VI
Ela
era linda demais para ser descrita.
Seus
cabelos eram folhas e flores, e toda a sua roupa era feita dos mesmos
materiais, um longo vestido florido, cujas bordas de pétalas deslizavam pelo
solo conforme ela dançava seus passos.
—Quem
é você?
Lucius
perguntou por estar impressionado, não por medo. A sensação oferecida por
aquela mulher, por aquela presença, era de uma calma impossível de ser
descrita.
—Eu
sou as folhas e as flores, o vento e a chuva, as cores e formas. Eu sou aquela
que nasce da neve, que faz florir o calor que em breve fará do mundo um lugar
terno e brando, aquela que envolve a todos num abraço perfumado e carinhoso.
Eu
entendia pouco do que ela falava, mais preocupado em admirar cada segundo
daquela existência tão magnífica, de curvas simétricas, de dotes ajeitados, de
perfeição mais que perfeita. A cada respiração, sentia infindáveis perfumes, a
mente banhada por tantas cores quantas existiam em todo o mundo ao meu redor.
Por
fim:
—Eu
sou a Primavera.
Ela
não nos disse, mas todos nós sabíamos que ela era uma das herdeiras. Talvez
fosse a mais bela, pois beleza maior do que aquela era simplesmente
inacreditável. Primavera, como herdeira do alvorecer, não era uma simples
mulher, não era sequer humana. Ela era um ser vivente, como uma deusa, como uma
divindade superior ao mundo que habitávamos, responsável pela estação das
flores, das cores e da brisa perfumada.
—Aqueles
que buscam pela mágica necessitam de um justo motivo para que possam
alcançá-la. O que os traz até aqui?
A
Cega desenhava Primavera em seu bloco de folhas, mesmo sem vê-la, e aquele era
seu modo de demonstrar a admiração que possuía. Ao seu lado, Suzan estava tão
impressionada quanto todos nós, mas foi ela quem falou:
—Sete
Horas nos indicou o caminho. Precisamos da mágica para sobreviver na Terra de
Baixo. Precisamos dela para retornar ao nosso lar.
—São
vocês sobreviventes, pelo que entendo. Sobreviventes do acaso de ruptura de
Decrépita. Ainda me entristeço ao saber da empreitada desvairada de tal
entidade, cuja finalidade não é outra senão a de se alimentar, de viver, de
manter-se viva.
Eu
me senti um pouco confuso. Pensei em fazer uma pergunta, mas Hector foi mais
rápido.
—Não
me importo com o que ela quer fazer. Por mim, ela pode até conseguir. Eu só
quero voltar para a minha casa.
—E
novamente se tornar um alvo de críticas e olhares, se me permite dizer. O que
há de tão ruim na Terra de Baixo? Alguns sobrepujaram seus status, e hoje são
muito melhores. Azarado é aquele que fora algo bom, e aqui se encontrou em
decadência.
—Eu
prefiro minha vida antiga, por mais imunda e podre que ela possa ser. Não tem
nada melhor do que o nosso lar. Foi algo que aprendi desde minha infância.
Primavera
sorriu, e seu sorriso era ainda mais apaixonante do que sua beleza, tão
encantador quanto o ocaso deslumbrado entre montanhas e o mar aberto.
—Bela
motivação. Todos fazem o necessário para que suas vidas prossigam nos degraus
da existência. Indagando-me de tal forma, reflito sobre a Decrépita e sua
malevolência. Se ela necessita disso para viver, como podemos incriminá-la por
isso?
Engoli
em seco. As palavras de Primavera faziam sentido. Decrépita não estava
destruindo mundos por pura diversão. Ainda que antagonista, ela precisava de
universos para sobreviver, precisava de poder para existir. Não era um crime.
Não era uma malícia exacerbada, uma maldade impura nascente de um coração
gelado. Ela era aquilo e, como aquilo que era, tinha de matar para viver.
—Não
acho justo que milhões desfaleçam para que somente um se mantenha em pé.
As
palavras de Suzan pareceram firmes demais, o que me surpreendeu.
—Certamente
que não. Mas e se esta fosse a sua vida, donzela? E se fosse você, ou algum de
vocês, a precisar de tantas vidas para que dessem continuidade à sua? O que
fariam?
