Parte 3
HERDEIROS DO ALVORECER
V
Nós
estávamos quase prontos para sair, e ainda eram 6h45 da manhã. O horário
combinado fora intuitivo, mas talvez nós estivéssemos marcados demais pelas
sete horas após o encontro da noite anterior.
Por
falar em encontro, era praticamente impossível acreditar que tudo aquilo foi
real. Eu tinha mais facilidade em imaginar que toda aquela loucura fora um
sonho, ou um pesadelo, e que eu despertaria novamente em minha cama, afogado
nos beijos da minha esposa, amarrotado pelo abraço fervoroso de minha filha,
mas não foi isso o que aconteceu.
Eu
acordei com as reclamações incessantes de Hector, o que fez com que eu me
lembrasse que a minha filha e a minha esposa, naquele lugar, eram a família de
Jake.
—Na
única floresta de Wyrestown, que porra de lugar é esse? Nem tem floresta nessa
cidade de merda! Aquele cara com olhos de relógio é um canalha mentiroso, isso
sim!
—Eu
não diria isso, se fosse você.
A
voz de Cigano nos pegou de surpresa. Ele estava ali, encostado na janela do quarto,
por onde podíamos ver a rua através do primeiro andar daquele pequeno hotel.
Apoiado no parapeito, fumava um cigarro escuro e amassado, soprando a fumaça
densa para cima, na forma de argolas enuviadas.
—Legal,
claro. Eu poderia estar ali, cagando na porra do banheiro, e esse cara aparecer
para trocar uma ideia. Legal mesmo.
—É
certo que eu não me submeteria a tal ato nauseante, meu caro.
—Tá,
então engole a sua formalidade e deixa eu trocar de roupa. Aliás, se quiser
levar aquela vadiazinha sem olhos embora, seria muito bom.
—Infelizmente,
não há o que possa fazer por vocês. Mas posso lhes indicar um caminho, se
necessário for.
—Opa,
isso seria ótimo! Vai mandar a gente pra onde agora? Pra estrada de tijolos
amarelos? Para o labirinto da rainha de copas? Que tal para a casa do caralho?
—Hector.
Eu
tentei acalmá-lo, mas ele apenas bufou, voltando a arrumar suas malas.
—O
que você quer aqui?
—Ajudar,
nada mais. Pretendem visitar os herdeiros, se bem entendi, mas sequer sabem por
onde começar a procurá-los. Sete Horas não lhes disse o que fazer. É de seu
feitio agir assim.
—Velhos
conhecidos?
—Diria
que temos uma mínima rivalidade. Mas a existência de um sequer importa ao
outro, na verdade. Ele tem suas metas, e eu, as minhas.
—Tanto
faz. Onde encontramos a única floresta de Wyrestown? Porque, até onde eu sei,
não existe floresta nenhuma aqui.
A
voz de Hector veio de maneira irônica do banheiro:
—É
que a gente ainda não procurou com os ursinhos carinhosos, cara!
O
Cigano achou graça.
—Subterrâneo.
—Como?
—A
floresta fica no subterrâneo. Procurem nos esgotos. Vão encontrá-la quando for
a hora, se assim os herdeiros desejarem.
Lucius
interferiu:
—Então
são eles quem vão nos encontrar?
—Talvez.
Eles são mais do que vocês. Mais do que eu, mais do que Sete Horas. Eles
existem.
—E
não vivem, tá, já escutamos essa história antes. Se é isso o que tinha para
dizer, ajudou bastante. Agora é nossa vez de perguntar.
Eu
me assustei com o modo como Lucius falava. Antes que Cigano pudesse retrucar
algo, o professor continuou:
—Qual
o lance daquela garota?
—A
cega?
—Exato.
O que ela tem de tão importante?
Ele
deu de ombros.
—Ela
é uma chave, e nada mais. O que chaves fazem?
—Abrem
fechaduras.
—Então
é exatamente isso o que ela fará, um dia. Até lá, guardem-na. Nunca se sabe quando
as chaves serão necessárias. Às vezes, podemos nos trancar por engano, não é
mesmo?
