REFLEXO TURVO
VIII
Um
relógio badalou ao longe.
Uma,
duas, três. Sete vezes.
Abri
os olhos, e só então percebi que adormecera. Todos se levantaram ao mesmo
tempo, surpresos pelo toque inesperado. O estrondo parou, deixando reinar o
silêncio enquanto todos bocejavam pelo cansaço.
Então,
outra vez. Um, dois. Sete toques de um mesmo sino.
—Que
merda é essa?
Hector,
como sempre sutil. Olhei o relógio circular na parede.
Sete
horas.
—Coincidência?
Suzan
deu de ombros.
—Que
diferença faz?
—Toda
a diferença. Aquele cara ainda me assusta.
Lucius
parecia pensativo.
—Tem
alguma coisa estranha.
Hector
riu em deboche.
—Difícil
é encontrar uma coisa que não seja estranha!
—Não,
você não entendeu. Sete toques de um sino, cara. Não tem sinos aqui perto. Não
tem nem mesmo uma igreja ou um relógio central!
Ele
estava certo. Como era possível escutar o estrondo do sino sabendo que a igreja
mais próxima ficava a pelo menos três bairros de distância?
A
garota acordava naquele momento, sorridente. Abria seus olhos sem cor e sem
brilho, olhos que chegavam a incomodar por tamanha estranheza.
—Sete
horas! Deve ser uma bela manhã lá fora!
Era
bizarro imaginar uma garota cega sabendo as horas sem que ninguém dissesse, mas
ela, por vezes, enxergava mais do que todos nós.
—Eu
vou ver que barulho é esse.
Sem
esperar por ninguém, abri a porta do quarto e saí, e o que vi me surpreendeu
como um soco ríspido.
Não
encontrei o corredor do hotel, nem mesmo as paredes pintadas e a decoração
barata. Não encontrei as pessoas hospedadas em outros quartos, possivelmente
por sequer existirem outros quartos naquele lugar. Eu saíra de um cômodo
mundano para dar de encontro a uma planície inóspita, um deserto gélido e
noturno, onde as sete horas da manhã pareciam tão macabras quanto a madrugada
de uma cidadela.
—Mas
que —
Antes
que eu pudesse exaltar minha indignação, todos os demais deixaram escapar
murmúrios confusos. Atrás de nós, onde há pouco havia um quarto com nossos
pertences, nada mais. Nada além do horizonte negro, da linha obscura e
interminável daquela terra arenosa e malcheirosa, uma terra que, de tão
sombria, lembrava-me um espelho do céu que nos circundava.
—Tá
legal, quem foi que jogou a droga nas nossas comidas?
—Ninguém
jogou nada, Hector. Nós não estamos mais na cidade.
—E
que porra de lugar é esse?
—Como
eu vou saber, cara? Acabei de acordar, como você? Até onde eu sei, a gente
terminou o ritual com os Herdeiros e voltou para o quarto, e então aquele sino
começou a tocar e —
—Eu
estava lá, Victor, mas obrigado pelo resumo. Se isso tem alguma coisa a ver com
aquele cara-relógio, alguém vai morrer hoje!
Deixei
que ele despejasse suas reclamações contra a noite enquanto me dispunha a
estudar a paisagem. Dentre tudo o que era idêntico, encontrei, muito ao longe,
algo que me chamou atenção.
Uma
construção.
—Olhem
aquilo.
Apontei
a direção, e todos os olhares se voltaram para ela de imediato. Parecia uma
grande casa, ou um estabelecimento de vendas, algo assim, todo construído em
madeira escura, com luzes coloridas escapando pelas frestas de suas vigas.
—Que
merda é aquela, uma boate pra vampiros?
Olhei
com certa surpresa para Lucius. Vê-lo ironizar algo me fazia entender o quão
insana a situação estava.
—É
nosso único ponto de referência até então. Vamos. Quando estivermos mais
próximos, poderemos saber o que é.
Deixando
de lado os comentários desnecessários e as lamúrias da confusão, seguimos uma
caminhada que parecia infinita.
