Parte 2
INFINITO EM UM INSTANTE
IV
Eu
fui o primeiro a acordar e, ao abrir os olhos, vi somente escuridão.
—Olá?
Tentei
me mover, esbarrei em alguém.
—Qual
é cara, me deixa dormir?
Era
Lucius.
—Lucius,
acorda.
—Você
já me acordou uma vez —
—É
sério, acorda. Nós não estamos mais no hotel!
—Dá
para as duas mocinhas pararem de falar alto, eu tô tentando dormir.
Aquela
era a voz de Hector, e veio de algum da mesma escuridão.
—Nós
estamos presos!
Estiquei
os braços, a distância das paredes era menor do que isso. O ar começava a
faltar.
—Onde
nós estamos?
—Fica
quieto cara, eu tava sonhando com aquela loira da novela e —
—Acorda,
porra! Vocês querem morrer sem ar aqui?
Lucius
bocejou.
—Que
merda é essa?
—Nós
estamos presos!
Eu
estiquei os braços numa direção aleatória, não encontrei ninguém. Levantei a
perna, desajeitado, e chutei o espaço demarcado pelo alcance de minhas mãos,
atingindo o que me pareceu madeira.
—Alguém
nos tira daqui! Socorro, nos tirem daqui!
—Por
que essa mocinha tá... Ei, espera aí.
Só
então Hector percebeu que eu falava a verdade, e a loira da novela era somente
uma alucinação.
—Nós
estamos presos!
—Ah,
jura? Quase não percebi! Me ajuda a bater nessa coisa, ou nós vamos —
Antes
de terminar as minhas palavras, a madeira à nossa frente se abriu, revelando
ser uma porta, e todos nós caímos num piso azulejado de coloração cinzenta.
Estávamos num armário velho, um pequeno depósito onde eram estocadas as
vassouras inutilizadas, bem como outros materiais surrados e fora de uso.
Ao
encontrar o chão, a primeira coisa que vi foram dois pés femininos, calçados
num sapato confortável.
—Por
que vocês se esconderam?
Suzan
parecia estar assustada. Ela estava vestida como anteriormente, assim como nós
todos, por mais que tivesse em minha mente a lembrança de tirar as roupas mais
desconfortáveis para deixar o sono mais agradável. Ao seu lado, a cega
rabiscava um papel com seu giz colorido e, dentre todos nós, ela parecia ser a
única a não se surpreender com aquela situação toda.
—Nós
não nos escondemos.
—Eu
acordei aqui, sozinha. Achei a garota por sorte. Merda, onde a gente tá?
Eu
olhei ao redor, estudando cada canto daquela localidade, iluminada somente por
luzes de emergência. Era familiar. Demorei um tempo para me situar, mas logo
tive certeza de minha afirmação.
—É
o museu de Wyrestown.
—O
museu?
—Exatamente.
Eu tenho certeza, estamos no museu.
—Tá,
claro. Nós dormimos num hotel, então acordamos num museu, eu aqui, do lado de
fora, e vocês no depósito de vassouras? Agora eu entendo porque as pessoas têm
se atirado de prédios!
—Você
está bem?
—Sim,
mas —
Hector
interveio.
—Desculpa
atrapalhar a conversa amigável de vocês dois, mas se nós realmente estamos no
museu, o alarme desse lugar está prestes a disparar, e acho que não é
aconselhável estar aqui dentro quando isso acontecer. Sabe como é, eu já fui
confundido com um crimino uma vez. Não quero ser preso injustamente esse mundo
também.
—Hector
tem razão. Nós temos que arrumar um jeito de sair daqui, e rápido. Devem haver
seguranças espalhados pelos corredores, e bom, não creio que tenhamos uma
explicação boa para estarmos aqui.
—Valeu,
Lucius. Alguém precisava concordar comigo, uma vez pelo menos.
Lucius
acenou, irônico.
Eles
estavam certos. Nós precisávamos sair. Precisávamos voltar para o hotel,
recuperar as nossas coisas que ficaram para trás. Mas como chegamos ali?
—Ei,
garota.
A
cega se virou para mim, e eu pude ver o contorno de seus olhos através da
venda.
—Por
que todo mundo está assustado?
—Porque
a gente pode ver toda essa merda que
tá acontecendo. Falando nisso, você percebeu algo de estranho ocorrer? Alguém
nos tirar do quarto, coisa do tipo.
—Não.
Hector
socou uma parede.