Ele
acenou, despedindo-se, e deixou-se cair da janela. Eu observei as ruas no mesmo
momento, mas ele já não estava mais lá.
—O
que foi isso, Lucius?
—Eu
não sei, cara. Essa garota, ela é meio estranha, cá entre nós. Ela desenha as
coisas que nós vimos, ou que ainda vamos ver, como se ela soubesse de tudo!
—Isso
não é nem de longe a coisa mais estranha que vimos desde que chegamos aqui.
—Eu
sei, até aí tudo bem, mas você ouviu o tal Sete Horas falar! Ele disse que a
tal da Decrépita precisa encontrar a sua contraparte para poder devorar o
universo ou sei lá o quê.
—Você
não está pensando —
—Eu
sei lá o quê tô pensando, mas se essa garota for essa contraparte, a gente vai
se foder de verdade.
Hector
saiu, ajeitando as calças.
—Mais
ainda?
—Ela
vai comer a porra do nosso mundo!
—Vai
sim, ela e o He-Man. Cara, acorda, é só uma garota, sacou? Aquela vagabunda que
come universos é uma entidade, tipo uma deusa. Ela não seria uma garotinha
assim, ainda mais cega e inútil.
O
pensamento de Lucius não era de todo insano. Afinal de contas, por que o Cigano
desejaria tanto que nós cuidássemos daquela garota?
—Não
sei, mas acho que vale a pena ficar de olho nela. Uma coisa é certa: mesmo sem
enxergar nada, ela ainda pode ver muito mais do que nós nesse lugar, e isso é
estranho.
—Estranhos
são vocês dois.
Alguém
bateu à porta do quarto. Hector abriu, e lá estavam Suzan e a cega, prontas
para nossa expedição à floresta dos esgotos.
—Bom
dia para vocês que também acordaram decepcionados por tudo isso ser de verdade.
—Bom
dia, Suzan.
—E
então, já têm noção de onde procurar? Porque, se não tiverem, a cega nos fez um
mapa, só pra não perder o costume.
Ela
entregou um papel para mim. O desenho mostrava uma árvore sob os canos de
esgoto.
Eu
olhei para Lucius, que suspirou.
Afaguei
o cabelo da garota com uma das mãos.
—Já
que você insiste, nós vamos verificar os esgotos.
Ela
sorriu e voltou a desenhar.
Lucius
passou ao meu lado e, antes de deixar o quarto, sussurrou:
—Garota
filha da puta.
Hector
mastigou o desenho e o cuspiu pela janela.
Nós
deixamos as chaves no balcão e saímos, procurando pela entrada de esgotos de
acesso mais simples, e Hector nos mostrou um beco por onde poderíamos descer
sem que todas as pessoas ao nosso redor notassem cinco pessoas invadindo a
estação de tratamento de esgoto.
—Eu
ainda não acredito que estamos fazendo isso.
Abrimos
a portinhola metálica com dificuldade e, hesitando um pouco pelo forte odor,
descemos.
Nos
esgueiramos pelas trilhas sinuosas de placas metálicas, as quais acompanhavam
as paredes dos encanamentos, deixando a imundice da cidade correr livre entre
ambos os extremos. Eu preferia não olhar para aquele córrego de excrementos,
mas Suzan o fez, parando para vomitar duas vezes no caminho.
Não
houve muita conversa no caminhar, pois abrir a boca naquele local era uma
tortura que faria grandes criminosos confessar seus maiores segredos.
Andamos
a esmo durante algum tempo, sem nada encontrar. Hector arriscou duas ou três
piadas infames, mas logo até mesmo ele se sentiu incomodado pelo fedor que nos
assolava, mantendo-se calado durante o restante do percurso. Mais à frente,
quando eu já podia jurar que estávamos procurando feito idiotas por uma coisa
completamente inexplicável, Lucius viu um símbolo numa das paredes.
Era
um relógio palpável, riscado com uma tinta violácea que me parecia saltar da
superfície num efeito de três dimensões, por vezes fumegando quando eu me
deixava piscar. Os ponteiros principais indicavam sete horas, e um terceiro
ponteiro, mais robusto e chamativo, apontava uma direção qualquer.
