domingo, 6 de janeiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 3 / Ato V

Parte 3
HERDEIROS DO ALVORECER

V


Nós estávamos quase prontos para sair, e ainda eram 6h45 da manhã. O horário combinado fora intuitivo, mas talvez nós estivéssemos marcados demais pelas sete horas após o encontro da noite anterior.
Por falar em encontro, era praticamente impossível acreditar que tudo aquilo foi real. Eu tinha mais facilidade em imaginar que toda aquela loucura fora um sonho, ou um pesadelo, e que eu despertaria novamente em minha cama, afogado nos beijos da minha esposa, amarrotado pelo abraço fervoroso de minha filha, mas não foi isso o que aconteceu.
Eu acordei com as reclamações incessantes de Hector, o que fez com que eu me lembrasse que a minha filha e a minha esposa, naquele lugar, eram a família de Jake.
—Na única floresta de Wyrestown, que porra de lugar é esse? Nem tem floresta nessa cidade de merda! Aquele cara com olhos de relógio é um canalha mentiroso, isso sim!
—Eu não diria isso, se fosse você.
A voz de Cigano nos pegou de surpresa. Ele estava ali, encostado na janela do quarto, por onde podíamos ver a rua através do primeiro andar daquele pequeno hotel. Apoiado no parapeito, fumava um cigarro escuro e amassado, soprando a fumaça densa para cima, na forma de argolas enuviadas.
—Legal, claro. Eu poderia estar ali, cagando na porra do banheiro, e esse cara aparecer para trocar uma ideia. Legal mesmo.
—É certo que eu não me submeteria a tal ato nauseante, meu caro.
—Tá, então engole a sua formalidade e deixa eu trocar de roupa. Aliás, se quiser levar aquela vadiazinha sem olhos embora, seria muito bom.
—Infelizmente, não há o que possa fazer por vocês. Mas posso lhes indicar um caminho, se necessário for.
—Opa, isso seria ótimo! Vai mandar a gente pra onde agora? Pra estrada de tijolos amarelos? Para o labirinto da rainha de copas? Que tal para a casa do caralho?
—Hector.
Eu tentei acalmá-lo, mas ele apenas bufou, voltando a arrumar suas malas.
—O que você quer aqui?
—Ajudar, nada mais. Pretendem visitar os herdeiros, se bem entendi, mas sequer sabem por onde começar a procurá-los. Sete Horas não lhes disse o que fazer. É de seu feitio agir assim.
—Velhos conhecidos?
—Diria que temos uma mínima rivalidade. Mas a existência de um sequer importa ao outro, na verdade. Ele tem suas metas, e eu, as minhas.
—Tanto faz. Onde encontramos a única floresta de Wyrestown? Porque, até onde eu sei, não existe floresta nenhuma aqui.
A voz de Hector veio de maneira irônica do banheiro:
—É que a gente ainda não procurou com os ursinhos carinhosos, cara!
O Cigano achou graça.
—Subterrâneo.
—Como?
—A floresta fica no subterrâneo. Procurem nos esgotos. Vão encontrá-la quando for a hora, se assim os herdeiros desejarem.
Lucius interferiu:
—Então são eles quem vão nos encontrar?
—Talvez. Eles são mais do que vocês. Mais do que eu, mais do que Sete Horas. Eles existem.
—E não vivem, tá, já escutamos essa história antes. Se é isso o que tinha para dizer, ajudou bastante. Agora é nossa vez de perguntar.
Eu me assustei com o modo como Lucius falava. Antes que Cigano pudesse retrucar algo, o professor continuou:
—Qual o lance daquela garota?
—A cega?
—Exato. O que ela tem de tão importante?
Ele deu de ombros.
—Ela é uma chave, e nada mais. O que chaves fazem?
—Abrem fechaduras.
—Então é exatamente isso o que ela fará, um dia. Até lá, guardem-na. Nunca se sabe quando as chaves serão necessárias. Às vezes, podemos nos trancar por engano, não é mesmo?