O
mundo ao nosso redor mudou. Mudou em termos, obviamente, pois o deserto ainda
estava ali, tal como o céu negro e o vento frio, mas a paisagem se alterava
conforme caminhávamos. Ramos de plantas esqueléticas se erguiam em estacas, e
muitas delas tinham corpos putrificados fincados em sua extensão, abandonados
para sangrar até a morte.
Suzan
vomitou ao lado da Cega, o instinto maternal feminino obrigando-a a cobrir os
olhos de alguém que já não enxergava.
Mesmo
eu, com todo o sangue frio que adquirira após tantos acontecimentos nauseantes,
sentira ânsia ao assistir aquelas atrocidades sem fim.
Pedras
deformadas se estendiam num muro de lamentações, cada qual riscada como se
rostos fossem, olhos em pranto, lábios congelados em gritos, narinas de
ferimentos surreais. As pedras choravam, escorrendo de seus poros artificiais o
choro sanguinolento daquela cena macabra, tudo acompanhado de uma música
aterradora que surgia quando o vento trespassava cada cicatriz que assolava os
rochedos.
A
Cega caminhava com um sorriso, e isso era inacreditável.
Por
um momento, por um só momento, eu quis ser cego também.
—Eu
vou enlouquecer.
Suzan
estava mal. Ela, que demonstrara uma força superior a todas as mulheres que eu
já conhecera na vida, vira demais naquele tempo todo. Aguentara a situação de
ver-se diferente, de encontrar-se em outra realidade, aceitou essa verdade
maldita como uma verdade definitiva, ainda que soubesse que, além de nós, acima
daquele lugar, sua vida a aguardava outra vez.
Mas
ela estava mal. Estava cansada de não entender, cansada de tentar entender o
que se tornava cada vez mais confuso. Cansada de viver uma vida sem rota, sem
rumo, sem destino certo.
Postei
minha mão sobre seu ombro.
—Vai
ficar tudo bem.
—Não.
Não vai ficar tudo bem.
—Você
tem que acreditar, Suzan. Se você não acreditar, quem vai?
Silenciosa,
ela começou a chorar, mas engoliu o choro rapidamente.
—É.
Você tá certo. Eu preciso acreditar.
—Então
acredite. Nós estamos aqui. Nós todos —
—Cuidado!
O
grito atrapalhou meu raciocínio, quase me fez cair pelo abalo. A voz era de
Lucius, mas por um instante eu não o encontrei. O tempo pareceu congelar, e a
expressão de Hector me revelou que nada do que acontecia naquele instante
poderia ser bom.
Foi
quando eu vi aquela coisa.
Ela
tinha dois olhos e uma boca, e eu juro que tentei me prender naquele padrão
para aceitar que algo daquele porte poderia existir. Seu corpanzil me lembrava
um urso cuja pelugem fora retirada, deixando a carne pútrida e leprosa
despencar em movimentos exagerados, e três línguas gordurosas se arrastavam na
areia, tão rústicas quanto as pedras que nos acompanhavam nos arredores.
—Hector!
Ele
se virou para mim. Foi uma boa coisa a ser feita, em termos. Meu grito chamou
sua atenção, e isso salvou a vida de Hector, a carne alvejada por aquele ser
monstruoso.
Agora,
eu era o alvo.
—Suzan,
corra!
—Victor!
—Corra!
Ela
obedeceu, mas o faria mesmo que eu não mandasse. Levou consigo a Cega, que acabou
por derrubar seu material de desenho.
Eu
agarrei a folha de Outono em meu bolso com toda a fé que tinha, o que não era
muita coisa. Ainda assim, acreditar na mágica que eles me prometeram me parecia
mais tentador do que me tornar alimento para uma criatura cuja existência
desafiava as leis da lógica.
—Funcione,
funcione, você tem que funcionar!
Aquele
era eu, falando com uma folha.
Louco.
—Acredite,
pense e realize.
—O
que?
Quem
dissera aquilo?
—Acredite,
pense e realize.