—Cara,
se a mais atenta do grupo não viu, é
porque não aconteceu. Vamos sair daqui.
Ele
seguiu por uma porta entreaberta, cauteloso para uma possível vigília, e nós o
acompanhamos, aproveitando a movimentação de alguém que se tornou sorrateiro
por puro instinto de sobrevivência. Imagino que, na cadeira, você tem que ser
muito ágil, ou muito forte. Hector me parecia as duas coisas.
Passamos
pela porta de chapa, chegando à ala das exibições de dinossauros. Eu me
lembrava dessa exposição no hall de entrada do térreo, mas não havia nenhuma
porta de saída por ali, o que me fez presumir que aquele era o primeiro andar.
Precisávamos encontrar uma escadaria para descer, pois só encontraríamos uma
saída no andar inferior.
Foi
quando escutamos passos.
De
início, me pareceram pequenas batidas nas paredes, ou mesmo o tique-taque de um
relógio, mas logo percebi que o som vinha de sobre nossas cabeças. Olhei para o
teto, mas nada encontrei. Examinando a parte superior do cômodo, notei uma
portinhola que levaria ao sótão do museu.
Lucius
puxou a escada próxima à portinhola.
—Eu
vou examinar.
—Você
é louco? A gente tem que sair daqui.
—Escuta
esse barulho, são passos! Pode ter alguém em perigo lá em cima! Pode ser um dos
nossos, acordando num lugar desconhecido também! Como você pode ser sangue frio
assim?
Ele
subiu os três primeiros degraus da escada, e Suzan se aproximou para escorá-la.
—Victor.
Era
Hector quem me chamava.
—Diz
aí.
—Vamos
ver o que tem nessa sala ao lado. Deixa esses dois procurarem sobreviventes de
um apocalipse zumbi. Enquanto isso a gente encontra uma saída para dar o fora
daqui.
Assenti,
seguindo seus passos, circundando a escultura de uma ossada de tiranossauro,
tão imensa quanto deveria ser um deles na realidade, e passando por uma segunda
porta metálica. Examinamos o local com cuidado: era uma exposição de carros
antigos. Fizemos um breve reconhecimento na área, constatando que não havia
segurança algum.
—Cara,
isso é estranho.
—O
quê?
—Não
tem guardas. Deveria ter um monte deles aqui, patrulhando os arredores com
lanternas e pistolas 44 ou cassetetes, mas até agora não encontramos nenhum.
Eu
fitei Hector com admiração, mas também com estranheza.
—Você
pensa como um criminoso.
—O
que disse?
—Deve
ser por causa do tempo que passou na cadeia. Seu reflexo aumentou, mas de uma
forma negativa.
—Vá
a merda, cara.
Ele
debruçou-se na porta de um conversível e retirou a alavanca que movia a
cobertura, um apetrecho de metal polido, com uma das pontas quebradas formando
uma espécie de lâmina. Aquela era sua arma de improviso.
—Não
é pensar como criminoso. É saber sobreviver. Atrás das grades, só funciona a
lei dos mais fortes. Você sabe o que acontece com gente que mata sua própria
família. Eu fui jogado com eles, mesmo sendo inocente. Se estou aqui agora,
vivo, é porque aprendi a me virar lá dentro.
Preferi
não estender aquele assunto.
O
teto daquele local era de vidro, o que apenas confirmava minha suspeita de que
estávamos no primeiro —e último —andar. Dali, podíamos ver a noite, clara e sem
estrelas. Um relógio de parede marcava 2h40 da manhã.
—Victor,
se abaixa.
—O
que?
—Se
abaixa, porra!
Eu
me abaixei, sem entender, e rolei para trás de um carro vermelho. Olhei para
Hector, que postou o indicador sobre os lábios, me pedindo silêncio, então
apontou o vidro sobre nós, onde eu pude ver a origem dos passos.
Havia
três pessoas ali, duas pequenas, uma aparentemente mais gorda. Pareciam
parados, como se conversassem sobre um possível plano de invasão ao local. Não
conseguíamos ver seus rostos, o que dificultava quaisquer deduções.
—O
que você acha?
Eu
sussurrei, temeroso, e Hector me respondeu ainda mais baixo.
—Acho
que a gente tá fodido.
Procurei
ao meu redor por algo que pudesse utilizar de arma e encontrei, numa maleta de
socorros para automóveis, uma chave inglesa.
Atrás
de nós, Suzan gritou.
—Suzan!
