Que tal mais um ato da Light Novel Delirium aqui no blog, hein? Trago-vos hoje o quarto ato do primeiro caso, e espero sinceramente que estejam gostando das coisas até aqui. Realmente, agora as coisas começam a apertar para o nosso pobre 'psiquiatra', mas enfim, vamos ver como ele se sairá dessa vez, hehe.
Até a próxima!
IV
O
ar era outro, denso e pesado. As cores eram outras, pois o céu era cinzento, a
terra era pálida. A vida era outra, pois não eram homens, não eram animais,
apenas coisas que viviam.
O
mundo era outro.
(Onde
eu estou?)
Adiel
se levantou. Estava caído num deserto de devaneios, perdido numa planície vasta
e descrente, onde apenas ele parecia existir. Ele e aquelas coisas vivas, com
formas que desafiavam a lógica e capacidades que ousavam não se submeter à
mísera credulidade dos homens.
“Que
lugar é este?”
Eram
apenas coisas, com pernas e braços e tentáculos, algumas garras e presas,
outras com escamas e guelras. Coisas.
Entre
as coisas, Adiel viu sua esposa.
Não
era bem sua esposa. Tinha seu rosto, seus olhos, sua alma, mas era uma das
coisas também. Aproximou-se, rebolando o corpanzil gelatinoso, arrastando
estacas de metal fincadas à sua coluna invertebrada, o que produzia um cântico
torturante.
“Pare!”
Mas
a coisa-esposa não parou. Movia-se revoltosa, sacudindo os braços gosmentos
acima da cabeça disforme.
Parecia
prestes a atacá-lo, mas não o fez.
Fez
pior.
“Eu
te amo, Adiel. Temos dois filhos lindos, uma vida perfeita! O que fez para si
mesmo?”
“Eu
não fiz nada.”
“Ainda
se acha capaz de me enganar, Adiel? Convivi ao seu lado durante todos estes
anos! Conheço suas expressões, a mudança de seus olhos, de seus cílios!
Acredita mesma que pode mentir para mim?”
Sabia
que não podia, e era o que menos desejava fazer.
“Me
desculpe.”
“Desculpar?”
“Por
nossos filhos, Annabeth.”
Annabeth.
Por pouco não esquecera o nome da própria esposa. Não o mencionara a Trevor,
pois não o lembrava. Ali, surgiu entre suas palavras com naturalidade, sem
aviso. Por sorte, ou talvez destino. Apenas surgiu.
Annabeth
fora uma mulher linda, de pele bronzeada e cabelos curtos. Tinha olhos
sinceros, curvas medianas, atitudes de uma verdadeira mãe.
E
Adiel a traiu.
“Por
nossos filhos?”
“Sim.
Me perdoe, para que possamos continuar juntos. Dar a eles uma vida boa e...”
“Você
quer que eu faça esse sacrifício por nossos filhos?”
“Sim.”
“E
por que você não pensou neles antes de se enfiar naquela vagabunda de vinte
anos?!”
A
dor era a mesma de uma espada em seu peito, mas eram apenas palavras. Sentia o
suor deslizar pelo rosto, as mãos estalavam os dedos compulsivamente.
“Eu
sinto muito.”
“Sente
muito? Por que não explica isso a eles, então? Por que não diz aos seus filhos
que sente muito? Que traiu a mãe deles, a mulher que sempre disse amar, para se
aventurar com uma garotinha!”
“Pare,
Annabeth.”
“Por
que não conta a eles que abandonou sua família por um caso, Adiel?”
“Eu
não fiz isso!”
“Ah,
não fez, é claro! Você não nos abandonou! Esperava sinceramente que eu
aceitasse sua traição como um erro qualquer, como perder o troco na padaria,
como beber além da conta numa mesa de amigos. Pobre Adiel, sempre tão ingênuo!”
“Pare
com isso, Annabeth, eu já disse que sinto muito!”
“Então
diga a eles.”
A
coisa rodopiou furiosa, despejou parte de si para os lados, entre as outras
coisas sem importância. As peças gelatinosas se deformaram até ganharem rostos,
olhos, bocas, e então uma série de atrocidades à natureza. Não deveriam ser,
mas aqueles dois eram seus filhos.
Esperou
que seus nomes voltassem à sua mente de imediato, não aconteceu. Enganou-se,
dizendo que se livrara daquelas lembranças para evitar uma dor maior. Mentia,
mesmo para si.
Era
um idiota.
“Meus
filhos.”
“Você
não é nosso pai.”
O
garoto se chamava Brian, a voz trouxe a memória de seu nome. Saudável, valente,
dotado de uma energia que poucos seriam capazes de possuir. Cresceria como um
atleta, possivelmente um dos melhores.
“Nunca
mais será.”
A
menina era Angelina, levemente morena, de cachos esplendorosos. Era
inteligente, tinha facilidade nos estudos. Mais velha que Brian, seria o
exemplo para o irmão, mostrando-se apta a uma faculdade na primeira tentativa.
Ou
talvez aqueles destinos já estivessem destruídos pelo martírio causado por
Adiel.
Ambos
os nomes herdados da mãe, carregados pela essência americana da estrangeira.
Adiel apenas concordou na escolha, pois não era bom com nomes.
Talvez
não se importasse.
“Você
é uma desgraça.”
“Estragou
nossas vidas!”
“Estragou
a vida da mamãe!”
“Você
não presta, papai!”
