sábado, 5 de janeiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 2 / Ato IV

Parte 2
INFINITO EM UM INSTANTE

IV


Eu fui o primeiro a acordar e, ao abrir os olhos, vi somente escuridão.
—Olá?
Tentei me mover, esbarrei em alguém.
—Qual é cara, me deixa dormir?
Era Lucius.
—Lucius, acorda.
—Você já me acordou uma vez —
—É sério, acorda. Nós não estamos mais no hotel!
—Dá para as duas mocinhas pararem de falar alto, eu tô tentando dormir.
Aquela era a voz de Hector, e veio de algum da mesma escuridão.
—Nós estamos presos!
Estiquei os braços, a distância das paredes era menor do que isso. O ar começava a faltar.
—Onde nós estamos?
—Fica quieto cara, eu tava sonhando com aquela loira da novela e —
—Acorda, porra! Vocês querem morrer sem ar aqui?
Lucius bocejou.
—Que merda é essa?
—Nós estamos presos!
Eu estiquei os braços numa direção aleatória, não encontrei ninguém. Levantei a perna, desajeitado, e chutei o espaço demarcado pelo alcance de minhas mãos, atingindo o que me pareceu madeira.
—Alguém nos tira daqui! Socorro, nos tirem daqui!
—Por que essa mocinha tá... Ei, espera aí.
Só então Hector percebeu que eu falava a verdade, e a loira da novela era somente uma alucinação.
—Nós estamos presos!
—Ah, jura? Quase não percebi! Me ajuda a bater nessa coisa, ou nós vamos —
Antes de terminar as minhas palavras, a madeira à nossa frente se abriu, revelando ser uma porta, e todos nós caímos num piso azulejado de coloração cinzenta. Estávamos num armário velho, um pequeno depósito onde eram estocadas as vassouras inutilizadas, bem como outros materiais surrados e fora de uso.
Ao encontrar o chão, a primeira coisa que vi foram dois pés femininos, calçados num sapato confortável.
—Por que vocês se esconderam?
Suzan parecia estar assustada. Ela estava vestida como anteriormente, assim como nós todos, por mais que tivesse em minha mente a lembrança de tirar as roupas mais desconfortáveis para deixar o sono mais agradável. Ao seu lado, a cega rabiscava um papel com seu giz colorido e, dentre todos nós, ela parecia ser a única a não se surpreender com aquela situação toda.
—Nós não nos escondemos.
—Eu acordei aqui, sozinha. Achei a garota por sorte. Merda, onde a gente tá?
Eu olhei ao redor, estudando cada canto daquela localidade, iluminada somente por luzes de emergência. Era familiar. Demorei um tempo para me situar, mas logo tive certeza de minha afirmação.
—É o museu de Wyrestown.
—O museu?
—Exatamente. Eu tenho certeza, estamos no museu.
—Tá, claro. Nós dormimos num hotel, então acordamos num museu, eu aqui, do lado de fora, e vocês no depósito de vassouras? Agora eu entendo porque as pessoas têm se atirado de prédios!
—Você está bem?
—Sim, mas —
Hector interveio.
—Desculpa atrapalhar a conversa amigável de vocês dois, mas se nós realmente estamos no museu, o alarme desse lugar está prestes a disparar, e acho que não é aconselhável estar aqui dentro quando isso acontecer. Sabe como é, eu já fui confundido com um crimino uma vez. Não quero ser preso injustamente esse mundo também.
—Hector tem razão. Nós temos que arrumar um jeito de sair daqui, e rápido. Devem haver seguranças espalhados pelos corredores, e bom, não creio que tenhamos uma explicação boa para estarmos aqui.
—Valeu, Lucius. Alguém precisava concordar comigo, uma vez pelo menos.
Lucius acenou, irônico.
Eles estavam certos. Nós precisávamos sair. Precisávamos voltar para o hotel, recuperar as nossas coisas que ficaram para trás. Mas como chegamos ali?
—Ei, garota.
A cega se virou para mim, e eu pude ver o contorno de seus olhos através da venda.
—Por que todo mundo está assustado?
—Porque a gente pode ver toda essa merda que tá acontecendo. Falando nisso, você percebeu algo de estranho ocorrer? Alguém nos tirar do quarto, coisa do tipo.