Pensei
por um minuto. Obviamente, homens, como homens que são, fariam qualquer coisa
para que seus dias fossem prolongados, para que os minutos do viver se
perdessem nas contas do infinito.
Pigarreei
antes de responder:
—Não
podemos culpá-la, realmente. Ela não faz por mal, em termos, mas faz o mal por
fazê-lo.
—Não
pensem que estou a defendendo, meus caros, mas nós, os Herdeiros do Alvorecer,
presenciamos coisas que vocês sequer sonhariam. Em tantas andanças pelo
infindável, entendemos muito da existência, muitos dos caminhos fazem sentido
sem que isso seja possível. Não a defendo, pelo contrário, mas ainda enxergo
aquilo que a motiva a fazer o que é feito.
A
Cega terminou seu desenho, e Suzan o pegou para admirar. Pude ver de relance.
Parecia perfeito.
Lucius
tomou a frente.
—É
por isso que não desejamos seu mal. Decrépita não é assunto nosso. Só queremos
recuperar nossas antigas vidas, nada mais. Não somos heróis, como bem dissemos
a Sete Horas. Se ainda existe alguém que acredita nisso, é melhor que deixe de
sonhar.
—Tantos
outros antes foram capturados. Nenhum deles foi capaz de descobrir o que lhes
acontecia, muito menos de fazer algo para evitar as estranhezas que lhes
cercavam. É por isso que estamos aqui. Fazendo aquilo que o homem-relógio
disse, teremos maior facilidade em nosso caminho. Não que eu acredite na magia,
mas foda-se. Eu preciso dela, ou disso que vocês podem nos oferecer, e farei de
tudo por isso.
Primavera
deixou-se sorrir, apesar do desrespeito demonstrado por Hector.
—Que
assim seja. Admiro a valentia presente em cada um de seus corações, mas não
acredito que somente ela seja o suficiente. Façam o melhor, no entanto. Por
vocês, por seus objetivos, por desejos ou pelo mundo, somente façam o melhor. O
resto não é importante.
Ela
soprou com suavidade, e a brisa nos trouxe uma pétala rosada, brilhante e
manhosa, que se acomodou na palma de cada mão.
—Isto
que agora têm em mãos é minha benção, e com ela têm direito à mágica que os
herdeiros podem lhe oferecer. Existem outros, no entanto, e cada um deles é
unicamente responsável por seu julgamento. Em minha mente, a voz do interior
clama para que vocês se tornem reais diante do universo, para que recebam o dom
que tantos sonhos, mas a mente de meus irmãos pode pensar de maneira diferente,
o que me impede de lhes oferecer algo além de minha benção.
Primavera
se curvou com elegância, um gesto que teve de ser retribuído até mesmo por
Hector, por menor que fosse sua educação.
—Cacem
as demais, obtenham todas, e assim serão merecedores de tais virtudes. Estarei
aqui, diante de todas as flores, ocultando minhas preces para que o sucesso que
almejam seja possível.
Ela
girou no lugar, e o perfume encantou minhas narinas. Fechei os olhos, sonhei
com um bosque de flores de arco-íris e, quando os reabri, ela não mais estava
lá.
As
árvores agora tinham folhas amarelas.
—Ainda
é o mesmo lugar?
Suzan
olhava ao redor, confusa.
—Quem
sabe? Na verdade, não faz muita diferença. Que seja o mesmo, que seja outro.
Estamos num lugar diferente do comum, um lugar nenhum, em lugar algum.
—E
desde quando você é filósofo, Victor?
Dei
de ombros.
Um
homem se aproximava de nós, trazendo consigo o Calor, e o Calor não era um
simples calor, mas sim o maior dentre todos eles. Nas mãos daquele homem, uma
esfera brilhava imponente, e sua luz parecia capaz de cegar-nos com facilidade,
mas ela estava ali, serena, tão calma quanto a brisa de Primavera.
O
homem vestia uma armadura vermelha, tão vermelha quanto seus cabelos, quanto as
sardas em sua pele clara, quanto o brilho de seus olhos. Sua simples visão era
quente como uma tarde de sol fervente.
