domingo, 13 de janeiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 4 / Ato VIII

REFLEXO TURVO

VIII

Um relógio badalou ao longe.
Uma, duas, três. Sete vezes.
Abri os olhos, e só então percebi que adormecera. Todos se levantaram ao mesmo tempo, surpresos pelo toque inesperado. O estrondo parou, deixando reinar o silêncio enquanto todos bocejavam pelo cansaço.
Então, outra vez. Um, dois. Sete toques de um mesmo sino.
—Que merda é essa?
Hector, como sempre sutil. Olhei o relógio circular na parede.
Sete horas.
—Coincidência?
Suzan deu de ombros.
—Que diferença faz?
—Toda a diferença. Aquele cara ainda me assusta.
Lucius parecia pensativo.
—Tem alguma coisa estranha.
Hector riu em deboche.
—Difícil é encontrar uma coisa que não seja estranha!
—Não, você não entendeu. Sete toques de um sino, cara. Não tem sinos aqui perto. Não tem nem mesmo uma igreja ou um relógio central!
Ele estava certo. Como era possível escutar o estrondo do sino sabendo que a igreja mais próxima ficava a pelo menos três bairros de distância?
A garota acordava naquele momento, sorridente. Abria seus olhos sem cor e sem brilho, olhos que chegavam a incomodar por tamanha estranheza.
—Sete horas! Deve ser uma bela manhã lá fora!
Era bizarro imaginar uma garota cega sabendo as horas sem que ninguém dissesse, mas ela, por vezes, enxergava mais do que todos nós.
—Eu vou ver que barulho é esse.
Sem esperar por ninguém, abri a porta do quarto e saí, e o que vi me surpreendeu como um soco ríspido.
Não encontrei o corredor do hotel, nem mesmo as paredes pintadas e a decoração barata. Não encontrei as pessoas hospedadas em outros quartos, possivelmente por sequer existirem outros quartos naquele lugar. Eu saíra de um cômodo mundano para dar de encontro a uma planície inóspita, um deserto gélido e noturno, onde as sete horas da manhã pareciam tão macabras quanto a madrugada de uma cidadela.
—Mas que —
Antes que eu pudesse exaltar minha indignação, todos os demais deixaram escapar murmúrios confusos. Atrás de nós, onde há pouco havia um quarto com nossos pertences, nada mais. Nada além do horizonte negro, da linha obscura e interminável daquela terra arenosa e malcheirosa, uma terra que, de tão sombria, lembrava-me um espelho do céu que nos circundava.
—Tá legal, quem foi que jogou a droga nas nossas comidas?
—Ninguém jogou nada, Hector. Nós não estamos mais na cidade.
—E que porra de lugar é esse?
—Como eu vou saber, cara? Acabei de acordar, como você? Até onde eu sei, a gente terminou o ritual com os Herdeiros e voltou para o quarto, e então aquele sino começou a tocar e —
—Eu estava lá, Victor, mas obrigado pelo resumo. Se isso tem alguma coisa a ver com aquele cara-relógio, alguém vai morrer hoje!
Deixei que ele despejasse suas reclamações contra a noite enquanto me dispunha a estudar a paisagem. Dentre tudo o que era idêntico, encontrei, muito ao longe, algo que me chamou atenção.
Uma construção.
—Olhem aquilo.
Apontei a direção, e todos os olhares se voltaram para ela de imediato. Parecia uma grande casa, ou um estabelecimento de vendas, algo assim, todo construído em madeira escura, com luzes coloridas escapando pelas frestas de suas vigas.
—Que merda é aquela, uma boate pra vampiros?
Olhei com certa surpresa para Lucius. Vê-lo ironizar algo me fazia entender o quão insana a situação estava.
—É nosso único ponto de referência até então. Vamos. Quando estivermos mais próximos, poderemos saber o que é.
Deixando de lado os comentários desnecessários e as lamúrias da confusão, seguimos uma caminhada que parecia infinita.
