quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 1 / Ato I

Feliz ano novo a você, leitor que acompanha o Elhanor (ou que está só de passagem)! E, tratando de um blog sobre livros e afins, que tem como costume principal disponibilizar contos, textos e pequenas séries para leitura gratuita e digital, trago hoje, no segundo dia de 2013 (apesar de ainda estar no reflexo do primeiro dia do ano), uma surpresa: trata-se de Estranhos no Espelho, uma nova Light Novel para o Elhanor!
Se você não sabe o que é uma Light Novel, veja ESTA POSTAGEM. Se não conhece as outras histórias disponibilizadas aqui no blog, confira agora mesmo: A Balada do Caçador; Delirium e Desejos de Juno.Todas elas também podem ser encontradas na aba Textos, na parte superior do blog. Para outras informações e postagens, confira a tag Light Novel aqui do blog!
Mas vamos ao que interessa!
Fiquem agora com a primeira parte de Estranhos no Espelho, e tenham um excelente começo de ano!


Parte 1
UM OUTRO MESMO LUGAR

I


Naquela época, eu tinha vinte e seis anos e uma vida toda pela frente.
Ao menos era o que pensava.
—Papai!
Aquela não foi a primeira palavra dita por minha filha, infelizmente. Madeleine chamou pela mãe, como as filhas sempre chamam. Eu tinha apostado e, consequentemente, tive de oferecer uma viagem à Marrie Fulcanelli, a minha esposa. Não era bem um prêmio perdido, mas enfim, eu tinha de fingir estar triste.
Na realidade, eu era um adolescente no corpo de um velho. Ou talvez fosse o contrário. Eu era um ranzinza no corpo de um jovem. Trabalhando na agência bancária desde tantos anos atrás, não sabia mais dizer se fazia aquilo por gosto ou necessidade, mas fazia. Tinha de ser feito. Pessoas dependiam de mim, e aquela era uma desculpa agradável para se utilizar.
—Senhor Victor.
Era um sussurro. Eu me virei, encontrei o rosto tranquilo de minha secretária. Naqueles dias, todo mundo sussurrava, pois não havia voz em nossas gargantas. No lugar desta, havia medo. Um medo peculiar, incômodo, o pior medo que o ser humano pode ter: medo do desconhecido.
Medo de desaparecer.
Os desaparecimentos eram constantes e frequentes. Começaram em casos isolados, uma pessoa aqui, outra lá, semanas mais tarde. Mas, nos últimos meses, as coisas pioraram. Uma pessoa desaparecia por semana, e esses eram somente os casos registrados. Em rumores, encontrávamos tantas outras vítimas quanto era possível contar nos dedos, muitas delas desaparecendo no mesmo dia. E era somente isso: sumiço. Sumiam do nada, sem contato para fiança, sem ligações para ameaçar famílias, sem nada.
Como se deixassem de existir.
—Pois não?
—O senhor já organizou as ações?
Tinha me esquecido.
—Sim, claro —menti. —Eu jamais me esqueceria de algo tão importante assim.
Ela sorriu e voltou a seus afazeres. Era uma boa mulher, e inteligente. Certamente sabia que eu não tinha feito metade do que deveria fazer naquele dia, mas eu tinha meus motivos para isso.
Talvez não fossem justos, mas eram meus motivos, e eu os deveria julgar. Ninguém mais.
—Vou pegar um café para o senhor.
—Agradeço, mas deixo para uma próxima ocasião. Cafeína me mantém acordado por muito tempo, e eu preciso dormir cedo nesta noite.
—Compromissos para o dia de amanhã?
—Nada de mais. Vou passear com minha filha.
—Ora, isso é bastante de mais. Como está a bela Madeleine?
—Crescendo cada vez mais.
Essa era uma das maiores verdades da minha vida. Madeleine crescia, crescia mesmo. Isso, para mim, era um orgulho sem tamanho, mas também me machucava. Ao vê-la crescer, aprender a falar e a caminhar com as pernas retas, sabia que, no fundo, eu estava ficando velho.
Era cada vez menos jovem e mais pai.
A conversa durou pouco mais de dez minutos, e então me afastei, ajeitando o terno para levar alguns documentos numa empresa próxima. Ali, na cidade de Wyrestown, tínhamos uma movimentação diferente do restante do Maine. As coisas funcionavam num dia, e no outro eram esquecidas, para então ressuscitar das cinzas quando se tornassem inoportunas o suficiente.
De certo modo, eu podia admitir que preferia os problemas desde o início do que uma felicidade passageira mascarando-os até o final. Cada um de nós tem sua própria bola de neve para cuidar.
Quando saía de meu escritório, esbarrei num espelho que ficava à retaguarda de um calendário, sobre minha mesa. Quando o fiz, olhei em seu reflexo e, por um momento, me surpreendi.
Aquele não era meu rosto.
—Mas quê —
Pisquei uma única vez, fitei o reflexo novamente e lá estavam os meus olhos, meus lábios e minhas malditas rugas. Estranhei. Sono? Quem sabe. Precisava descansar, mesmo sem dormir. Deixar aquele stress voejar junto das nuvens, esquecer um pouco o trabalho e os problemas, mas essas coisas, para mim, eram sonhos distantes.
Olhei o reflexo mais uma vez, constatando que a imagem refletida era exatamente a minha. Dei de ombros. Estava tão feio que sequer me reconhecia.
Com um sorriso bobo no rosto, deixei o escritório para trás.
O sorriso no espelho não tinha nada de bobo.