“O
senhor não é um homem!”
“Traidor!”
“Mentiroso!”
“Não
consigo mais acreditar em você, nunca mais!”
Doía,
mas o que poderia fazer? A culpa era dele. Então, como uma vez fizera em sua
vida, abandonou-os. Cansado de escutar seus filhos e sua esposa, cansado de
escutar o mundo, Adiel se reclusou.
Mas
ela estava lá. Sempre esteve, nas horas boas e ruins, ainda que aquela fosse
uma péssima hora.
Atrás
de si, a amante.
Uma
coisa com seu rosto, nada além disso, mas era ela. Para sua surpresa,
lembrava-se de seu nome: Mariza. Lembrava-se do nome da amante ocidental, mas
não o de sua família.
A
coisa-amante se movimentava com lerdeza, arrastava um estômago inchado com
pesar. Os olhos lacrimejavam.
Adiel
assistira àquela cena uma vez.
“Adiel.”
Ela
chorava.
“O
que aconteceu?”
“Eu
estou grávida, Adiel. Vamos ter um bebê.”
Atrás
de Adiel, sua família desmoronava. As coisas dissolviam-se em dor, guinchavam
de maneira ensurdecedora. Aquele estrondo infame e estridente atordoou seus
sentidos, impedindo-o de escutar a voz de Mariza quando seus lábios asquerosos
se moveram.
“O
que disse?”
Ela
repetiu, sem se importar.
“É
um menino, tenho certeza.”
“Não!
Pare, Mariza, isso está errado!”
“O
que está errado, Adiel?”
“Esse
filho! Esse caso! Está tudo errado, Mariza!”
“Não
entendo, Adiel. Caso? Está se referindo...”
“Sim,
Mariza, estou me referindo a nós. Foi apenas um caso, um erro. Tenho uma
família para cuidar, tenho meus filhos!”
“Você
não tem mais uma família, Adiel, e nunca mais terá uma se recusar minhas
palavras. Há um herdeiro de seu sangue em meu corpo, seu cretino, como consegue
pensar na bastarda de sua esposa agora?”
“Como
ela descobriu?”
Ele
sabia a resposta.
“Eu
contei a ela! Ela precisava saber! Eu estou grávida, Adiel! Grávida de um filho
seu!”
“Você
não terá esse filho!”
“Está
sugerindo um aborto?! Jamais faria algo do tipo! Não sou uma assassina, idiota!
Não tive apenas um caso com você, insolente! Pense nas pessoas, pense um pouco
mais naqueles que o circundam, egoísta!”
Mas
era tarde demais para pensar nos outros. Adiel já assistira àquela cena, vira
as consequências, mas tinha de ser feito. Ali, naquele mundo, apenas reproduzia
os diálogos reais, as atitudes e ações, assistindo as verdades oriundas de suas
próprias palavras.
Entendia
sua própria ignorância, desprezando a si mesmo por agir como um covarde.
Ainda
assim, repetiu seu ato banal: saltou por sobre Mariza, buscando na força sua
forma de convencê-la a escutar suas vontades.
“Eu
te amo, Mariza, assim como amo Annabeth e meus filhos!”
Lutavam.
“Você
disse que amava apenas a mim!”
“Eu
errei, me perdoe!”
“Nunca!
Teremos um filho, Adiel!”
“Você
não vai ter esse filho!”
“Eu
não farei um aborto!”
“Então
eu farei para você!”
Estava
fora de si, agia como um louco. Algo inundou seu corpo, um desejo sanguinolento
que não fazia parte de sua consciência. As mãos encontraram uma faca afiada,
usada para cortar as peças mais largas de carne, estocou sem piedade no
estômago de Mariza.
“Você
não pode fazer isso!”
“E
você não pode ter esse filho.”
Rasgou,
de cima para baixo, abriu a barriga inchada sem perder tempo com remorsos. O
sangue jorrou da coisa, como jorrara antes da própria Mariza. Destruiu o que
havia dentro de si, o que acreditou ser o feto.
A
coisa vomitava sangue, como antes vomitou sua amante. Gritava ameaças, prometia
contar a verdade aos policiais, denunciá-lo.
“Cale
a boca!”
E,
para que se calasse, Adiel cortou sua língua.
Na
verdade, não era Adiel. Havia outra coisa dentro de seu corpo, aproveitando de
suas vontades para abusar de sua força, se divertir com aquela brutalidade
desumana. Assassinou, em seu nome, escondeu o corpo da coisa no subterrâneo.
Não
havia amante, não havia filho.
Mas
o aborto lhe custou a sanidade, apresentando um castigo diferente: um assombro.
Surgiram
outras coisas, muitas delas, nenhuma tinha rosto. Entre elas surgiram crianças,
demônios como os que via em seus pesadelos, entoando cantigas antepassadas com
vozes macabras. Era uma multidão, um exército de guinchos e ameaças e dor.
“Eu
perguntei se você tinha algo para me contar, senhor Adiel.”
A
voz vinha do meio da turba. Um homem de trajes elegantes, presente em seu
devaneio com uma naturalidade fora do comum. Assistia àquelas cenas há tempos,
sabia toda a verdade. Ainda assim, mantinha-se impassível, frio, sólido como
uma rocha congelada.
Nas
mãos, uma foice colossal, preparada para curar
qualquer paciente que necessitasse de sua ajuda.
Trevor.
“Não
se deve esconder nada de um psiquiatra, meu caro.”
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