—Não.
Hector socou uma parede.
—Cara, se a mais atenta do grupo não viu, é porque não aconteceu. Vamos sair daqui.
Ele seguiu por uma porta entreaberta, cauteloso para uma possível vigília, e nós o acompanhamos, aproveitando a movimentação de alguém que se tornou sorrateiro por puro instinto de sobrevivência. Imagino que, na cadeira, você tem que ser muito ágil, ou muito forte. Hector me parecia as duas coisas.
Passamos pela porta de chapa, chegando à ala das exibições de dinossauros. Eu me lembrava dessa exposição no hall de entrada do térreo, mas não havia nenhuma porta de saída por ali, o que me fez presumir que aquele era o primeiro andar. Precisávamos encontrar uma escadaria para descer, pois só encontraríamos uma saída no andar inferior.
Foi quando escutamos passos.
De início, me pareceram pequenas batidas nas paredes, ou mesmo o tique-taque de um relógio, mas logo percebi que o som vinha de sobre nossas cabeças. Olhei para o teto, mas nada encontrei. Examinando a parte superior do cômodo, notei uma portinhola que levaria ao sótão do museu.
Lucius puxou a escada próxima à portinhola.
—Eu vou examinar.
—Você é louco? A gente tem que sair daqui.
—Escuta esse barulho, são passos! Pode ter alguém em perigo lá em cima! Pode ser um dos nossos, acordando num lugar desconhecido também! Como você pode ser sangue frio assim?
Ele subiu os três primeiros degraus da escada, e Suzan se aproximou para escorá-la.
—Victor.
Era Hector quem me chamava.
—Diz aí.
—Vamos ver o que tem nessa sala ao lado. Deixa esses dois procurarem sobreviventes de um apocalipse zumbi. Enquanto isso a gente encontra uma saída para dar o fora daqui.
Assenti, seguindo seus passos, circundando a escultura de uma ossada de tiranossauro, tão imensa quanto deveria ser um deles na realidade, e passando por uma segunda porta metálica. Examinamos o local com cuidado: era uma exposição de carros antigos. Fizemos um breve reconhecimento na área, constatando que não havia segurança algum.
—Cara, isso é estranho.
—O quê?
—Não tem guardas. Deveria ter um monte deles aqui, patrulhando os arredores com lanternas e pistolas 44 ou cassetetes, mas até agora não encontramos nenhum.
Eu fitei Hector com admiração, mas também com estranheza.
—Você pensa como um criminoso.
—O que disse?
—Deve ser por causa do tempo que passou na cadeia. Seu reflexo aumentou, mas de uma forma negativa.
—Vá a merda, cara.
Ele debruçou-se na porta de um conversível e retirou a alavanca que movia a cobertura, um apetrecho de metal polido, com uma das pontas quebradas formando uma espécie de lâmina. Aquela era sua arma de improviso.
—Não é pensar como criminoso. É saber sobreviver. Atrás das grades, só funciona a lei dos mais fortes. Você sabe o que acontece com gente que mata sua própria família. Eu fui jogado com eles, mesmo sendo inocente. Se estou aqui agora, vivo, é porque aprendi a me virar lá dentro.
Preferi não estender aquele assunto.
O teto daquele local era de vidro, o que apenas confirmava minha suspeita de que estávamos no primeiro —e último —andar. Dali, podíamos ver a noite, clara e sem estrelas. Um relógio de parede marcava 2h40 da manhã.
—Victor, se abaixa.
—O que?
—Se abaixa, porra!
Eu me abaixei, sem entender, e rolei para trás de um carro vermelho. Olhei para Hector, que postou o indicador sobre os lábios, me pedindo silêncio, então apontou o vidro sobre nós, onde eu pude ver a origem dos passos.
Havia três pessoas ali, duas pequenas, uma aparentemente mais gorda. Pareciam parados, como se conversassem sobre um possível plano de invasão ao local. Não conseguíamos ver seus rostos, o que dificultava quaisquer deduções.
—O que você acha?
Eu sussurrei, temeroso, e Hector me respondeu ainda mais baixo.
—Acho que a gente tá fodido.
Procurei ao meu redor por algo que pudesse utilizar de arma e encontrei, numa maleta de socorros para automóveis, uma chave inglesa.