Ele acenou, despedindo-se, e deixou-se cair da janela. Eu observei as ruas no mesmo momento, mas ele já não estava mais lá.
—O que foi isso, Lucius?
—Eu não sei, cara. Essa garota, ela é meio estranha, cá entre nós. Ela desenha as coisas que nós vimos, ou que ainda vamos ver, como se ela soubesse de tudo!
—Isso não é nem de longe a coisa mais estranha que vimos desde que chegamos aqui.
—Eu sei, até aí tudo bem, mas você ouviu o tal Sete Horas falar! Ele disse que a tal da Decrépita precisa encontrar a sua contraparte para poder devorar o universo ou sei lá o quê.
—Você não está pensando —
—Eu sei lá o quê tô pensando, mas se essa garota for essa contraparte, a gente vai se foder de verdade.
Hector saiu, ajeitando as calças.
—Mais ainda?
—Ela vai comer a porra do nosso mundo!
—Vai sim, ela e o He-Man. Cara, acorda, é só uma garota, sacou? Aquela vagabunda que come universos é uma entidade, tipo uma deusa. Ela não seria uma garotinha assim, ainda mais cega e inútil.
O pensamento de Lucius não era de todo insano. Afinal de contas, por que o Cigano desejaria tanto que nós cuidássemos daquela garota?
—Não sei, mas acho que vale a pena ficar de olho nela. Uma coisa é certa: mesmo sem enxergar nada, ela ainda pode ver muito mais do que nós nesse lugar, e isso é estranho.
—Estranhos são vocês dois.
Alguém bateu à porta do quarto. Hector abriu, e lá estavam Suzan e a cega, prontas para nossa expedição à floresta dos esgotos.
—Bom dia para vocês que também acordaram decepcionados por tudo isso ser de verdade.
—Bom dia, Suzan.
—E então, já têm noção de onde procurar? Porque, se não tiverem, a cega nos fez um mapa, só pra não perder o costume.
Ela entregou um papel para mim. O desenho mostrava uma árvore sob os canos de esgoto.
Eu olhei para Lucius, que suspirou.
Afaguei o cabelo da garota com uma das mãos.
—Já que você insiste, nós vamos verificar os esgotos.
Ela sorriu e voltou a desenhar.
Lucius passou ao meu lado e, antes de deixar o quarto, sussurrou:
—Garota filha da puta.
Hector mastigou o desenho e o cuspiu pela janela.
Nós deixamos as chaves no balcão e saímos, procurando pela entrada de esgotos de acesso mais simples, e Hector nos mostrou um beco por onde poderíamos descer sem que todas as pessoas ao nosso redor notassem cinco pessoas invadindo a estação de tratamento de esgoto.
—Eu ainda não acredito que estamos fazendo isso.
Abrimos a portinhola metálica com dificuldade e, hesitando um pouco pelo forte odor, descemos.
Nos esgueiramos pelas trilhas sinuosas de placas metálicas, as quais acompanhavam as paredes dos encanamentos, deixando a imundice da cidade correr livre entre ambos os extremos. Eu preferia não olhar para aquele córrego de excrementos, mas Suzan o fez, parando para vomitar duas vezes no caminho.
Não houve muita conversa no caminhar, pois abrir a boca naquele local era uma tortura que faria grandes criminosos confessar seus maiores segredos.
Andamos a esmo durante algum tempo, sem nada encontrar. Hector arriscou duas ou três piadas infames, mas logo até mesmo ele se sentiu incomodado pelo fedor que nos assolava, mantendo-se calado durante o restante do percurso. Mais à frente, quando eu já podia jurar que estávamos procurando feito idiotas por uma coisa completamente inexplicável, Lucius viu um símbolo numa das paredes.
Era um relógio palpável, riscado com uma tinta violácea que me parecia saltar da superfície num efeito de três dimensões, por vezes fumegando quando eu me deixava piscar. Os ponteiros principais indicavam sete horas, e um terceiro ponteiro, mais robusto e chamativo, apontava uma direção qualquer.
