Se você não sabe o que é uma Light Novel, veja ESTA POSTAGEM. Se não conhece as outras histórias disponibilizadas aqui no blog, confira agora mesmo: A Balada do Caçador; Delirium e Desejos de Juno.Todas elas também podem ser encontradas na aba Textos, na parte superior do blog. Para outras informações e postagens, confira a tag Light Novel aqui do blog!
Mas vamos ao que interessa!
Fiquem agora com a primeira parte de Estranhos no Espelho, e tenham um excelente começo de ano!
Parte 1
UM OUTRO MESMO LUGAR
I
Naquela
época, eu tinha vinte e seis anos e uma vida toda pela frente.
Ao
menos era o que pensava.
—Papai!
Aquela
não foi a primeira palavra dita por minha filha, infelizmente. Madeleine chamou
pela mãe, como as filhas sempre chamam. Eu tinha apostado e, consequentemente,
tive de oferecer uma viagem à Marrie Fulcanelli, a minha esposa. Não era bem um
prêmio perdido, mas enfim, eu tinha de fingir estar triste.
Na
realidade, eu era um adolescente no corpo de um velho. Ou talvez fosse o
contrário. Eu era um ranzinza no corpo de um jovem. Trabalhando na agência
bancária desde tantos anos atrás, não sabia mais dizer se fazia aquilo por
gosto ou necessidade, mas fazia. Tinha de ser feito. Pessoas dependiam de mim,
e aquela era uma desculpa agradável para se utilizar.
—Senhor
Victor.
Era
um sussurro. Eu me virei, encontrei o rosto tranquilo de minha secretária.
Naqueles dias, todo mundo sussurrava, pois não havia voz em nossas gargantas.
No lugar desta, havia medo. Um medo peculiar, incômodo, o pior medo que o ser
humano pode ter: medo do desconhecido.
Medo
de desaparecer.
Os
desaparecimentos eram constantes e frequentes. Começaram em casos isolados, uma
pessoa aqui, outra lá, semanas mais tarde. Mas, nos últimos meses, as coisas
pioraram. Uma pessoa desaparecia por semana, e esses eram somente os casos registrados.
Em rumores, encontrávamos tantas outras vítimas quanto era possível contar nos
dedos, muitas delas desaparecendo no mesmo dia. E era somente isso: sumiço.
Sumiam do nada, sem contato para fiança, sem ligações para ameaçar famílias,
sem nada.
Como
se deixassem de existir.
—Pois
não?
—O
senhor já organizou as ações?
Tinha
me esquecido.
—Sim,
claro —menti. —Eu jamais me esqueceria de algo tão importante assim.
Ela
sorriu e voltou a seus afazeres. Era uma boa mulher, e inteligente. Certamente
sabia que eu não tinha feito metade do que deveria fazer naquele dia, mas eu
tinha meus motivos para isso.
Talvez
não fossem justos, mas eram meus
motivos, e eu os deveria julgar. Ninguém mais.
—Vou
pegar um café para o senhor.
—Agradeço,
mas deixo para uma próxima ocasião. Cafeína me mantém acordado por muito tempo,
e eu preciso dormir cedo nesta noite.
—Compromissos
para o dia de amanhã?
—Nada
de mais. Vou passear com minha filha.
—Ora,
isso é bastante de mais. Como está a
bela Madeleine?
—Crescendo
cada vez mais.
Essa
era uma das maiores verdades da minha vida. Madeleine crescia, crescia mesmo. Isso, para mim, era um orgulho
sem tamanho, mas também me machucava. Ao vê-la crescer, aprender a falar e a
caminhar com as pernas retas, sabia que, no fundo, eu estava ficando velho.
Era
cada vez menos jovem e mais pai.
A
conversa durou pouco mais de dez minutos, e então me afastei, ajeitando o terno
para levar alguns documentos numa empresa próxima. Ali, na cidade de Wyrestown,
tínhamos uma movimentação diferente do restante do Maine. As coisas funcionavam
num dia, e no outro eram esquecidas, para então ressuscitar das cinzas quando
se tornassem inoportunas o suficiente.