Estava sentado no sofá, com as pernas estiradas no apoio acolchoado que Marrie insistia para eu não estragar, quando o telefone tocou.
Madeleine riu com o toque.
—Deixe que eu atendo.
Eu assenti, e então admirei o desfile de minha esposa. Tanto tempo se passou, mas ela ainda era tão linda! A cada dia em que eu parava para admirá-la, via-a ainda mais fabulosa, tendo certeza de que, no dia em que me declarei, fiz a melhor coisa de minha vida. Sim, eu me declarei, por mais que isso possa parecer bizarro e antepassado, mas Marrie gostou, eu acho. Ou então fingiu bem.
O que importa é que nós estávamos juntos desde então, esbanjando segurança, confiança e carinho, dignos de um casal perfeito, por mais que a perfeição fosse somente uma lenda.
—Alô?
Olhei ao relógio: vinte e uma horas. O jogo de futebol começaria em breve, e eu narraria todos os jogadores de minha seleção para minha filha, e ela não entenderia nada disso, mas sorriria, e eu ficaria feliz ainda assim.
Todos os meus planos ruíram quando Marrie me entregou o telefone.
—É do banco.
—Sério?
—Sim. Parece que aconteceu um problema no sistema, alguma coisa assim.
Suspirei, chateado, preparando-me para perder mais uma noite de descanso.
—Pois não?
Perguntei por desencargo de consciência. Já estava vestindo minhas roupas mais elegantes e me ajeitando para sair. Cacei as chaves do carro no suporte ao lado da porta de entrada de minha moradia, vesti um casaco costurado por Marrie, dei um beijo na testa de Madeleine, bambeando pelo telefone preso entre o ouvido e o ombro direito.
—Papai!
—Sim, papai vai trabalhar, minha queridinha, mas logo eu estou de volta, ok?
—Vai precisar sair mesmo?
Aquelas coisas magoavam Marrie. Ela não gostava de futebol, muito menos de me ver conhecer mais os nomes dos jogadores do que de seus familiares, mas preferia aquilo a ter de dormir sozinha mais uma noite.
—Infelizmente, meu amor, mas eu devo voltar logo. Só vou ajudar Jake a consertar um erro no sistema de empréstimos por caixa eletrônico, é jogo rápido.
Jake era meu melhor amigo, um homem que me seguiu durante toda a vida, escondendo meus erros, vibrando com meus acertos. Confiava nele mais do que em parentes que compartilhavam de mesmo sangue. Ele sim era um irmão, um amigo para todas as horas, um parceiro de verdade.
—Eu espero que sim. Traga um doce, por favor.
—Chocolate?
—Qualquer um. Glicose resolve.
Sorri, e então a beijei, apressado, me despedindo com um aceno breve.
Se eu soubesse o que estava para acontecer, teria me despedido melhor.