—Há
tanta vida por sob o sol quanto há por sob o mundo. As vidas são as mesmas, tão
idênticas, tão distintas. Tão monótonas.
Ele
se curvou, e nós retribuímos sem perceber. Era quase uma obrigação, mas não era
algo ruim. A sensação que eu tinha era a de realizar uma vontade interna,
gritar um obrigado reservado há eras, sonhar acordado um pesadelo perfeito que
sempre esteve ali, adormecido, conforme eu via as estações passarem no céu,
através das nuvens, nas folhas das árvores e nas ondas do mar.
—Você
é —
Antes
que eu terminasse minha indagação, ele me respondeu:
—Sim,
eu sou. Aquele que precede o florir, que antecede a queda das folhas, que
coexiste com o mais fervoroso dos filhos dentre os herdeiros. Verão é meu nome
e minha vontade, um desejo inflamado e ardente que vento algum pode soprar para
longe.
Hector
deixou escapar uma risada.
—Essas
pessoas são meio loucas. Aqui, todo mundo age como se fosse um deus. Acordem,
meus caros, vocês não são os super-heróis como pensam, são pouco diferentes de
nós!
Eu
o olhei com desaprovação, e o mesmo foi feito por todos os outros. A Cega
continuou seu desenho, agora uma representação de Verão.
—Veja
essa garota, meu caro homem. Ela tem olhos prejudicados pelo destino rítmico, e
ainda assim enxerga tanto quanto vocês, mais do que você. O ver, o abrir os olhos, nada disso importa para
aquele que reprime as verdades pela incredibilidade, pelo ceticismo, por se
afastar do melhor e afrontar o que não lhe serve de nada.
Hector
nada disse. Suas palavras foram incineradas por uma entidade poderosa, parte
sol, parte inferno.
—A
concepção de seus dizeres se perde no perfeito, distorcida pela fraqueza de um
subconsciente irreparável. É como vocês vêm o paraíso, a terra das recompensas,
a maior das mentiras da humanidade.
—O
paraíso?
Verão
caminhou de um lado para o outro, pensativo. Coçava o queixo com suas manoplas
escarlates, apontava nuvens e estrelas. O sol ainda rutilava em sua mão,
diminuto, mas não menos admirável.
—O
paraíso não existe, nunca existiu e nunca existirá. O que há depois é o mesmo
que há antes, mas não é isso o que nos importa. Paradiso, este sim, esta é a
terra que têm de entender, de encontrar, de admirar e repugnar.
Suzan,
que assistia ao término do desenho da Cega, virou-se intrigada para Verão:
—E
o que seria Paradiso?
—Aquilo
em que acreditam, cujo nome se distorceu, bem como a aparência. Ali se encontra
a perfeição, e também o que de mais imperfeito existe. Pode ser o real, pode
ser a mentira, mas nenhuma mentira será pior do que acreditar que tudo após o
fim é um deleite de benevolência. Há o cruel, o timbre caótico do término de um
musical organizado, a terra da vida e da morte, onde vida e morte inexistem.
Eu
não conseguia entender.
—O
que isso quer dizer?
—No
que acredita, Victor?
Me
peguei pensando em diversas coisas, incapaz de citar quaisquer delas.
—Hoje,
em nada, pois tudo o que eu acreditava ruiu.
—E
tudo o que existe e inexiste um dia tem de ruir. Assim é Paradiso. A vida que
almejam, a vida que desprezam. Ela está lá, e há muito mais.
Eu
ainda não entendia.
—Hão
de entender quando a hora chegar. Até então, sustento as palavras de Primavera:
entendam o que é certo e o que é errado, aprendam a diferenciar. Há aquele que
se toma pelo ódio afrontando o correto, e há também aquele que se apaixona pelo
irremediável.
Ele
estendeu o sol, e o brilho nos cegou por instantes. Quando voltamos a enxergar,
tínhamos partes da estrela nas mãos, calorosas e vívidas.
De
Verão, restara somente a voz:
—Aqueles
abençoados por Primavera são merecedores de minha benção. Sigam seus destinos,
trilham o que há para ser trilhado. Peço somente que não se arrependam.
E
o calor então se foi, e as folhas começaram a cair.