—Fica
aqui, bancário! Eu vou ver o que aconteceu!
E
desde quando ele dava as ordens?
De
qualquer modo, eu fiquei, esperando para saber o que tinha acontecido na outra
câmara, e minha desatenção me fez perder os homens que caminhavam sobre os
vidros. De súbito, como um estouro no silêncio, o teto sobre mim desabou como
uma explosão, deixando chover cacos afiados em minhas costas. Os três caíram
ali, bem próximos, e eu me levantei, a chave inglesa em mãos, preparado para
enfrentar três homens, mas não havia homem algum.
E,
para ser sincero, eu nem sabia o que eram aquelas coisas, e preferia muito bem
nunca descobrir.
Eles
pareciam mortos, com pedaços podres caindo de seus corpos desgastados, e
nenhuma pele cobria as camadas inferiores e vermelhas de seus membros. Os
rostos eram apodrecidos, deixando os dentes surgirem nos maxilares sem carne, e
línguas enormes despencarem como pêndulos de carne morta.
Dois
deles eram franzinos, pouco menores do que eu, mas o terceiro era uma aberração
sem igual, com um braço atrofiado, similar a uma bexiga murcha, e o outro
membro inchado a ponto de sobrepujar seu corpanzil, e ele urrava como um leão
esfomeado.
Os
três avançaram em minha direção, e eu corri sem pensar duas vezes.
—Fujam!
Fujam!
Minhas
palavras deixaram os demais atentos, e era esta a intenção. Eles não viam
aquilo que me perseguia, sequer sabiam se realmente existia algo, mas achei
melhor assim. Olhei de relance, percebi que todos estavam bem, e isso incluía
Suzan, responsável pelo grito que escutara há pouco, possivelmente um alarme falso.
Teria tempo para descobrir depois, se houvesse um depois.
—Por
aqui.
Hector
nos guiou para uma porta até então fechada, arrombando-a com um chute bem
colocado. Descemos um lance de escadas e alcançamos o térreo, fechando a porta
atrás de nós para retardar os perseguidores.
—A
saída! Vamos embora!
Investi
contra o vidro que nos separava do exterior do museu, ricocheteando e quedando
para o solo sem entender o que acontecera. Levantei-me com velocidade,
golpeando com a chave inglesa que tinha em mãos, mas pancada alguma parecia
capaz de alcançar o vidro.
—Alguma
coisa está repelindo os ataques!
—Me
deixa tentar.
Hector
chutou, socou, bateu com a manivela que quebrara anteriormente, sem surtir
efeito algum.
—Que
merda é essa?
A
porta atrás de nós estava prestes a ceder.
—Precisamos
continuar, deve haver outra saída.
Lucius
apontou uma porta.
—Por
ali.
E
nós o seguimos, sem escolhas, as criaturas logo atrás de nós. Suzan gritava,
assustada, mas a cega a seguia com um sorriso, como se aproveitasse de uma
noite do terror num parque de diversões. Às vezes, vê-la desse modo me fazia sentir
raiva da garota, mas eu sabia que não poderia julgar uma criança pela
irresponsabilidade.
Chegamos
a uma sala de quadros, onde holofotes miravam as obras de arte mais valiosas, e
foram estes mesmos cones de luz que irradiaram nossos caçadores, revelando suas
formas tenebrosas para que todos pudessem ver. Ali, iluminados pelo dourado das
lanternas de grande proporção, percebi que eles tinham veias e nervos à mostra,
bem como espinhos na cabeça calva e nos peitorais despidos.
Passamos
por outro corredor de transição, alcançando uma nova câmara de exposições, e
ali encontramos aparatos medievais sobre armaduras modeladas. Indiquei para que
Suzan e a garota se escondessem atrás das armaduras, das quais tirei uma maça e
uma espada, entregando a lâmina para Hector. Lucius pegou um escudo largo e se
posicionou na frente da porta, formando uma nova parede.
Eu
não fazia ideia de como lutar com aquela coisa.
—Você
sabe como usar isso?
Lucius
bufou, em resposta.
—Se
for como eles descrevem nos livros de história, sei perfeitamente.
Ou
seja, não.
A
primeira das criaturas saltou por sobre Lucius, dando de encontro com a espada
de Hector, a qual trespassou sem perceber. Mesmo perfurado pela espada, a
criatura ainda se debatia, jogando o ex-presidiário de um lado para o outro da
câmara, sem que ele soltasse o cabo de sua arma. O segundo monstro chocou-se
contra o escudo do professor, e o impacto o fez recuar, girando a proteção no
ar e, num golpe de sorte, caindo sobre o ser com parte da placa metálica
fincada em seu torso.