Atrás de nós, Suzan gritou.
—Suzan!
—Fica aqui, bancário! Eu vou ver o que aconteceu!
E desde quando ele dava as ordens?
De qualquer modo, eu fiquei, esperando para saber o que tinha acontecido na outra câmara, e minha desatenção me fez perder os homens que caminhavam sobre os vidros. De súbito, como um estouro no silêncio, o teto sobre mim desabou como uma explosão, deixando chover cacos afiados em minhas costas. Os três caíram ali, bem próximos, e eu me levantei, a chave inglesa em mãos, preparado para enfrentar três homens, mas não havia homem algum.
E, para ser sincero, eu nem sabia o que eram aquelas coisas, e preferia muito bem nunca descobrir.
Eles pareciam mortos, com pedaços podres caindo de seus corpos desgastados, e nenhuma pele cobria as camadas inferiores e vermelhas de seus membros. Os rostos eram apodrecidos, deixando os dentes surgirem nos maxilares sem carne, e línguas enormes despencarem como pêndulos de carne morta.
Dois deles eram franzinos, pouco menores do que eu, mas o terceiro era uma aberração sem igual, com um braço atrofiado, similar a uma bexiga murcha, e o outro membro inchado a ponto de sobrepujar seu corpanzil, e ele urrava como um leão esfomeado.
Os três avançaram em minha direção, e eu corri sem pensar duas vezes.
—Fujam! Fujam!
Minhas palavras deixaram os demais atentos, e era esta a intenção. Eles não viam aquilo que me perseguia, sequer sabiam se realmente existia algo, mas achei melhor assim. Olhei de relance, percebi que todos estavam bem, e isso incluía Suzan, responsável pelo grito que escutara há pouco, possivelmente um alarme falso. Teria tempo para descobrir depois, se houvesse um depois.
—Por aqui.
Hector nos guiou para uma porta até então fechada, arrombando-a com um chute bem colocado. Descemos um lance de escadas e alcançamos o térreo, fechando a porta atrás de nós para retardar os perseguidores.
—A saída! Vamos embora!
Investi contra o vidro que nos separava do exterior do museu, ricocheteando e quedando para o solo sem entender o que acontecera. Levantei-me com velocidade, golpeando com a chave inglesa que tinha em mãos, mas pancada alguma parecia capaz de alcançar o vidro.
—Alguma coisa está repelindo os ataques!
—Me deixa tentar.
Hector chutou, socou, bateu com a manivela que quebrara anteriormente, sem surtir efeito algum.
—Que merda é essa?
A porta atrás de nós estava prestes a ceder.
—Precisamos continuar, deve haver outra saída.
Lucius apontou uma porta.
—Por ali.
E nós o seguimos, sem escolhas, as criaturas logo atrás de nós. Suzan gritava, assustada, mas a cega a seguia com um sorriso, como se aproveitasse de uma noite do terror num parque de diversões. Às vezes, vê-la desse modo me fazia sentir raiva da garota, mas eu sabia que não poderia julgar uma criança pela irresponsabilidade.
Chegamos a uma sala de quadros, onde holofotes miravam as obras de arte mais valiosas, e foram estes mesmos cones de luz que irradiaram nossos caçadores, revelando suas formas tenebrosas para que todos pudessem ver. Ali, iluminados pelo dourado das lanternas de grande proporção, percebi que eles tinham veias e nervos à mostra, bem como espinhos na cabeça calva e nos peitorais despidos.
Passamos por outro corredor de transição, alcançando uma nova câmara de exposições, e ali encontramos aparatos medievais sobre armaduras modeladas. Indiquei para que Suzan e a garota se escondessem atrás das armaduras, das quais tirei uma maça e uma espada, entregando a lâmina para Hector. Lucius pegou um escudo largo e se posicionou na frente da porta, formando uma nova parede.
Eu não fazia ideia de como lutar com aquela coisa.
—Você sabe como usar isso?
Lucius bufou, em resposta.
—Se for como eles descrevem nos livros de história, sei perfeitamente.
Ou seja, não.
