sábado, 12 de janeiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 3 / Ato VII


VII


Eu me surpreendi com as palavras das Damas do Inverno, mas não tive tempo de pensar em qualquer coisa. Nós piscamos, respiramos, livres da pressão dos herdeiros por um único instante e, quando menos percebi, estávamos em outro lugar, longe da neve, das folhas secas, das flores e do sol quente.
A área em que nos encontrávamos era desmatada, nada além de um gramado baixo num local circular. Dali eu conseguia observar todas as árvores, e elas se dividiam, parte floridas e coloridas, parte secas e sem folhas, parte de frutos amarelados e quentes, parte de arbustos tomados por neve. Era uma floresta de estações, onde todos os herdeiros agiam ao mesmo tempo, um lugar que não devera existir, mas estava ali, ao nosso redor, tão lindo quanto inexplicável.
Ainda estava pensando no amor de Cigano por Decrépita quando chamas verdes desceram dos céus, espiraladas e fumegantes, atingindo troncos cerrados no centro da área desmatada, o que criou uma fogueira da cor das esmeraldas, tão brilhante quanto as joias de mesmo nome. O fogo crepitava, intenso e vívido, movendo-se numa dança bruxuleante, cujos passos eram sempre belos, mesmo que aleatórios.
—Onde estamos agora?
Hector olhava ao redor, indiferente. Ele era cético demais, quase cego diante de tantas coisas sem explicação. Como era possível alguém não acreditar naquilo que lhe circundava?
De súbito, uma voz cantarolou algo que eu não consegui compreender. Lucius parecia intrigado.
—É latim.
—O que disse?
—É latim! Essas vozes...
Ele se concentrou por um tempo. Eu ainda tentava entender, me sentindo numa festa de músicas orientais.
—Filhos da floresta.
—Como vimos antes, na entrada da floresta.
—Exatamente.
—Como era a mensagem mesmo?
Não conseguia me lembrar.
—Eu não me lembro.
Lucius buscou em sua mente, sem se lembrar. Estava tão abobado com todas aquelas coisas quanto eu.
—Respeitai os filhos da floresta.
Foi Suzan a primeira a se lembrar. Ela ainda tinha o braço envolto nos ombros da Cega, assistindo-a em sua produção artística.
—Isso, Suzan! Respeitai os filhos da floresta.
—É isso o que eles estão cantando, Lucius?
—Eu não sei ao certo. Parece que —
Uma árvore ao longe oscilou. Alguma coisa vinha daquela direção, grande e pesada.
—O que é isso?
A resposta não veio, pois todas as vozes desapareceram pela surpresa.
Cinco criaturas surgiram da floresta, e elas eram imensas. Em minha noção de medida, chutei algo bem próximo dos cinco metros, mas talvez fossem ainda maiores. Eram monstros humanoides, de longos braços e pernas, e suas peles eram cascas de árvores, rígidas e cobertas de musgo. A cabeça e o torso tinham arbustos bastante verdes, trajados como pelugem artificial; um cordão de vinhas se enrolava no pescoço de cada um daqueles seres e, neste, carregavam tartarugas cujos cascos eram feitos inteiramente de grama e flores, como se estas fossem pingentes memoráveis.
Os cinco surgiram com passos lentos, tranquilos demais para seus tamanhos avantajados, e postaram-se ao redor da fogueira, indiferentes quanto à nossa presença.
—O que são essas coisas?
—Fique quieto, Hector!
Eu geralmente não me incomodava com as bobeiras que Hector falava, mas elas poderiam custar as nossas vidas naquele instante.
Um dos monstros se aproximou de nós, mas seus olhos foscos e grotescos estavam fixos em Hector. Pensei que ele tinha se sentido ofendido, que planejava se vingar, algo assim, mas ele não o fez. Se o fizesse, infelizmente teríamos de assistir à morte impiedosa de um de nossos companheiros, pois nenhum de nós desenvolveu coragem o suficiente para relutar quanto a aproximação daquela criatura.
Ela se ajoelhou, estendendo a mão para o antigo presidiário. Sobre os cascos de árvores de seus dedos, havia uma pequena flauta feita de madeira.
—Ah, claro. Eu e minha cara de flautista, merda!
Um pouco hesitante, Hector pegou o instrumento das mãos da criatura, e então ela retornou para seu lugar.
—Você sabe tocar?
—Mais ou menos. Eu sei bastante de gaita, sim, mas nunca tentei tocar uma flauta antes. O princípio é o mesmo, mas é bem diferente ainda assim.
—Algum de vocês sabe tocar?
Todos eles responderam que não.
—Deixem fluir.
Aquelas eram palavras da Cega. Hector se virou para ela.
—Como é?
—É só deixar fluir. Às vezes, os melhores acertos vêm de coisas erradas. Quem sabe a magia que você não acredita não te ajuda, não é?
Hector se sentiu ofendido.
—Quem você pensa que é, garota?
