe escutar mais uma vez, se for
preciso. Estarei sempre aqui, disposto a lhe ajudar.”
“Agradeço,
doutor Kraepelin.”
Trevor
tentou sorrir com simpatia, mas seu sorriso surgiu um tanto quanto perturbado.
Aquele
era mais um paciente livre de seu problema, de seu assombro, mas o preço era
alto demais. Poucos tinham o suficiente para pagar.
E
Trevor se martirizava por isso.
“O
que pretende fazer agora, senhor Adiel?”
“Viver.
Não sei. Sinto como se não tivesse vivido até o presente momento. Sinto como se
devesse algo ao mundo, e algo muito maior a mim mesmo. Quero viver.”
“Não
pretende se entregar à polícia, então?”
Adiel
franziu o cenho, confuso.
Não
se lembrava da morte de Mariza, muito menos da atrocidade que fizera para com
seu próprio filho.
“Por
que faria isso?”
Trevor
riu, sem graça.
“É
verdade. Por que você faria isso?”
Assim,
Trevor acompanhou Adiel até a saída, guiando-o sem mesuras ou conversas. Adiel
encontrou as crianças brincando nas ruas, não se incomodou. Estava curado,
distante do trauma de seu crime, do assombro do aborto que fizera, da morte
sanguinolenta que o culparia pelo restante de seus dias.
E,
mais do que nunca, estava louco.
Louco, como todos os homens
são.
Nenhum comentário:
Postar um comentário