Aquele
baile de sensações era peculiar. Os instantes que tínhamos para respirar, para
lembrarmos de que também existimos, eram tão sem importância que passavam
despercebidos, velozes demais, e logo já estávamos em outro lugar, com outro
herdeiro, banhados por uma mágica diferenciada.
Outro
homem se postou à nossa frente. Ele tinha orelhas pontudas e cabelos imensos,
fios lisos que se enrolavam às pernas cruzadas em sua posição confortável.
Vestido num manto de folhas secas, parte de suas roupas se solidificava,
tornando-se uma cadeira de aconchego indizível, e ele ficava ali, como um rei
em seu trono, soprando uma fumaça castanha na forma de espirais.
—Tenho
em mente que, a esta altura, vocês devam se perguntar sobre a tolice dos
herdeiros em acreditar que há um motivo justo por trás das ações de Decrépita.
A
forma súbita como ele abordou tal assunto me surpreendeu, e fez o mesmo aos
demais, pois mesmo Hector foi incapaz de disparar quaisquer de suas bravatas
costumeiras.
—Outono,
este que vos fala, pensa diferente. Eu acredito em sabedoria, e sabedoria não
há naquela que causa a extinção para evitar que se torne extinta. Discordo dos
demais, de todos aqueles que acreditam em tais proezas, discordo de Decrépita e
suas atitudes. Não há finalidade em sobreviver se aproveitando daqueles que
sobrevivem.
Eu
queria dizer algo, queria dialogar, fazer perguntas, mas nada pude fazer.
Sentia circular em meu sangue um ar de superioridade, uma inteligência fora do
comum, um conhecimento de milênios, de universos e mais universos.
—Um
dia antes, existiu um universo cujos segredos de todos os outros mundos foram
descobertos, escritos em livros infindáveis e postados numa biblioteca surreal.
Mas creio que vocês não saibam sobre isso, estou certo?
Fiz
que não com a cabeça. A voz parecia tão distante quanto um sonho.
—Ela
estava ali, sempre esteve. Então, quando a fome sobrepôs a consciência, ela não
mais existiu. Todo um universo ruiu diante da fome de um só ser, da vontade
inescrupulosa de uma única entidade. Que ela seja mulher, imortal ou deusa,
isto me é indiferente. Que ela seja o que quiser, mas que seja por si só, e não
pelos outros.
Vi,
nos olhos de Outono, lágrimas de um pai sem filho, de uma mãe que assiste à
morte de sua prole, de um homem que viu o sonho se realizar e, pouco tempo
depois, desmoronar num borrão de lembranças. Senti-me tomado por uma tristeza
indescritível. assolado pela dor mais perversa dentre as dores.
A
dor do vazio.
—Ainda
há um lugar onde se encontram todas as respostas. Não tão belo, não tão
organizado, mas está lá, sempre disposto a responder, a ludibriar e matar,
sempre disposto a existir. A Torre dos Murmúrios responde aquele que pergunta,
mente verdades e escarra mentiras, mas está lá, e sempre estará, num universo
que a Decrépita é incapaz de alcançar.
Eu
tentava organizar as informações, mas era muita coisa, e eu me perdia nas
palavras e nomenclaturas. Paradiso, Torre dos Murmúrios, biblioteca de
conhecimento, Decrépita, Cigano, Sete Horas, tudo voejava em minha mente, um
turbilhão confuso e disperso de gritos e sussurros.
—Em
tua Terra de Baixo há também uma torre. Quem sabe ela não vos conte o
necessário, não é?
Ele
aplaudiu, e cada um de seus aplausos fazia desmoronar todas as folhas de uma
árvore, e elas secavam e morriam, mas ele permaneceu. Pegou quatro folhas do
chão e entregou a cada um de nós.
A
Cega havia o desenhado também.
—As
folhas caem e morrem, mas a esperança não nasce numa árvore. Diferente do que
se perde, ela nascerá outra vez, e mais outra, até que sua fonte se perca em
desistência.
O
vento soprou forte, e o mundo congelou. As folhas agora eram brancas pela neve,
bem como o solo, alvo e estofado. Abracei-me pelo frio, era quase que
sobrenatural.
Outono
desaparecera sem aviso algum.
Ouvi
uma risada infantil, então outra, e uma terceira, e todas elas riam juntas.