—Eu não sou ninguém, e nem você. Em alguns momentos, no entanto, somos algumas coisas. Em alguns momentos eu sou uma desenhista. Agora, você é um músico.
Ela nos mostrou um desenho simbolizando a flauta que ele tinha em mãos.
Os cinco seres nos olhavam com certa impaciência, mas todos eles eram lentos demais, calmos demais e inertes demais. Quando parados daquela maneira, lembrava árvores com olhos curiosos, movendo-se de um lado para o outro.
Hector examinou a flauta uma última vez.
—O que eu tenho a perder, não é?
Sem mais demoras, ele soprou a flauta.
A melodia era incrivelmente linda.
Eu tinha certeza de que Hector não sabia o que estava fazendo, mas a música estava ali, perfeita, agradável de se escutar, apaixonante. Ela ecoou, agradou as folhas e as flores, fez as frutas amadurecerem rapidamente, fez a neve brilhar no sol que parecia aumentar no céu.
Os cinco filhos da floresta uniram os braços, entrelaçaram os dedos de madeira e começaram a girar, dançando ao nosso redor como uma roda de gigantes, e eu senti vontade de dançar, coisa que nunca antes sentira, e quando menos percebi já estava me movendo, ao lado de Suzan e Lucius e da Cega, e todos nós dançávamos, e Hector soprava sua música, bailando com passos precisos, de um lado para o outro, com os olhos brilhando pela proximidade das chamas verdejantes.
Suzan riu alto.
—Isso é incrível! Vejam isso, sintam essa coisa toda, é lindo demais! Conseguem sentir?!
Eu conseguia.
Sentia a vida como um todo, o mundo, o ar, as nuvens, sentia tudo aquilo dentro de mim, tudo ao meu redor, o chão sob meus pés e o céu sobre meus olhos. Mais do que tudo, sentia a natureza, o verde das folhas, o azul dos oceanos e lagos, as cores e sabores dos mais variados frutos, as formas e belezas das mais distintas flores. Sentia perfumes e odores, sentia gostos e desgostos, tudo e muito mais, uma sensação única em turbilhão, uma sensação infinita em extermínio.
Percebi que estava rindo, bem como Lucius e Hector e a Cega, rindo como crianças, como tolos adultos numa festa de alucinógenos, mas aquilo era real, uma verdade sonhadora, um devaneio verdadeiro.
—Você é bom nisso, Hector!
—Eu nem sei o que estou fazendo!
E ríamos.
—Olhem como esse lugar é bonito! Olhem todas as cores, todas as estações! Olhem a magia da natureza!
—Estamos todos vendo!
E ríamos mais e mais.
A dança continuou, e então surgiram os Herdeiros do Alvorecer, todos eles, cada qual de sua área, de sua estação, e eles se juntaram ao festejo. As Damas do Inverno giravam ao redor de Primavera, e elas gargalhavam quando as flores se congelavam e voltavam para suas cores originais. Verão e Outono saltitavam numa melodia agitada, os braços trocados de acordo com os passos, a armadura brilhando como o sol, o manto despejando suas folhas secas para todas as direções.
Esbarrei em Primavera num giro não intencional, me desculpei.
—Não há desculpas no Baile das Sete Nuvens!
—Então o que há?
—Não há nada além da música e da mágica.
E só existiram a música e a mágica por muito tempo.
Eu não soube dizer quanto tempo durou aquilo tudo. Pareceram minutos, minutos que deixaram saudades, mas horas podem ter passado, até dias, e eu não perceberia de modo algum. Não senti fome, sede ou sono, não senti nada além da magia e da melodia, nada além da natureza e daquela dança perfeita.
—No final, só vai restar um herdeiro para cada um de vocês.
Eu escutei aquelas palavras, mas não soube dizer de quem elas eram. Poderiam ser de Verão, ou das Damas do Inverno, talvez até mesmo de um dos filhos da floresta. Talvez fossem minhas. Não pude me lembrar.
Lembro-me da música, somente da música, e daquela sensação de estar completo, de estar vivo, vivo de verdade pela primeira vez.
Eu fechei os olhos em algum momento e, quando os reabri, estava no quarto do hotel, o mesmo quarto que deixamos tempos atrás, sejam minutos ou anos. Pisquei sem pressa, a cabeça latejava sem explicação. Olhei ao redor, estavam todos lá, igualmente exaustos, igualmente confusos. Não sabia dizer se tudo aquilo fora um sonho ou realidade, muito menos se a magia era real, se a música era verdadeira, se as verdades não eram mentiras.
A única coisa que tinha em mente era aquela melodia, aquele som que não mais me abandonaria, o som do encontro de sete nuvens claríssimas, de sete purezas num mesmo céu.
Sentei-me na cama, ainda tonto.
Abri a mão direita e encontrei, ali, uma folha seca de outono.

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