VII
Eu
me surpreendi com as palavras das Damas do Inverno, mas não tive tempo de
pensar em qualquer coisa. Nós piscamos, respiramos, livres da pressão dos herdeiros
por um único instante e, quando menos percebi, estávamos em outro lugar, longe
da neve, das folhas secas, das flores e do sol quente.
A
área em que nos encontrávamos era desmatada, nada além de um gramado baixo num
local circular. Dali eu conseguia observar todas as árvores, e elas se
dividiam, parte floridas e coloridas, parte secas e sem folhas, parte de frutos
amarelados e quentes, parte de arbustos tomados por neve. Era uma floresta de
estações, onde todos os herdeiros agiam ao mesmo tempo, um lugar que não devera
existir, mas estava ali, ao nosso redor, tão lindo quanto inexplicável.
Ainda
estava pensando no amor de Cigano por Decrépita quando chamas verdes desceram
dos céus, espiraladas e fumegantes, atingindo troncos cerrados no centro da
área desmatada, o que criou uma fogueira da cor das esmeraldas, tão brilhante
quanto as joias de mesmo nome. O fogo crepitava, intenso e vívido, movendo-se
numa dança bruxuleante, cujos passos eram sempre belos, mesmo que aleatórios.
—Onde
estamos agora?
Hector
olhava ao redor, indiferente. Ele era cético demais, quase cego diante de
tantas coisas sem explicação. Como era possível alguém não acreditar naquilo
que lhe circundava?
De
súbito, uma voz cantarolou algo que eu não consegui compreender. Lucius parecia
intrigado.
—É
latim.
—O
que disse?
—É
latim! Essas vozes...
Ele
se concentrou por um tempo. Eu ainda tentava entender, me sentindo numa festa
de músicas orientais.
—Filhos
da floresta.
—Como
vimos antes, na entrada da floresta.
—Exatamente.
—Como
era a mensagem mesmo?
Não
conseguia me lembrar.
—Eu
não me lembro.
Lucius
buscou em sua mente, sem se lembrar. Estava tão abobado com todas aquelas
coisas quanto eu.
—Respeitai
os filhos da floresta.
Foi
Suzan a primeira a se lembrar. Ela ainda tinha o braço envolto nos ombros da
Cega, assistindo-a em sua produção artística.
—Isso,
Suzan! Respeitai os filhos da floresta.
—É
isso o que eles estão cantando, Lucius?
—Eu
não sei ao certo. Parece que —
Uma
árvore ao longe oscilou. Alguma coisa vinha daquela direção, grande e pesada.
—O
que é isso?
A
resposta não veio, pois todas as vozes desapareceram pela surpresa.
Cinco
criaturas surgiram da floresta, e elas eram imensas. Em minha noção de medida,
chutei algo bem próximo dos cinco metros, mas talvez fossem ainda maiores. Eram
monstros humanoides, de longos braços e pernas, e suas peles eram cascas de
árvores, rígidas e cobertas de musgo. A cabeça e o torso tinham arbustos
bastante verdes, trajados como pelugem artificial; um cordão de vinhas se
enrolava no pescoço de cada um daqueles seres e, neste, carregavam tartarugas
cujos cascos eram feitos inteiramente de grama e flores, como se estas fossem
pingentes memoráveis.
Os
cinco surgiram com passos lentos, tranquilos demais para seus tamanhos
avantajados, e postaram-se ao redor da fogueira, indiferentes quanto à nossa
presença.
—O
que são essas coisas?
—Fique
quieto, Hector!
Eu
geralmente não me incomodava com as bobeiras que Hector falava, mas elas
poderiam custar as nossas vidas naquele instante.
Um
dos monstros se aproximou de nós, mas seus olhos foscos e grotescos estavam
fixos em Hector. Pensei que ele tinha se sentido ofendido, que planejava se
vingar, algo assim, mas ele não o fez. Se o fizesse, infelizmente teríamos de
assistir à morte impiedosa de um de nossos companheiros, pois nenhum de nós
desenvolveu coragem o suficiente para relutar quanto a aproximação daquela
criatura.
Ela
se ajoelhou, estendendo a mão para o antigo presidiário. Sobre os cascos de
árvores de seus dedos, havia uma pequena flauta feita de madeira.
—Ah,
claro. Eu e minha cara de flautista, merda!
Um
pouco hesitante, Hector pegou o instrumento das mãos da criatura, e então ela
retornou para seu lugar.
—Você
sabe tocar?
—Mais
ou menos. Eu sei bastante de gaita, sim, mas nunca tentei tocar uma flauta antes.
O princípio é o mesmo, mas é bem diferente ainda assim.
—Algum
de vocês sabe tocar?
Todos
eles responderam que não.
—Deixem
fluir.
Aquelas
eram palavras da Cega. Hector se virou para ela.
—Como
é?
—É
só deixar fluir. Às vezes, os melhores acertos vêm de coisas erradas. Quem sabe
a magia que você não acredita não te ajuda, não é?
Hector
se sentiu ofendido.