Assentimos,
concordando que, se aquilo não fosse um sinal, jogaríamos a garota na merda e
desistiríamos da vida, mas a mensagem nos guiou corretamente, e então
encontramos o que existe de mais normal nos esgotos de uma cidade mediana.
Um
templo.
Claro,
todo esgoto tem um templo.
—Olha
só isso.
Eu
não pude deixar de comentar, mas percebi que o aroma próximo àquela construção
era bastante diferente do cheiro de fezes e urina que nos acompanhou até então.
Era um cheiro admirável, um perfume de hortelã e cravo e, ouso dizer, um pouco
de canela.
O
arco à nossa frente era feito de mármore, bem como os degraus que nos separavam
do interior daquela localidade. Ali, entre adornos prateados e runas sem
significado, encontrei uma expressão em latim, cujo significado me era
desconhecido.
—Respeitai
os filhos da floresta.
—O
que?
—É
o que está escrito ali. Respeitai os filhos da floresta.
Às
vezes eu me esquecia que Lucius era um professor. Mesmo que sua área fosse a
história, ele tinha um conhecimento bastante amplo sobre diversas outras
culturas e, pelo jeito, latim era uma delas.
Hector
achou graça.
—Nós
vamos respeitar todos eles, vamos sim. Aí eles vão fazer magia com a gente. E
vão transformar o meu pau num garoto de verdade, tipo a fada azul.
Ele
riu sozinho, e Suzan cuidou para que a cega não prestasse atenção no que Hector
falava.
—Cara,
pega leve nas suas piadas —
—Pegar
leve? Eu só falo a verdade, cara! Sou o típico fã da Terra do Nunca, um palerma
que senta no colo do Peter Pan e fica esperando pra ser estuprado por duendes.
Fala sério cara, se eu ficar mais um minuto nesse lugar, vou enlouquecer.
Como se ele já não
estivesse enlouquecendo o bastante
foram as primeiras palavras que vieram à minha mente, mas achei melhor suspirar
e prosseguir, sem nada dizer.
Passamos
pelo arco, e o ar pareceu mudar além dos degraus. Era mais denso, exaltando
aquele perfume natural que já nos acolhia, agora coberto por uma espécie de aura
que, por não encontrar definição melhor, me parecia completamente mágica.
Estávamos
agora num salão de entrada, e tudo ali era de mármore, inclusive as quatro
estátuas que se erguiam nas extremidades da câmara. Cada uma delas fora
esculpida na forma de uma máscara, e tais figuras representavam as estações do
ano por meio de gravuras de sóis, flores, folhas secas e flocos de neve.
Perguntei-me se os herdeiros eram assim, ligados às estações, mas não perdi
tempo debatendo internamente sobre tal presunção, pois logo teria de
conhecê-los, um a um, se tudo corresse bem, é claro.
—É
incrível, não é?
Eu
perguntei, mas ninguém me respondeu. Eu jurei que ouviria a voz de Hector com
seus comentários destrutivos, mas ela não veio.
Olhei
ao meu redor, apenas para constatar aquilo de que tinha certeza: estava
sozinho.
—Pessoal?
Onde vocês estão?
Sem
resposta.
—Parem
de brincadeira, nós temos uma coisa séria para resolver aqui. Vamos, onde vocês
se esconderam?
Achei
idiota da minha parte imaginar que eles se esconderiam. Ninguém ali, além da
cega —e de Hector, na maior parte do tempo —, era criança a ponto de fazer
brincadeiras do tipo, ainda mais em momentos como aquele. Eu estava sozinho, e
eles provavelmente também estavam.
Passei
pela única porta na outra extremidade da câmara, e me surpreendi com o que vi.
Era
uma floresta. Uma floresta de verdade, como nunca imaginei encontrar na vida.
Havia
árvores de todos os tipos, com folhas de todas as cores. Algumas tinham flores,
outras tinham frutos, e ainda havia algumas cujas folhas estavam ressecadas,
prestes a quedar.
Entre
todas elas, uma única trilha bastante cerrada se abria, como um sorriso riscado
num papel cor-de-natureza.
—Onde
vocês estão?!