Assentimos, concordando que, se aquilo não fosse um sinal, jogaríamos a garota na merda e desistiríamos da vida, mas a mensagem nos guiou corretamente, e então encontramos o que existe de mais normal nos esgotos de uma cidade mediana.
Um templo.
Claro, todo esgoto tem um templo.
—Olha só isso.
Eu não pude deixar de comentar, mas percebi que o aroma próximo àquela construção era bastante diferente do cheiro de fezes e urina que nos acompanhou até então. Era um cheiro admirável, um perfume de hortelã e cravo e, ouso dizer, um pouco de canela.
O arco à nossa frente era feito de mármore, bem como os degraus que nos separavam do interior daquela localidade. Ali, entre adornos prateados e runas sem significado, encontrei uma expressão em latim, cujo significado me era desconhecido.
—Respeitai os filhos da floresta.
—O que?
—É o que está escrito ali. Respeitai os filhos da floresta.
Às vezes eu me esquecia que Lucius era um professor. Mesmo que sua área fosse a história, ele tinha um conhecimento bastante amplo sobre diversas outras culturas e, pelo jeito, latim era uma delas.
Hector achou graça.
—Nós vamos respeitar todos eles, vamos sim. Aí eles vão fazer magia com a gente. E vão transformar o meu pau num garoto de verdade, tipo a fada azul.
Ele riu sozinho, e Suzan cuidou para que a cega não prestasse atenção no que Hector falava.
—Cara, pega leve nas suas piadas —
—Pegar leve? Eu só falo a verdade, cara! Sou o típico fã da Terra do Nunca, um palerma que senta no colo do Peter Pan e fica esperando pra ser estuprado por duendes. Fala sério cara, se eu ficar mais um minuto nesse lugar, vou enlouquecer.
Como se ele já não estivesse enlouquecendo o bastante foram as primeiras palavras que vieram à minha mente, mas achei melhor suspirar e prosseguir, sem nada dizer.
Passamos pelo arco, e o ar pareceu mudar além dos degraus. Era mais denso, exaltando aquele perfume natural que já nos acolhia, agora coberto por uma espécie de aura que, por não encontrar definição melhor, me parecia completamente mágica.
Estávamos agora num salão de entrada, e tudo ali era de mármore, inclusive as quatro estátuas que se erguiam nas extremidades da câmara. Cada uma delas fora esculpida na forma de uma máscara, e tais figuras representavam as estações do ano por meio de gravuras de sóis, flores, folhas secas e flocos de neve. Perguntei-me se os herdeiros eram assim, ligados às estações, mas não perdi tempo debatendo internamente sobre tal presunção, pois logo teria de conhecê-los, um a um, se tudo corresse bem, é claro.
—É incrível, não é?
Eu perguntei, mas ninguém me respondeu. Eu jurei que ouviria a voz de Hector com seus comentários destrutivos, mas ela não veio.
Olhei ao meu redor, apenas para constatar aquilo de que tinha certeza: estava sozinho.
—Pessoal? Onde vocês estão?
Sem resposta.
—Parem de brincadeira, nós temos uma coisa séria para resolver aqui. Vamos, onde vocês se esconderam?
Achei idiota da minha parte imaginar que eles se esconderiam. Ninguém ali, além da cega —e de Hector, na maior parte do tempo —, era criança a ponto de fazer brincadeiras do tipo, ainda mais em momentos como aquele. Eu estava sozinho, e eles provavelmente também estavam.
Passei pela única porta na outra extremidade da câmara, e me surpreendi com o que vi.
Era uma floresta. Uma floresta de verdade, como nunca imaginei encontrar na vida.
Havia árvores de todos os tipos, com folhas de todas as cores. Algumas tinham flores, outras tinham frutos, e ainda havia algumas cujas folhas estavam ressecadas, prestes a quedar.
Entre todas elas, uma única trilha bastante cerrada se abria, como um sorriso riscado num papel cor-de-natureza.
—Onde vocês estão?!