—Mate-o!
Ele
fazia força demais para manter o monstro preso. Suas palavras eram para mim.
—O
que?
—Anda
logo, ou ele vai escapar!
Eu
corri, levantei a maça acima da cabeça e a baixei, com toda minha força.
Acertei
o chão.
—Droga.
A
criatura empurrou Lucius para trás, avançando sobre mim com parte do corpo
aberta, despejando órgãos e carne podre. Eu a atingi com a maça, mas a arma
escapou de minhas mãos, e eu caí contra várias armaduras.
Quando
dei por mim, percebi que Lucius fugia, retornando para a sala dos quadros após
se apavorar com a presença da maior das criaturas. Ainda estava zonzo, caçando
um pedaço de metal qualquer no chão, mas a criatura que me enfrentava não
estava mais lá. Ela fora esmagada pela brutalidade do terceiro, que avançava
com ferocidade contra as paredes, sem se importar com um alvo em específico.
Tudo era um alvo em potencial, tudo tinha de ser destruído, e ele avançava,
derrubando as defesas de Suzan e da garota, atirando contra uma das paredes o
monstro enfrentado por Hector.
Naquele
momento, eu pensei que morreria. Minhas pernas não respondiam, sequer meus
braços, todos trêmulos pelo pavor daquele ser. Eu tinha uma arma em mãos, mas
era somente isso, um objeto sem uso algum nas mãos de um covarde. Reparando ao
meu redor, vi que Hector saltara para trás de uma catapulta. Suzan e a cega
encontraram um banheiro e se esconderam da melhor maneira que puderam.
Eu
fiquei ali, paralisado.
Morreria
assim, sem nem poder gritar?
Eu
fechei os olhos.
Escutei
gritos, rosnados furiosos, grunhidos, ganidos, então silêncio. Depois do
silêncio, passos. Pequenos, humanos, sem pressa ou ferocidade, apenas passos
comuns, de quem desfila, de quem caminha somente por caminhar.
Abri
os olhos, e vi que o corpo do monstrengo estava atirado à minha frente, inerte.
—Victor!
Você está bem?
Era
Lucius.
Ele
voltara pelo mesmo caminho pelo qual fugira. Por um momento, senti raiva dele
por nos abandonar, mas sua justificativa era boa. Eu também quis fugir, mas não
pude. Meu medo não permitiu nem isso.
—Eu...
estou bem, sim.
—E
os outros?
—Eles
se esconderam. Lucius, o que aconteceu aqui?
Só
então percebi que havia outra pessoa naquela sala. Ele tinha um chapéu negro na
cabeça, e longos cabelos escuros caídos por sobre uma capa sombria que
arrastava no chão. Suas mãos deslizavam pelo ar como uma dança sem sentido e,
eu pude jurar, algumas coisas se moviam sem que fosse necessário seu toque.
—Ache
os demais. Vou esperar por vocês no hall de entrada.
Sua
voz era grave como o vento de uma tempestade.
Sem
dizer mais nada, ele se retirou.
Hector
deixou seu esconderijo, tão confuso quanto eu. Aproveitei a brecha para chamar
Suzan e a cega no banheiro.
—E
os monstros?
—Um
homem estranho os derrotou. Digo, estranho mesmo.
—Alguma
coisa ainda pode ser mais estranha do que tudo isso que tem acontecido?
Era
uma pergunta que eu jamais saberia responder.
—Quem
era aquele cara?
Lucius
deu de ombros.
—Ele
estava lá quando eu... quando eu fugi. Ele me encontrou, disse que eu não
deveria abandoná-los, mesmo sendo um merda, pois isso só provava que eu era uma
merda ainda mais fedorenta.
—Legal
esse cara, não?
—Ele
nos salvou. Não acho que precisamos ter medo, pelo menos por enquanto.
E
que escolha tínhamos?
Ajeitamos
as coisas, respirando um pouco após a perseguição, e então voltamos para o hall
de entrada. Lá estava ele, parado em frente à porta de vidro que, por incrível
que pareça, estava aberta, deixando a luz da lua e o vento da madrugada
acariciarem as roupas pesadas daquele estranho.
—Como
vão?
Era
uma pergunta calma demais para aquela situação.