—Quem
você pensa que é, garota?
—Eu
não sou ninguém, e nem você. Em alguns momentos, no entanto, somos algumas
coisas. Em alguns momentos eu sou uma desenhista. Agora, você é um músico.
Ela
nos mostrou um desenho simbolizando a flauta que ele tinha em mãos.
Os
cinco seres nos olhavam com certa impaciência, mas todos eles eram lentos
demais, calmos demais e inertes demais. Quando parados daquela maneira,
lembrava árvores com olhos curiosos, movendo-se de um lado para o outro.
Hector
examinou a flauta uma última vez.
—O
que eu tenho a perder, não é?
Sem
mais demoras, ele soprou a flauta.
A
melodia era incrivelmente linda.
Eu
tinha certeza de que Hector não sabia o que estava fazendo, mas a música estava
ali, perfeita, agradável de se escutar, apaixonante. Ela ecoou, agradou as
folhas e as flores, fez as frutas amadurecerem rapidamente, fez a neve brilhar
no sol que parecia aumentar no céu.
Os
cinco filhos da floresta uniram os braços, entrelaçaram os dedos de madeira e
começaram a girar, dançando ao nosso redor como uma roda de gigantes, e eu
senti vontade de dançar, coisa que nunca antes sentira, e quando menos percebi
já estava me movendo, ao lado de Suzan e Lucius e da Cega, e todos nós
dançávamos, e Hector soprava sua música, bailando com passos precisos, de um
lado para o outro, com os olhos brilhando pela proximidade das chamas
verdejantes.
Suzan
riu alto.
—Isso
é incrível! Vejam isso, sintam essa coisa toda, é lindo demais! Conseguem
sentir?!
Eu
conseguia.
Sentia
a vida como um todo, o mundo, o ar, as nuvens, sentia tudo aquilo dentro de
mim, tudo ao meu redor, o chão sob meus pés e o céu sobre meus olhos. Mais do
que tudo, sentia a natureza, o verde das folhas, o azul dos oceanos e lagos, as
cores e sabores dos mais variados frutos, as formas e belezas das mais
distintas flores. Sentia perfumes e odores, sentia gostos e desgostos, tudo e
muito mais, uma sensação única em turbilhão, uma sensação infinita em
extermínio.
Percebi
que estava rindo, bem como Lucius e Hector e a Cega, rindo como crianças, como
tolos adultos numa festa de alucinógenos, mas aquilo era real, uma verdade
sonhadora, um devaneio verdadeiro.
—Você
é bom nisso, Hector!
—Eu
nem sei o que estou fazendo!
E
ríamos.
—Olhem
como esse lugar é bonito! Olhem todas as cores, todas as estações! Olhem a
magia da natureza!
—Estamos
todos vendo!
E
ríamos mais e mais.
A
dança continuou, e então surgiram os Herdeiros do Alvorecer, todos eles, cada
qual de sua área, de sua estação, e eles se juntaram ao festejo. As Damas do
Inverno giravam ao redor de Primavera, e elas gargalhavam quando as flores se
congelavam e voltavam para suas cores originais. Verão e Outono saltitavam numa
melodia agitada, os braços trocados de acordo com os passos, a armadura
brilhando como o sol, o manto despejando suas folhas secas para todas as
direções.
Esbarrei
em Primavera num giro não intencional, me desculpei.
—Não
há desculpas no Baile das Sete Nuvens!
—Então
o que há?
—Não
há nada além da música e da mágica.
E
só existiram a música e a mágica por muito tempo.
Eu
não soube dizer quanto tempo durou aquilo tudo. Pareceram minutos, minutos que
deixaram saudades, mas horas podem ter passado, até dias, e eu não perceberia
de modo algum. Não senti fome, sede ou sono, não senti nada além da magia e da
melodia, nada além da natureza e daquela dança perfeita.
—No
final, só vai restar um herdeiro para cada um de vocês.
Eu
escutei aquelas palavras, mas não soube dizer de quem elas eram. Poderiam ser
de Verão, ou das Damas do Inverno, talvez até mesmo de um dos filhos da
floresta. Talvez fossem minhas. Não pude me lembrar.
Lembro-me
da música, somente da música, e daquela sensação de estar completo, de estar
vivo, vivo de verdade pela primeira vez.
Eu
fechei os olhos em algum momento e, quando os reabri, estava no quarto do
hotel, o mesmo quarto que deixamos tempos atrás, sejam minutos ou anos. Pisquei
sem pressa, a cabeça latejava sem explicação. Olhei ao redor, estavam todos lá,
igualmente exaustos, igualmente confusos. Não sabia dizer se tudo aquilo fora
um sonho ou realidade, muito menos se a magia era real, se a música era
verdadeira, se as verdades não eram mentiras.
A
única coisa que tinha em mente era aquela melodia, aquele som que não mais me
abandonaria, o som do encontro de sete nuvens claríssimas, de sete purezas num
mesmo céu.
Sentei-me
na cama, ainda tonto.
Abri a mão direita e
encontrei, ali, uma folha seca de outono.
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