Eu
gritei, fazendo um cone com as mãos, mas ninguém me respondeu. Escorei-me numa
árvore, observei o caminho que aguardava por meus passos e, sem escolha, me
embrenhei entre a vegetação.
As
árvores daquele caminho tinham galhos afiados, dispostos à frente do caminho
como agulhas armadilhadas, e eu os evitei na medida do possível. Conforme
avancei, no entanto, a trilha se mostrou um emaranhado de galhos, e eu percebi
que não poderia saltar ou desviar deles por todo o tempo. Pareciam velhos,
fragilizados pelo tempo e, assim, não poderiam me machucar, imaginei.
Esbarrei
num deles, que se quebrou ante a pressão de meu tornozelo com um único baque, e
eu não senti dor alguma.
Comecei
a sentir uma coisa estranha, algo que me pegou desprevenido e que, por algum
tempo, não sou classificar. Era tristeza. Eu me via num enterro, e o caixão aberto
tinha a imagem de Marrie, sepultada num vestido de noiva, e em seus braços
jazia a minha linda filha, Madeleine, com uma roupa igualmente especial, sem
vida, sem sorriso, sem esperança alguma. Chorei sem rumo, como criança privada
de seu doce, apoiando nas árvores para tentar evitar aquela sensação
descontrolada, em vão.
Um
passo ocorreu por acaso, e outro galho se partiu no toque de meu ombro.
Assim,
me senti feliz. Estava numa cadeira acolchoada, no mais alto andar de um
edifício, e ali todas as minhas secretárias trabalhavam nuas, oferecendo
serviços e desejos sexuais, mas eu as negava, indiferente quando a seus corpos
voluptuosos, tendo olhos somente para minha esposa, que se gabava com imensas
joias penduradas ao pescoço e exibidas nos anéis que ilustravam suas mãos
delicadas. Madeleine corria de um lado para o outro, brincando com um videogame
de realidade aumentada, e ela se vestia em ouro e prata, roupas que não eram
bonitas, mas que exalava riqueza e poder.
Um
terceiro galho me fez entristecer outra vez, e só então eu percebi o que
acontecia.
Aquelas
árvores choravam e sorriam, e eu, ao encostar em suas enfermidades, era tomado
pelo sentimento que delas nascia. Triste demais, feliz demais, correndo num
descontrole e deixando que todos os galhos se partissem em meu caminho. Eu abri
os braços, saltitei com longos passos, estiquei as pernas no limite, e chorei e
sorri e chorei outra vez, sem entender.
Caí
num amontoado de folhas, deixando-me gargalhar ao mesmo tempo em que
convulsionava pelo pranto que não me escapava da garganta.
—Victor!
Eu
ouvia aquela voz, ela era tão familiar.
—Victor!
Era
feminina, bastante bonita. Eu via cabelos vermelhos, mas não sabia dizer se
eles eram reais ou se faziam parte das alucinações.
A
minha vida era uma merda.
Mas
era a merda mais bonita de todas.
—Victor,
acorde!
Senti
dor, e isso era real. Parei de chorar e sorrir, estaquei no lugar, abri os
olhos.
Suzan
estava ajoelhada ao meu lado.
—Você
está bem?
Eu
me sentei, confuso.
—Sim,
estou. E você?
—Estou
bem. Todos nós estamos. Você foi o único que ficou desse jeito e —
—Cuidado
com as árvores!
Hector
e Lucius me olhavam com estranheza. A cega desenhava sem se importar, mas as
palavras seguintes vieram dela:
—As
árvores de sentimentos são boas ou más. Nós nunca vamos saber. Elas choram e
riem, e a gente faz o que elas mandam fazer.
—Ela
tá certa! Essas árvores são perigosas!
—Nada
na floresta é perigoso, meu bom homem. O perigo reside nos homens.
Aquela
voz não era de Suzan, muito menos de Marrie ou Madeleine. Era uma outra voz,
pertencente a uma mulher que parecia cantar cada palavra, declamando um poema
com seus olhos, entoando seus dizeres por sua beleza.
Nós nos viramos e, no mesmo
instante, tivemos certeza de que, como dito por ela, nada na floresta é
perigoso.
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