Eu gritei, fazendo um cone com as mãos, mas ninguém me respondeu. Escorei-me numa árvore, observei o caminho que aguardava por meus passos e, sem escolha, me embrenhei entre a vegetação.
As árvores daquele caminho tinham galhos afiados, dispostos à frente do caminho como agulhas armadilhadas, e eu os evitei na medida do possível. Conforme avancei, no entanto, a trilha se mostrou um emaranhado de galhos, e eu percebi que não poderia saltar ou desviar deles por todo o tempo. Pareciam velhos, fragilizados pelo tempo e, assim, não poderiam me machucar, imaginei.
Esbarrei num deles, que se quebrou ante a pressão de meu tornozelo com um único baque, e eu não senti dor alguma.
Comecei a sentir uma coisa estranha, algo que me pegou desprevenido e que, por algum tempo, não sou classificar. Era tristeza. Eu me via num enterro, e o caixão aberto tinha a imagem de Marrie, sepultada num vestido de noiva, e em seus braços jazia a minha linda filha, Madeleine, com uma roupa igualmente especial, sem vida, sem sorriso, sem esperança alguma. Chorei sem rumo, como criança privada de seu doce, apoiando nas árvores para tentar evitar aquela sensação descontrolada, em vão.
Um passo ocorreu por acaso, e outro galho se partiu no toque de meu ombro.
Assim, me senti feliz. Estava numa cadeira acolchoada, no mais alto andar de um edifício, e ali todas as minhas secretárias trabalhavam nuas, oferecendo serviços e desejos sexuais, mas eu as negava, indiferente quando a seus corpos voluptuosos, tendo olhos somente para minha esposa, que se gabava com imensas joias penduradas ao pescoço e exibidas nos anéis que ilustravam suas mãos delicadas. Madeleine corria de um lado para o outro, brincando com um videogame de realidade aumentada, e ela se vestia em ouro e prata, roupas que não eram bonitas, mas que exalava riqueza e poder.
Um terceiro galho me fez entristecer outra vez, e só então eu percebi o que acontecia.
Aquelas árvores choravam e sorriam, e eu, ao encostar em suas enfermidades, era tomado pelo sentimento que delas nascia. Triste demais, feliz demais, correndo num descontrole e deixando que todos os galhos se partissem em meu caminho. Eu abri os braços, saltitei com longos passos, estiquei as pernas no limite, e chorei e sorri e chorei outra vez, sem entender.
Caí num amontoado de folhas, deixando-me gargalhar ao mesmo tempo em que convulsionava pelo pranto que não me escapava da garganta.
—Victor!
Eu ouvia aquela voz, ela era tão familiar.
—Victor!
Era feminina, bastante bonita. Eu via cabelos vermelhos, mas não sabia dizer se eles eram reais ou se faziam parte das alucinações.
A minha vida era uma merda.
Mas era a merda mais bonita de todas.
—Victor, acorde!
Senti dor, e isso era real. Parei de chorar e sorrir, estaquei no lugar, abri os olhos.
Suzan estava ajoelhada ao meu lado.
—Você está bem?
Eu me sentei, confuso.
—Sim, estou. E você?
—Estou bem. Todos nós estamos. Você foi o único que ficou desse jeito e —
—Cuidado com as árvores!
Hector e Lucius me olhavam com estranheza. A cega desenhava sem se importar, mas as palavras seguintes vieram dela:
—As árvores de sentimentos são boas ou más. Nós nunca vamos saber. Elas choram e riem, e a gente faz o que elas mandam fazer.
—Ela tá certa! Essas árvores são perigosas!
—Nada na floresta é perigoso, meu bom homem. O perigo reside nos homens.
Aquela voz não era de Suzan, muito menos de Marrie ou Madeleine. Era uma outra voz, pertencente a uma mulher que parecia cantar cada palavra, declamando um poema com seus olhos, entoando seus dizeres por sua beleza.
Nós nos viramos e, no mesmo instante, tivemos certeza de que, como dito por ela, nada na floresta é perigoso.

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