Sentei no carro e acelerei.
O retrovisor mostrava um rosto cansado e decepcionado com a situação. Eu o fitei, concentrado nas curvas do queixo, nos olhos mais finos, no nariz miúdo.
Mais uma vez, tive a impressão de que aquele não era eu.
—Cara, eu preciso mesmo descansar.
Pensei alto, e o fato de falar comigo mesmo era a maior comprovação daquela frase.
Estacionei o carro nas proximidades do banco, atentando para que não deixasse-o na mira de possíveis criminosos da noite. Eu era um homem visado, muita gente me conhecia pela profissão. Bancários não ganham mal, todo mundo sabe disso. Eu tinha uma casa pouco modesta e uma vida simples, mas o mundo do crime não se importa com esses detalhes. Eles só te apontam o cano do revólver e pedem por tudo o que você tiver, e foda-se a criança esperando o leite, foda-se a mulher esperando remédios, foda-se você trabalhando para recuperar o prejuízo.
Desci do carro, acionei o alarme eletrônico para que as janelas se fechassem.
O vidro refletiu outro homem, mas eu ignorei.
Eu ainda precisaria caminhar alguns metros para chegar à agência. Esse pequeno trajeto me assegurava de que não estaria sendo seguido ou coisa do tipo, impedindo que qualquer bandido aprendiz me abordasse para invadir o banco, usando minhas chaves para abrir os cofres pessoais e ferrar com a vida de muita gente.
Passei pela frente de um armazém, um local cheio de histórias, com um estoque que saciou minhas vontades masculinas quando eu e a dona do estabelecimento, a senhorita Victória, ainda éramos solteiros. Eu nem sequer conhecia Marrie naquela época. Victória já estava iniciando seu relacionamento, mas eu nem pensei duas vezes, e talvez seja por isso que o velho Rogers não admire minha presença por ali.
Na esquina onde eu deveria desviar meu caminho, um prédio feito de vidro refletiu minha imagem, banhada pela lua cheia que irradiava no céu. Eu olhei e, de tão impressionante, tive de parar de caminhar. Aquele não era eu. Era impossível, e acreditar em algo assim pareceria loucura demais, mas bem, aquele não era eu mesmo! Era um homem similar, de mesmo porte, cabelos castanhos e olhos de mel, um merda como eu, mas não era meu reflexo, e isso era um absurdo ao ser pensado.
—Como assim?
Me aproximei do vidro, tocando-o para ter certeza de que o que via era real. Meu reflexo repetiu os movimentos, como deveria, mas ele não tinha o meu rosto. Era outro homem, outra pessoa, outra existência.
Não eu.
Concentrado como estava, não reparei que luzes de um farol dourado se acendiam atrás de mim.
Um carro se aproximava, e eu ali, perdendo tempo enquanto examinava o muro espelhado que mostrava alguém diferente de mim. Seu motor roncava devagar, devagar até demais; apostei que seu velocímetro deveria estar marcando vinte quilômetros, ou dez, talvez menos. Era como se ele realmente pensasse em me observar, seguindo a velocidade que meus passos alcançariam e, possivelmente, aguardando o melhor momento para abocanhar sua presa.
Eu olhei para trás, para o carro e, para minha surpresa, não vi motorista nenhum.
O carro se movia sozinho.
—Eu estou enlouquecendo mesmo.
Voltei meus olhos para o reflexo, encontrei ali outro rosto, não o meu. Ele sorria com malícia, provocando-me.
O carro parou e suas portas se abriram.
Nada saiu, pois não havia nada para sair. As coisas mudaram, e é só isso o que sei dizer. O vento pareceu congelar, o ar ficou mais denso, a neblina da noite aumentou gradativamente; meu corpo travou de uma só vez, incapaz de reagir a qualquer que fosse o caçador dentro daquele veículo, mas não havia ninguém.
Quando pensei que estava livre, as luzes do mundo ao meu redor se apagaram, e eu então cambaleei no lugar.
Olhei a vidraça espelhada uma última vez, e pude me ver, me tocar, me sentir. Era eu, mas não no espelho.
No espelho, havia outro homem, um completo estranho.
Tudo escureceu, e tanto eu quanto o estranho desaparecemos nas sombras.

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