O mundo ao nosso redor mudou. Mudou em termos, obviamente, pois o deserto ainda estava ali, tal como o céu negro e o vento frio, mas a paisagem se alterava conforme caminhávamos. Ramos de plantas esqueléticas se erguiam em estacas, e muitas delas tinham corpos putrificados fincados em sua extensão, abandonados para sangrar até a morte.
Suzan vomitou ao lado da Cega, o instinto maternal feminino obrigando-a a cobrir os olhos de alguém que já não enxergava.
Mesmo eu, com todo o sangue frio que adquirira após tantos acontecimentos nauseantes, sentira ânsia ao assistir aquelas atrocidades sem fim.
Pedras deformadas se estendiam num muro de lamentações, cada qual riscada como se rostos fossem, olhos em pranto, lábios congelados em gritos, narinas de ferimentos surreais. As pedras choravam, escorrendo de seus poros artificiais o choro sanguinolento daquela cena macabra, tudo acompanhado de uma música aterradora que surgia quando o vento trespassava cada cicatriz que assolava os rochedos.
A Cega caminhava com um sorriso, e isso era inacreditável.
Por um momento, por um só momento, eu quis ser cego também.
—Eu vou enlouquecer.
Suzan estava mal. Ela, que demonstrara uma força superior a todas as mulheres que eu já conhecera na vida, vira demais naquele tempo todo. Aguentara a situação de ver-se diferente, de encontrar-se em outra realidade, aceitou essa verdade maldita como uma verdade definitiva, ainda que soubesse que, além de nós, acima daquele lugar, sua vida a aguardava outra vez.
Mas ela estava mal. Estava cansada de não entender, cansada de tentar entender o que se tornava cada vez mais confuso. Cansada de viver uma vida sem rota, sem rumo, sem destino certo.
Postei minha mão sobre seu ombro.
—Vai ficar tudo bem.
—Não. Não vai ficar tudo bem.
—Você tem que acreditar, Suzan. Se você não acreditar, quem vai?
Silenciosa, ela começou a chorar, mas engoliu o choro rapidamente.
—É. Você tá certo. Eu preciso acreditar.
—Então acredite. Nós estamos aqui. Nós todos —
—Cuidado!
O grito atrapalhou meu raciocínio, quase me fez cair pelo abalo. A voz era de Lucius, mas por um instante eu não o encontrei. O tempo pareceu congelar, e a expressão de Hector me revelou que nada do que acontecia naquele instante poderia ser bom.
Foi quando eu vi aquela coisa.
Ela tinha dois olhos e uma boca, e eu juro que tentei me prender naquele padrão para aceitar que algo daquele porte poderia existir. Seu corpanzil me lembrava um urso cuja pelugem fora retirada, deixando a carne pútrida e leprosa despencar em movimentos exagerados, e três línguas gordurosas se arrastavam na areia, tão rústicas quanto as pedras que nos acompanhavam nos arredores.
—Hector!
Ele se virou para mim. Foi uma boa coisa a ser feita, em termos. Meu grito chamou sua atenção, e isso salvou a vida de Hector, a carne alvejada por aquele ser monstruoso.
Agora, eu era o alvo.
—Suzan, corra!
—Victor!
—Corra!
Ela obedeceu, mas o faria mesmo que eu não mandasse. Levou consigo a Cega, que acabou por derrubar seu material de desenho.
Eu agarrei a folha de Outono em meu bolso com toda a fé que tinha, o que não era muita coisa. Ainda assim, acreditar na mágica que eles me prometeram me parecia mais tentador do que me tornar alimento para uma criatura cuja existência desafiava as leis da lógica.
—Funcione, funcione, você tem que funcionar!
Aquele era eu, falando com uma folha.
Louco.
—Acredite, pense e realize.
—O que?
Quem dissera aquilo?
—Acredite, pense e realize.