A primeira das criaturas saltou por sobre Lucius, dando de encontro com a espada de Hector, a qual trespassou sem perceber. Mesmo perfurado pela espada, a criatura ainda se debatia, jogando o ex-presidiário de um lado para o outro da câmara, sem que ele soltasse o cabo de sua arma. O segundo monstro chocou-se contra o escudo do professor, e o impacto o fez recuar, girando a proteção no ar e, num golpe de sorte, caindo sobre o ser com parte da placa metálica fincada em seu torso.
—Mate-o!
Ele fazia força demais para manter o monstro preso. Suas palavras eram para mim.
—O que?
—Anda logo, ou ele vai escapar!
Eu corri, levantei a maça acima da cabeça e a baixei, com toda minha força.
Acertei o chão.
—Droga.
A criatura empurrou Lucius para trás, avançando sobre mim com parte do corpo aberta, despejando órgãos e carne podre. Eu a atingi com a maça, mas a arma escapou de minhas mãos, e eu caí contra várias armaduras.
Quando dei por mim, percebi que Lucius fugia, retornando para a sala dos quadros após se apavorar com a presença da maior das criaturas. Ainda estava zonzo, caçando um pedaço de metal qualquer no chão, mas a criatura que me enfrentava não estava mais lá. Ela fora esmagada pela brutalidade do terceiro, que avançava com ferocidade contra as paredes, sem se importar com um alvo em específico. Tudo era um alvo em potencial, tudo tinha de ser destruído, e ele avançava, derrubando as defesas de Suzan e da garota, atirando contra uma das paredes o monstro enfrentado por Hector.
Naquele momento, eu pensei que morreria. Minhas pernas não respondiam, sequer meus braços, todos trêmulos pelo pavor daquele ser. Eu tinha uma arma em mãos, mas era somente isso, um objeto sem uso algum nas mãos de um covarde. Reparando ao meu redor, vi que Hector saltara para trás de uma catapulta. Suzan e a cega encontraram um banheiro e se esconderam da melhor maneira que puderam.
Eu fiquei ali, paralisado.
Morreria assim, sem nem poder gritar?
Eu fechei os olhos.
Escutei gritos, rosnados furiosos, grunhidos, ganidos, então silêncio. Depois do silêncio, passos. Pequenos, humanos, sem pressa ou ferocidade, apenas passos comuns, de quem desfila, de quem caminha somente por caminhar.
Abri os olhos, e vi que o corpo do monstrengo estava atirado à minha frente, inerte.
—Victor! Você está bem?
Era Lucius.
Ele voltara pelo mesmo caminho pelo qual fugira. Por um momento, senti raiva dele por nos abandonar, mas sua justificativa era boa. Eu também quis fugir, mas não pude. Meu medo não permitiu nem isso.
—Eu... estou bem, sim.
—E os outros?
—Eles se esconderam. Lucius, o que aconteceu aqui?
Só então percebi que havia outra pessoa naquela sala. Ele tinha um chapéu negro na cabeça, e longos cabelos escuros caídos por sobre uma capa sombria que arrastava no chão. Suas mãos deslizavam pelo ar como uma dança sem sentido e, eu pude jurar, algumas coisas se moviam sem que fosse necessário seu toque.
—Ache os demais. Vou esperar por vocês no hall de entrada.
Sua voz era grave como o vento de uma tempestade.
Sem dizer mais nada, ele se retirou.
Hector deixou seu esconderijo, tão confuso quanto eu. Aproveitei a brecha para chamar Suzan e a cega no banheiro.
—E os monstros?
—Um homem estranho os derrotou. Digo, estranho mesmo.
—Alguma coisa ainda pode ser mais estranha do que tudo isso que tem acontecido?
Era uma pergunta que eu jamais saberia responder.
—Quem era aquele cara?
Lucius deu de ombros.
—Ele estava lá quando eu... quando eu fugi. Ele me encontrou, disse que eu não deveria abandoná-los, mesmo sendo um merda, pois isso só provava que eu era uma merda ainda mais fedorenta.
—Legal esse cara, não?
—Ele nos salvou. Não acho que precisamos ter medo, pelo menos por enquanto.
E que escolha tínhamos?
Ajeitamos as coisas, respirando um pouco após a perseguição, e então voltamos para o hall de entrada. Lá estava ele, parado em frente à porta de vidro que, por incrível que pareça, estava aberta, deixando a luz da lua e o vento da madrugada acariciarem as roupas pesadas daquele estranho.
—Como vão?