Elas
vinham caminhando ao longe, as mãos unidas, os vestidos carregados pela neve,
arrastados numa trilha que se formava sob seus pés. Uma criança, uma
adolescente, uma adulta, todas idênticas, como se fotos de diferentes épocas de
uma mesma pessoa, como se sonhos de tempos inversos de uma única vida.
—Tudo
muda, como podem ver. Tudo já foi, é, e ainda será. Tudo.
Todas
elas falavam ao mesmo tempo, com a mesma voz, criando um coro de vozes
idênticas.
—Ao
que nasce e há de morrer, ao que morre e um dia nasceu. Decrépita assim o fez,
bem como todos nós. Ninguém nasce deus. Ninguém nasce pronto.
Franzi
o cenho.
—Quer
dizer que ela não era uma devoradora de universos?
—E
hoje ela é?
Me
perdi em sua frase.
—É
o que dizem.
—Muitos
nada dizem, poucos o fazem em silêncio. Há tantas palavras dispersas, há tanto
conhecimento perdido.
—O
que quer dizer?
Elas
giraram no lugar, numa dança bela e provocante.
—Somos
as Damas do Inverno, aquelas que nada sabem, mas que tudo reconhecem.
Representamos o que existe, existiu e deixará de existir para que reexista. O
ciclo é único, intenso e irreal, mas está ali, invisível e tão visível que
mesmo a cria sem olhares pode vê-lo.
Eu
não sabia o que dizer.
Suzan
interveio.
—Tudo
passa por fases, é isso? Tais como os herdeiros e a Decrépita, pelo que
entendi. Ou seria —
—Ela
assim o fez. Muito antes, fora bela e digna, bondosa e viva. Ela amou, foi
amada. Ela viveu o que tinha de viver, mas cresceu e não parou, cresceu e
ambicionou crescer, gostou de ser mais e mais, gostou de estar além de todos.
Lucius
perguntou:
—Decrépita
se tornou uma deusa, então?
—Ela
nasceu para ser mais, mas não o quis. Ela amou, foi amada, e com isso se
contentou. Então foi amaldiçoada, e sua maldição lhe gerou a ambição.
—Amaldiçoada?
—Por
falhar, por se contentar, por sentir-se bem e feliz.
—E
quem a amaldiçoou?
—Deus.
As
Damas do Inverno deram as mãos, circundaram o mesmo lugar numa dança alegre e
agitada.
Hector
zombou.
—Deus?
Então ele desceu das nuvens para amaldiçoar uma mulher por que ela não fez o
que deveria ter feito? Claro, faz todo o sentido do mundo.
—E
que sentido há senão o da realidade? Deuses são crianças com poderes. São
fracos, são tolos, são os juízes da existência. Não sabem nada, mas podem fazer
tudo, governantes juvenis, bebês na presidência. Isso são deuses. Crianças, nada
mais. Crianças poderosas demais.
Eu
tentava armazenar o máximo daquilo tudo, mas as palavras pareciam passar pelos
meus ouvidos como a brisa gélida daquele lugar.
Quando
dei por mim, tinha um floco de neve na mão. Ele era mais frio do que todo o
mundo congelado ao meu redor.
—Guardem
consigo minha benção, e assim serão merecedores da maior dentre as conquistas.
Lembrem-se do que aprenderam, coexistam com tal conhecimento. Pela norma do
Outono, não há sabedoria a ser desperdiçada.
Elas
terminaram a dança e se viraram, prestes a partir.
—Esperem!
Chamei
sem perceber, tomado pela dúvida.
Os
olhos das Damas do Inverno me encontraram, envolventes como uma nevasca.
—O
que aconteceu com o amor de Decrépita?
As
Damas deram as costas, prosseguindo no rumo escolhido.
—Ele
vaga numa vida sem sentido, perdido, vazio. Vaga por mundos que não são os
dele. Perdeu a esperança, a vida, a vontade e o nome, tudo isso há tempos.
Hoje, resta-lhe somente o que escolheu para si.
—E
o que foi isso?
Quase
gritei para que elas me escutassem.
A
resposta me veio aos ouvidos, como um murmúrio assombroso.
—A alcunha de Cigano.
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