A voz vinha de longe, mas vinha de perto. Do alto, dos lados, de todo lugar.
A voz era um murmúrio do vento.
—Acredite, pense e realize.
Uma terceira vez, e só com essas palavras eu pude compreender a mágica que tinha nas mãos, mas a bocarra esquelética já estava sobre meu corpo, baforando um odor fétido que me pareceu capaz de derrubar um exército.
Eu aceitei a morte, pois reação alguma seria tão rápida quanto aquele monstro medonho, mas a morte não me abraçou. Senti o sangue escorrer em meu corpo, quente e asqueroso, mas não era o meu sangue.
Era o sangue da criatura.
—Mas o que —
Lucius tinha nas mãos a simbologia da Primavera, e com ela fez nascer do solo infértil tantas plantas quanto me pareceu ser capaz de ver na maior das florestas. Os chicotes verdejados eram carregados de espinhos que, de tão pontiagudos, atravessaram a espessa camada de carne flácida daquela aberração, livrando-a do contato com o solo antes que sua velocidade irreal permitisse que meu corpo se tornasse uma nova refeição.
Agora ela jazia à minha frente, o corpo aberto ao meio, os órgãos despencando como uma chuva de podridão.
—Deu certo! Deu certo, vocês viram? Eu usei a mágica! Eu usei magia!
De alguma forma, Lucius parecia feliz por aquilo.
—Olhe agora, Hector! Vai me dizer que isso também não é magia?
Hector tinha um pedaço de sol nas mãos.
—Cale a boca, Lucius! Essas coisas devem ter algum efeito especial, sei lá —
Surgiram outros dois monstros como o anterior, e eles pareciam tão famintos quanto o irmão. Ao avistarem o cadáver sacrificado da primeira das criaturas, a ira os consumiu, lançando-os numa investida desprovida de precaução.
Um deles se incinerou no lugar, coberto por um fogo espiralado e assombroso.
Hector gargalhou, o braço em chamas.
—É mágica, filhos da puta! Se essa merda é magia, eu vou queimar todos vocês até que o inferno pareça a porra de uma geladeira!
E queimou.
Eu não sabia o que fazer. Levantei outra vez a folha nas mãos, e Suzan fez o mesmo, o floco de neve das Damas do Inverno frio e brilhoso entre seus dedos delicados. Acredite, pense e realize. Aquilo não me dizia nada.
O gelo rompeu o deserto na forma de estalactites e estalagmites, perfurando todo o corpo da deformidade que nos afrontava, deixando-a sangrar até que nada de sua vida restasse.
Suzan comemorou, acompanhada da Cega e de Lucius, e eu me senti um inútil.
—Me ajudem!
Era Hector.
O fogo em seu braço o queimava, e eu pude ver sua pele queimar como papel atirado em lareira. Jogado ao solo, ele rolou de um lado para o outro, buscando uma forma de apagar aquele fogo que há pouco o servira.
—Merda! Nós temos que ajudá-lo!
Eu corri até ele e bati com minhas roupas, fazendo o possível para aliviar aquele incêndio localizado, e por sorte consegui evitar que as chamas se alastrassem. Ainda assim, a pele toda fora perdida, e parte do braço se desfizera nas chamas, deixando-o incapaz de utilizar o membro esquerdo.
—O que aconteceu, Victor? O que aconteceu com essa coisa?!
—Eu não sei, eu não sei!
Suzan gritou.
Lucius caíra ao meu lado, uma vinha espinhosa rodeando uma de suas pernas como uma armadura de castigo infindável. Logo atrás, o mesmo gelo que nos salvara atravessava os ombros de Suzan, deixando-a marcada por estacas cristalinas cujo tom azulado se perdia no sangue que jorrava dos ferimentos.
Eu me levantei, confuso. A Cega saltitava, sorridente.
Cantarolava:
—A magia é perigosa, a magia perigosa!
Por um único instante, eu agradeci por ser inútil.

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