Era uma pergunta calma demais para aquela situação.
Hector tomou a frente.
—Quem é você?
Ele se virou, tinha um sorriso no rosto. Com a luz da lua, podíamos vê-lo com perfeição, e ele então tirou o chapéu, deixando a mostra uma grande cicatriz horizontal sobre seu nariz, um risco sob ambos os olhos, e estes eram os mais estranhos: as íris, esferas de simetria perfeita, eram do castanho mais escuro que imaginei encontrar na vida, e cada uma de suas íris era um relógio de ponteiros, e ambos os olhos estavam travados no mesmo horário: sete horas.
—Há muito nesse lugar que não possui nome algum, como já devem ter percebido. Se precisam de uma alcunha para me simbolizar, que esta seja senhor Sete Horas.
—Meu nome é —
—Eu não me importo com o nome de vocês. Guardem tal informação para quem desejar conhecê-la. É uma bela noite. Aceitam me acompanhar por um passeio?
Ele deixou o museu para trás, e nós o seguimos a alguns passos de distância.
—Senhor Sete Horas.
Eu estava um pouco inseguro quanto àquele homem.
Ele acenou, indicando que eu poderia falar.
—Por que nos salvou?
—Eu não os salvei. Apenas atrasei um evento que ainda pode ocorrer, caso se deixem levar por armadilhas e distrações. Ainda é cedo para que possam se defender, e é por isso que estou aqui.
—Eu não entendo.
—Todos aqueles que estão contra a Decrépita são meus aliados.
Franzi o cenho, confuso.
—Decrépita?
Eu pensei tê-lo visto se virar, mas ele já estava ao meu lado, com seus olhos de ponteiros bem próximos aos meus.
—Não sabem sobre o mal que assola este mundo?
Fiz que não, incapaz de responder.
Ele girou no lugar, e então voltou à sua posição de origem, caminhando à nossa frente.
—Decrépita não é um ser, mas sim um conceito. Ela é uma entidade, uma existência. Existir é, de longe, incomparável ao singelo ato de viver, e assim Decrépita existe, vagando e se alimentando quando necessário.
A cega tinha um desenho em mãos. Ela entregou para Suzan, que então me entregou. Era uma esfera, e dentro dela havia outra esfera, mas esta segunda tinha uma bocarra animalesca. Passei o desenho para as mãos de Lucius, e ele o entregou para Hector.
—Ela habita os confins do mundo que deseja devorar, como um parasita, e assim cria a Terra de Baixo, um reflexo doentio do povo que deixará de existir em sua empreitada. Ali, reside sem forma física, vaga no ar e na mente e em cada sombra, até que se complete, capturando uma a uma das almas da Terra de Cima, deixando-as no desespero do espelho de suas vidas, até que, entre estas, encontre a sua contraparte.
Aquilo parecia confuso demais para que alguém entendesse. Tão confuso que, por mais que eu me esforçasse, parecia impossível acreditar.
—E ela encontrará, se querem saber. Ela logo encontrará sua contraparte, uma vida fora de lugar no seu mundo e, quando isso ocorrer, tudo será perdido.
Ele se virou, mostrando com seu dedo a cicatriz em seu rosto, um corte profundo, intenso, com uma história tão dolorosa que era impossível imaginar.
—Como aconteceu no seu mundo.
Eu falei sem perceber, e ele assentiu, sereno.
—Assim, mantenho meus dizeres: todo aquele que afronta a Decrépita é meu aliado.
Eu pensei em falar, mas as palavras de Suzan soaram antes das minhas:
—E o que é você, senhor Sete Horas? Você vive ou existe?
Mais uma vez, aquele estranho homem voltou a caminhar, tomando certa distância de nossos passos.
—Não vivo, sequer existo. Eu represento. Personifico, manifesto, encarno, simbolizo. Uma vez antes, um mundo foi devorado, e toda sua existência deixou de existir num único instante. Mas, num instante antes desse último instante, toda a existência pensou numa mesma coisa: vingança. O mundo a odiou, repugnou Decrépita com todas as suas forças, ansiou por sua queda, por sua derrota, por sua morte, por mais que morte seja um privilégio que somente os vivos possam obter.