A
voz vinha de longe, mas vinha de perto. Do alto, dos lados, de todo lugar.
A
voz era um murmúrio do vento.
—Acredite,
pense e realize.
Uma
terceira vez, e só com essas palavras eu pude compreender a mágica que tinha
nas mãos, mas a bocarra esquelética já estava sobre meu corpo, baforando um
odor fétido que me pareceu capaz de derrubar um exército.
Eu
aceitei a morte, pois reação alguma seria tão rápida quanto aquele monstro
medonho, mas a morte não me abraçou. Senti o sangue escorrer em meu corpo,
quente e asqueroso, mas não era o meu sangue.
Era
o sangue da criatura.
—Mas
o que —
Lucius
tinha nas mãos a simbologia da Primavera, e com ela fez nascer do solo infértil
tantas plantas quanto me pareceu ser capaz de ver na maior das florestas. Os
chicotes verdejados eram carregados de espinhos que, de tão pontiagudos,
atravessaram a espessa camada de carne flácida daquela aberração, livrando-a do
contato com o solo antes que sua velocidade irreal permitisse que meu corpo se
tornasse uma nova refeição.
Agora
ela jazia à minha frente, o corpo aberto ao meio, os órgãos despencando como
uma chuva de podridão.
—Deu
certo! Deu certo, vocês viram? Eu usei a mágica! Eu usei magia!
De
alguma forma, Lucius parecia feliz por aquilo.
—Olhe
agora, Hector! Vai me dizer que isso também não é magia?
Hector
tinha um pedaço de sol nas mãos.
—Cale
a boca, Lucius! Essas coisas devem ter algum efeito especial, sei lá —
Surgiram
outros dois monstros como o anterior, e eles pareciam tão famintos quanto o
irmão. Ao avistarem o cadáver sacrificado da primeira das criaturas, a ira os
consumiu, lançando-os numa investida desprovida de precaução.
Um
deles se incinerou no lugar, coberto por um fogo espiralado e assombroso.
Hector
gargalhou, o braço em chamas.
—É
mágica, filhos da puta! Se essa merda é magia, eu vou queimar todos vocês até
que o inferno pareça a porra de uma geladeira!
E
queimou.
Eu
não sabia o que fazer. Levantei outra vez a folha nas mãos, e Suzan fez o
mesmo, o floco de neve das Damas do Inverno frio e brilhoso entre seus dedos
delicados. Acredite, pense e realize.
Aquilo não me dizia nada.
O
gelo rompeu o deserto na forma de estalactites e estalagmites, perfurando todo
o corpo da deformidade que nos afrontava, deixando-a sangrar até que nada de
sua vida restasse.
Suzan
comemorou, acompanhada da Cega e de Lucius, e eu me senti um inútil.
—Me
ajudem!
Era
Hector.
O
fogo em seu braço o queimava, e eu pude ver sua pele queimar como papel atirado
em lareira. Jogado ao solo, ele rolou de um lado para o outro, buscando uma
forma de apagar aquele fogo que há pouco o servira.
—Merda!
Nós temos que ajudá-lo!
Eu
corri até ele e bati com minhas roupas, fazendo o possível para aliviar aquele
incêndio localizado, e por sorte consegui evitar que as chamas se alastrassem.
Ainda assim, a pele toda fora perdida, e parte do braço se desfizera nas
chamas, deixando-o incapaz de utilizar o membro esquerdo.
—O
que aconteceu, Victor? O que aconteceu com essa coisa?!
—Eu
não sei, eu não sei!
Suzan
gritou.
Lucius
caíra ao meu lado, uma vinha espinhosa rodeando uma de suas pernas como uma
armadura de castigo infindável. Logo atrás, o mesmo gelo que nos salvara
atravessava os ombros de Suzan, deixando-a marcada por estacas cristalinas cujo
tom azulado se perdia no sangue que jorrava dos ferimentos.
Eu
me levantei, confuso. A Cega saltitava, sorridente.
Cantarolava:
—A
magia é perigosa, a magia perigosa!
Por um único instante, eu
agradeci por ser inútil.
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