quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Conto - Encanto

Encanto


Ele sabia que, em seu mundo, a magia inexistia.
Ainda assim, admirava todos os efeitos de tal lenda, voejando em altos sonhos conforme imaginava o quão incrível seriam os feitos agraciados pelo toque da mágica, pelo dom sublime dos encantadores, pela feitiçaria benigna e admirável das fadas mais puras, por mais que, mesmo que impuras, fadas inexistissem. Ele as imaginava com sua mente fértil, sonhava com a terra fofa dos vales e das colinas enquanto soterrava o árduo solo de sua vivência, o mesmo solo que lhe privava de voar mais alto, prendendo-o numa realidade nem sempre bela, nem sempre boa, mas nunca mágica.
E assim ele vivia, acorrentado à pior das maldições: a rotina. Aquela que te prende num ciclo interminável e repetitivo, te coloca pra correr num aro metálico, como um rato de laboratório. Acordava cedo, trabalhava o dia todo, estudava ao anoitecer, perdia minutos com inutilidades e então se largava para repousar tarde demais, e o amanhã poderia se chamar hoje, pois como hoje era, idêntico, gêmeo.
Na rotina, ele tinha amigos, tinha sim. Todos nós sempre temos, e ele não era diferente, por mais que pensasse diferente em certas ocasiões. Tinha amigos e amigas, todos eles não-mágicos, todos eles aprisionados na mesma cela, mesmo que distantes. Amigos e amigas sem poderes, sem vontades, sem sonhos incríveis e imaginários como os deles, ou talvez alguns o tivessem, incertos e inseguros de compartilhá-los. Vendo-os, ele ficava feliz, sorria quase sempre. Sorria num teatro certas vezes mas, na maioria delas, sorria por admirá-los, por desejar a companhia que o tirava da solidão, por sentir-se bem e seguro no meio dos seus, daqueles em quem confiava (e que certas vezes traíam sua confiança), daqueles que eram similares, mas muito diferentes ainda assim.
Entre todos, havia Ela, que no momento era apenas ela, com “e” minúsculo.
Sempre fora uma boa amiga, não só para ele. Ela era especial para todos e, por muitas vezes, era o centro das atenções. Ela era linda, mas tinha uma beleza que sobrepunha a beleza tradicional; uma beleza no existir. Não tinha uma vida fácil, certamente, mas tinha uma vida única, sua, repleta de determinações e fobias, de receios e alegrias. Rodeada de amigos, sorridente mesmo nas dificuldades, independente.
Ela.
E ele gostava dela, mas somente isso. Ela era sua amiga. Interessante, atraente, admirável, mas somente sua amiga. Ele não era nada disso. Ele era uma criança com idade maior do que a dela, um bebê maioritário de hábitos abobados e sem nada de especial. Mas ela era Ela, e o fazia sorrir entre os amigos, e ele acreditava que ela o faria sorrir sem ninguém por perto também, mas acreditou em silêncio.
O silêncio, por vezes, é uma boa companhia.
Talvez não tenha disso naquele momento, mas, às vezes, é.
O tempo passou, pois os relógios não tardam a girar, e ele e ela viveram suas vidas. Dias e mais dias, meses, a distância insistia em afastá-los, mas por vezes restava um tempo nas rotinas exaustivas e eles se encontravam no outro mundo, no mundo digital, e lá se divertiam. Assuntos desconexos, risadas infantis, uma conversa de amigos, uma conversa fértil.
Algo nascia ali.
Mas como acreditar? O pessimismo, não, o realismo, este sim às vezes nos força a pensar pequeno, baixo, evitar sonhar demais, e ele ficou ali, tendo o silêncio como companhia, sem pressa, pois a pressa não o levaria a lugar algum. E ele a encontrou alguns dias, circundando de amigos e silhuetas, e a admirou de longe, com os olhos atentos e o “detalhismo” exacerbado, mas nada disse, e ela também não o fez, e cada vez mais ele acreditava que sonhara acordado.
Até que, um dia, o mundo girou rápido demais.
Foi num piscar de olhos, numa piscadela, e os seus cabelos perfumados estavam no seu rosto, seus dedos frios estavam nas suas mãos, e as bocas se encontravam. Foi sem aviso, e ela estava ali, em seus braços, e ele estava ali, no paraíso.
O paraíso era lindo demais.
Era um beijo, mas não somente um beijo, era muito mais do que um simples ato, do que uma atitude desinibida, do que uma união carnal e instável. Circulava naquele toque macio e cheiroso uma carícia garbosa, uma atração que lhe mostrava que aquela menina que sempre esteve por perto deveria estar ainda mais perto desde sempre, que aquela garota tinha tudo para se destacar dentre uma multidão de outras garotas por ser feliz acima de tudo, e também que aquela mulher, e não menina ou garota, era linda, era perfeita e tinha de ser sua.
Dois desacostumados a relacionamentos, dois inocentes sem inocência, dois viventes de vidas tomadas por monotonia, mas dois. A rotina ainda estava lá, mas não era mais um problema; havia o tempo em conjunto. As surpresas ainda assustavam, mas eram boas, eram surpresas de um casal. E eles hesitaram em falar demais, em deixar que as palavras tomassem conta na vontade que os fazia acelerar, mas então disseram seus sentimentos, e riram e comemoraram e ficaram juntos, e é assim até então.
Ele sabia que, em seu mundo, a magia inexistia.
Sabia mais do que ninguém.
Mas ele também sabia que, conforme a beleza da vida se revela, a mágica existe, sim, mesmo que dentro de cada um de nós, seja ela um simples amor, seja ela um complexo encanto.

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