Ele parou de andar, e nós o imitamos. Com as mãos nos bolsos de sua capa, ele concluiu:
—O desejo por vingança daquele povo foi tão forte que se tornou carnal, material, vívido. Assim eu tomei forma, originado na crença de tantas almas chorosas, nascido do sofrimento, da extinção.
Tantas teorias que julgávamos insanas apontavam, através de estudos cada vez menos lógicos, para a força do acreditar, o potencial que as pessoas possuíam em seus pensamentos, a força que a vontade de tantos poderia conceber, e isso estava presente em nosso mundo, em filmes e livros, mas aquilo não era um filme ou livro.
Quem nos falava era o conceito de vingança de todo um universo que não mais existia.
Lucius pigarreou.
—Interessante sua existência, senhor Sete Horas, mas acredito que tenha nos entendido erroneamente. Não estamos contra a Decrépita. Não somos heróis, não somos cavaleiros em armaduras cintilantes. Sequer podemos enfrentar monstros como aqueles, você mesmo pôde comprovar. A única coisa que queremos é fugir, ir embora, voltar para nosso mundo, para nossa casa.
O sorriso do senhor Sete Horas desapareceu.
—Não há mundo para se retornar, não haverá mais casa em breve. Este solo em que pisam é um parasita, e ele corromperá parte por parte de tudo o que conhecem até que não reste mais nada.
—Lucius está certo. Nós não podemos lutar contra essas coisas. Não somos manifestações de nada. Somos apenas transeuntes na carcaça de idiotas que não sabem o que está acontecendo com o universo, portanto, é melhor escolher melhor os seus heróis.
As palavras de Hector pareciam afrontar a sabedoria de todo um povo, residente na mente daquele ser, não-humano, não-monstro. Eu imaginei que ele se sentiria ofendido ou desafiado, mas ele apenas agiu com indiferença.
—Se querem retornar... Se esperam mesmo que haja algum lugar para retornarem, precisarão da ajuda dos herdeiros do alvorecer. Somente com suas bênçãos vocês poderão sobreviver nesse lugar, desafiar aquilo que lhes aprisiona e recuperar o que lhes foi tirado.
—E onde encontramos esses caras?
—Os herdeiros jazem na única floresta desta cidade.
Eu refleti durante um tempo.
—Floresta? Wyrestown não tem nenhuma floresta! Somente praças e pequenos bosques, mas nada tão —
—Não procure no que acredita conhecer, ou suas limitações tornarão invisíveis todas as infindáveis possibilidades que residem à frente de seus olhos. Enquanto procurarem pelo óbvio, o verde do encantado continuará a cintilar sob seus pés.
Ele voltou a caminhar, mas um de seus braços apontou para o hotel onde estávamos hospedados.
—Já é hora de retornarem.
Eu podia jurar que o museu ficava muito mais longe do hotel do que pareceu, mas preferi ignorar.
Suzan soltou as mãos da cega novamente, deixando-a desenhar em liberdade.
—Senhor Sete Horas... O que esses herdeiros vão nos oferecer?
—A única coisa que mundo algum pode ignorar, mas muitos assim o fazem: magia.
Hector riu alto.
—Ah, tá bom. Depois de toda essa loucura que eu tenho visto, agora um cara me diz que existe magia!
Eu tive certeza de uma coisa: nunca em toda minha vida conheceria um homem tão cético quanto Hector.
—Senão pela mágica, meu caro Hector, como é possível para o senhor sobreviver ao mais caloroso dos fogos?
E, sem que ninguém percebesse como, Hector foi envolto por chamas. Era um fogo cristalino e fátuo, uma chama de coloração branca, que se alternava do verde para o azul de acordo com a força do vento, mas não o feria.
Sete Horas estalou os dedos, e as chamas desapareceram.
—Desejo-lhes boa sorte.
—Espere —
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Sete Horas havia desaparecido no ar.
Entramos de volta ao nosso quarto, surpreendendo a recepcionista do hotel, que sequer sabia que tínhamos saído. Arrumamos nossas coisas, decididos a acordar cedo no dia seguinte, antes das sete horas, para tentar encontrar o caminho para a única floresta de Wyrestown.
A cega se deitou, deixando para trás o desenho incompleto de uma árvore nos esgotos.
Antes de fechar os olhos, olhei uma última vez para o relógio-despertador.
               Eram 2h41 da manhã.

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