Hector
tomou a frente.
—Quem
é você?
Ele
se virou, tinha um sorriso no rosto. Com a luz da lua, podíamos vê-lo com
perfeição, e ele então tirou o chapéu, deixando a mostra uma grande cicatriz
horizontal sobre seu nariz, um risco sob ambos os olhos, e estes eram os mais
estranhos: as íris, esferas de simetria perfeita, eram do castanho mais escuro
que imaginei encontrar na vida, e cada uma de suas íris era um relógio de
ponteiros, e ambos os olhos estavam travados no mesmo horário: sete horas.
—Há
muito nesse lugar que não possui nome algum, como já devem ter percebido. Se
precisam de uma alcunha para me simbolizar, que esta seja senhor Sete Horas.
—Meu
nome é —
—Eu
não me importo com o nome de vocês. Guardem tal informação para quem desejar
conhecê-la. É uma bela noite. Aceitam me acompanhar por um passeio?
Ele
deixou o museu para trás, e nós o seguimos a alguns passos de distância.
—Senhor
Sete Horas.
Eu
estava um pouco inseguro quanto àquele homem.
Ele
acenou, indicando que eu poderia falar.
—Por
que nos salvou?
—Eu
não os salvei. Apenas atrasei um evento que ainda pode ocorrer, caso se deixem
levar por armadilhas e distrações. Ainda é cedo para que possam se defender, e
é por isso que estou aqui.
—Eu
não entendo.
—Todos
aqueles que estão contra a Decrépita são meus aliados.
Franzi
o cenho, confuso.
—Decrépita?
Eu
pensei tê-lo visto se virar, mas ele já estava ao meu lado, com seus olhos de
ponteiros bem próximos aos meus.
—Não
sabem sobre o mal que assola este mundo?
Fiz
que não, incapaz de responder.
Ele
girou no lugar, e então voltou à sua posição de origem, caminhando à nossa
frente.
—Decrépita
não é um ser, mas sim um conceito. Ela é uma entidade, uma existência. Existir
é, de longe, incomparável ao singelo ato de viver, e assim Decrépita existe,
vagando e se alimentando quando necessário.
A
cega tinha um desenho em mãos. Ela entregou para Suzan, que então me entregou.
Era uma esfera, e dentro dela havia outra esfera, mas esta segunda tinha uma
bocarra animalesca. Passei o desenho para as mãos de Lucius, e ele o entregou
para Hector.
—Ela
habita os confins do mundo que deseja devorar, como um parasita, e assim cria a
Terra de Baixo, um reflexo doentio do povo que deixará de existir em sua
empreitada. Ali, reside sem forma física, vaga no ar e na mente e em cada
sombra, até que se complete, capturando uma a uma das almas da Terra de Cima,
deixando-as no desespero do espelho de suas vidas, até que, entre estas,
encontre a sua contraparte.
Aquilo
parecia confuso demais para que alguém entendesse. Tão confuso que, por mais
que eu me esforçasse, parecia impossível acreditar.
—E
ela encontrará, se querem saber. Ela logo encontrará sua contraparte, uma vida
fora de lugar no seu mundo e, quando isso ocorrer, tudo será perdido.
Ele
se virou, mostrando com seu dedo a cicatriz em seu rosto, um corte profundo,
intenso, com uma história tão dolorosa que era impossível imaginar.
—Como
aconteceu no seu mundo.
Eu
falei sem perceber, e ele assentiu, sereno.
—Assim,
mantenho meus dizeres: todo aquele que afronta a Decrépita é meu aliado.
Eu
pensei em falar, mas as palavras de Suzan soaram antes das minhas:
—E
o que é você, senhor Sete Horas? Você
vive ou existe?
Mais
uma vez, aquele estranho homem voltou a caminhar, tomando certa distância de
nossos passos.
—Não
vivo, sequer existo. Eu represento. Personifico, manifesto, encarno, simbolizo.
Uma vez antes, um mundo foi devorado, e toda sua existência deixou de existir
num único instante. Mas, num instante antes desse último instante, toda a
existência pensou numa mesma coisa: vingança. O mundo a odiou, repugnou
Decrépita com todas as suas forças, ansiou por sua queda, por sua derrota, por
sua morte, por mais que morte seja um privilégio que somente os vivos possam
obter.