De
certo modo, eu podia admitir que preferia os problemas desde o início do que
uma felicidade passageira mascarando-os até o final. Cada um de nós tem sua
própria bola de neve para cuidar.
Quando
saía de meu escritório, esbarrei num espelho que ficava à retaguarda de um
calendário, sobre minha mesa. Quando o fiz, olhei em seu reflexo e, por um
momento, me surpreendi.
Aquele
não era meu rosto.
—Mas
quê —
Pisquei
uma única vez, fitei o reflexo novamente e lá estavam os meus olhos, meus
lábios e minhas malditas rugas. Estranhei. Sono? Quem sabe. Precisava
descansar, mesmo sem dormir. Deixar aquele stress voejar junto das nuvens,
esquecer um pouco o trabalho e os problemas, mas essas coisas, para mim, eram
sonhos distantes.
Olhei
o reflexo mais uma vez, constatando que a imagem refletida era exatamente a
minha. Dei de ombros. Estava tão feio que sequer me reconhecia.
Com
um sorriso bobo no rosto, deixei o escritório para trás.
O
sorriso no espelho não tinha nada de bobo.
Estava
sentado no sofá, com as pernas estiradas no apoio acolchoado que Marrie
insistia para eu não estragar, quando o telefone tocou.
Madeleine
riu com o toque.
—Deixe
que eu atendo.
Eu
assenti, e então admirei o desfile de minha esposa. Tanto tempo se passou, mas
ela ainda era tão linda! A cada dia em que eu parava para admirá-la, via-a
ainda mais fabulosa, tendo certeza de que, no dia em que me declarei, fiz a
melhor coisa de minha vida. Sim, eu me declarei, por mais que isso possa
parecer bizarro e antepassado, mas Marrie gostou, eu acho. Ou então fingiu bem.
O
que importa é que nós estávamos juntos desde então, esbanjando segurança,
confiança e carinho, dignos de um casal perfeito, por mais que a perfeição
fosse somente uma lenda.
—Alô?
Olhei
ao relógio: vinte e uma horas. O jogo de futebol começaria em breve, e eu
narraria todos os jogadores de minha seleção para minha filha, e ela não entenderia
nada disso, mas sorriria, e eu ficaria feliz ainda assim.
Todos
os meus planos ruíram quando Marrie me entregou o telefone.
—É
do banco.
—Sério?
—Sim.
Parece que aconteceu um problema no sistema, alguma coisa assim.
Suspirei,
chateado, preparando-me para perder mais uma noite de descanso.
—Pois
não?
Perguntei
por desencargo de consciência. Já estava vestindo minhas roupas mais elegantes
e me ajeitando para sair. Cacei as chaves do carro no suporte ao lado da porta
de entrada de minha moradia, vesti um casaco costurado por Marrie, dei um beijo
na testa de Madeleine, bambeando pelo telefone preso entre o ouvido e o ombro
direito.
—Papai!
—Sim,
papai vai trabalhar, minha queridinha, mas logo eu estou de volta, ok?
—Vai
precisar sair mesmo?
Aquelas
coisas magoavam Marrie. Ela não gostava de futebol, muito menos de me ver
conhecer mais os nomes dos jogadores do que de seus familiares, mas preferia
aquilo a ter de dormir sozinha mais uma noite.
—Infelizmente,
meu amor, mas eu devo voltar logo. Só vou ajudar Jake a consertar um erro no
sistema de empréstimos por caixa eletrônico, é jogo rápido.
Jake
era meu melhor amigo, um homem que me seguiu durante toda a vida, escondendo
meus erros, vibrando com meus acertos. Confiava nele mais do que em parentes
que compartilhavam de mesmo sangue. Ele sim era um irmão, um amigo para todas
as horas, um parceiro de verdade.
—Eu
espero que sim. Traga um doce, por favor.
—Chocolate?
—Qualquer
um. Glicose resolve.
Sorri,
e então a beijei, apressado, me despedindo com um aceno breve.
Se
eu soubesse o que estava para acontecer, teria me despedido melhor.
Sentei
no carro e acelerei.
O
retrovisor mostrava um rosto cansado e decepcionado com a situação. Eu o fitei,
concentrado nas curvas do queixo, nos olhos mais finos, no nariz miúdo.