Ele
parou de andar, e nós o imitamos. Com as mãos nos bolsos de sua capa, ele
concluiu:
—O
desejo por vingança daquele povo foi tão forte que se tornou carnal, material, vívido. Assim eu tomei forma, originado na crença de tantas
almas chorosas, nascido do sofrimento, da extinção.
Tantas
teorias que julgávamos insanas apontavam, através de estudos cada vez menos
lógicos, para a força do acreditar, o potencial que as pessoas possuíam em seus
pensamentos, a força que a vontade de tantos poderia conceber, e isso estava
presente em nosso mundo, em filmes e livros, mas aquilo não era um filme ou
livro.
Quem
nos falava era o conceito de vingança
de todo um universo que não mais existia.
Lucius
pigarreou.
—Interessante
sua existência, senhor Sete Horas, mas acredito que tenha nos entendido
erroneamente. Não estamos contra a Decrépita. Não somos heróis, não somos
cavaleiros em armaduras cintilantes. Sequer podemos enfrentar monstros como
aqueles, você mesmo pôde comprovar. A única coisa que queremos é fugir, ir
embora, voltar para nosso mundo, para nossa casa.
O
sorriso do senhor Sete Horas desapareceu.
—Não
há mundo para se retornar, não haverá mais casa em breve. Este solo em que
pisam é um parasita, e ele corromperá parte por parte de tudo o que conhecem
até que não reste mais nada.
—Lucius
está certo. Nós não podemos lutar contra essas coisas. Não somos manifestações de nada. Somos apenas
transeuntes na carcaça de idiotas que não sabem o que está acontecendo com o
universo, portanto, é melhor escolher melhor os seus heróis.
As
palavras de Hector pareciam afrontar a sabedoria de todo um povo, residente na
mente daquele ser, não-humano, não-monstro. Eu imaginei que ele se sentiria
ofendido ou desafiado, mas ele apenas agiu com indiferença.
—Se
querem retornar... Se esperam mesmo que haja algum lugar para retornarem,
precisarão da ajuda dos herdeiros do alvorecer. Somente com suas bênçãos vocês
poderão sobreviver nesse lugar, desafiar aquilo que lhes aprisiona e recuperar
o que lhes foi tirado.
—E
onde encontramos esses caras?
—Os
herdeiros jazem na única floresta desta cidade.
Eu
refleti durante um tempo.
—Floresta?
Wyrestown não tem nenhuma floresta! Somente praças e pequenos bosques, mas nada
tão —
—Não
procure no que acredita conhecer, ou suas limitações tornarão invisíveis todas
as infindáveis possibilidades que residem à frente de seus olhos. Enquanto
procurarem pelo óbvio, o verde do encantado continuará a cintilar sob seus pés.
Ele
voltou a caminhar, mas um de seus braços apontou para o hotel onde estávamos
hospedados.
—Já
é hora de retornarem.
Eu
podia jurar que o museu ficava muito mais longe do hotel do que pareceu, mas
preferi ignorar.
Suzan
soltou as mãos da cega novamente, deixando-a desenhar em liberdade.
—Senhor
Sete Horas... O que esses herdeiros vão nos oferecer?
—A
única coisa que mundo algum pode ignorar, mas muitos assim o fazem: magia.
Hector
riu alto.
—Ah,
tá bom. Depois de toda essa loucura que eu tenho visto, agora um cara me diz
que existe magia!
Eu
tive certeza de uma coisa: nunca em toda minha vida conheceria um homem tão
cético quanto Hector.
—Senão
pela mágica, meu caro Hector, como é possível para o senhor sobreviver ao mais
caloroso dos fogos?
E,
sem que ninguém percebesse como, Hector foi envolto por chamas. Era um fogo
cristalino e fátuo, uma chama de coloração branca, que se alternava do verde
para o azul de acordo com a força do vento, mas não o feria.
Sete
Horas estalou os dedos, e as chamas desapareceram.
—Desejo-lhes
boa sorte.
—Espere
—
Antes
que eu pudesse dizer qualquer coisa, Sete Horas havia desaparecido no ar.
Entramos
de volta ao nosso quarto, surpreendendo a recepcionista do hotel, que sequer
sabia que tínhamos saído. Arrumamos nossas coisas, decididos a acordar cedo no
dia seguinte, antes das sete horas,
para tentar encontrar o caminho para a única floresta de Wyrestown.
A
cega se deitou, deixando para trás o desenho incompleto de uma árvore nos
esgotos.
Antes
de fechar os olhos, olhei uma última vez para o relógio-despertador.
Eram 2h41 da manhã.
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