Mais
uma vez, tive a impressão de que aquele não era eu.
—Cara,
eu preciso mesmo descansar.
Pensei
alto, e o fato de falar comigo mesmo era a maior comprovação daquela frase.
Estacionei
o carro nas proximidades do banco, atentando para que não deixasse-o na mira de
possíveis criminosos da noite. Eu era um homem visado, muita gente me conhecia
pela profissão. Bancários não ganham mal, todo mundo sabe disso. Eu tinha uma
casa pouco modesta e uma vida simples, mas o mundo do crime não se importa com
esses detalhes. Eles só te apontam o cano do revólver e pedem por tudo o que
você tiver, e foda-se a criança esperando o leite, foda-se a mulher esperando
remédios, foda-se você trabalhando para recuperar o prejuízo.
Desci
do carro, acionei o alarme eletrônico para que as janelas se fechassem.
O
vidro refletiu outro homem, mas eu ignorei.
Eu
ainda precisaria caminhar alguns metros para chegar à agência. Esse pequeno
trajeto me assegurava de que não estaria sendo seguido ou coisa do tipo,
impedindo que qualquer bandido aprendiz me abordasse para invadir o banco,
usando minhas chaves para abrir os cofres pessoais e ferrar com a vida de muita
gente.
Passei
pela frente de um armazém, um local cheio de histórias, com um estoque que
saciou minhas vontades masculinas quando eu e a dona do estabelecimento, a
senhorita Victória, ainda éramos solteiros. Eu nem sequer conhecia Marrie
naquela época. Victória já estava iniciando seu relacionamento, mas eu nem
pensei duas vezes, e talvez seja por isso que o velho Rogers não admire minha
presença por ali.
Na
esquina onde eu deveria desviar meu caminho, um prédio feito de vidro refletiu
minha imagem, banhada pela lua cheia que irradiava no céu. Eu olhei e, de tão
impressionante, tive de parar de caminhar. Aquele não era eu. Era impossível, e
acreditar em algo assim pareceria loucura demais, mas bem, aquele não era eu mesmo! Era um homem similar, de mesmo
porte, cabelos castanhos e olhos de mel, um merda como eu, mas não era meu
reflexo, e isso era um absurdo ao ser pensado.
—Como
assim?
Me
aproximei do vidro, tocando-o para ter certeza de que o que via era real. Meu
reflexo repetiu os movimentos, como deveria, mas ele não tinha o meu rosto. Era
outro homem, outra pessoa, outra existência.
Não
eu.
Concentrado
como estava, não reparei que luzes de um farol dourado se acendiam atrás de
mim.
Um
carro se aproximava, e eu ali, perdendo tempo enquanto examinava o muro
espelhado que mostrava alguém diferente de mim. Seu motor roncava devagar,
devagar até demais; apostei que seu
velocímetro deveria estar marcando vinte quilômetros, ou dez, talvez menos. Era
como se ele realmente pensasse em me observar, seguindo a velocidade que meus
passos alcançariam e, possivelmente, aguardando o melhor momento para abocanhar
sua presa.
Eu
olhei para trás, para o carro e, para minha surpresa, não vi motorista nenhum.
O
carro se movia sozinho.
—Eu
estou enlouquecendo mesmo.
Voltei
meus olhos para o reflexo, encontrei ali outro rosto, não o meu. Ele sorria com
malícia, provocando-me.
O
carro parou e suas portas se abriram.
Nada
saiu, pois não havia nada para sair. As coisas mudaram, e é só isso o que sei
dizer. O vento pareceu congelar, o ar ficou mais denso, a neblina da noite
aumentou gradativamente; meu corpo travou de uma só vez, incapaz de reagir a
qualquer que fosse o caçador dentro daquele veículo, mas não havia ninguém.
Quando
pensei que estava livre, as luzes do mundo ao meu redor se apagaram, e eu então
cambaleei no lugar.
Olhei
a vidraça espelhada uma última vez, e pude me ver, me tocar, me sentir. Era eu,
mas não no espelho.
No
espelho, havia outro homem, um completo estranho.
Tudo
escureceu, e tanto eu quanto o estranho desaparecemos nas sombras.
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