Encanto
Ele
sabia que, em seu mundo, a magia inexistia.
Ainda
assim, admirava todos os efeitos de tal lenda, voejando em altos sonhos
conforme imaginava o quão incrível seriam os feitos agraciados pelo toque da
mágica, pelo dom sublime dos encantadores, pela feitiçaria benigna e admirável
das fadas mais puras, por mais que, mesmo que impuras, fadas inexistissem. Ele
as imaginava com sua mente fértil, sonhava com a terra fofa dos vales e das
colinas enquanto soterrava o árduo solo de sua vivência, o mesmo solo que lhe
privava de voar mais alto, prendendo-o numa realidade nem sempre bela, nem
sempre boa, mas nunca mágica.
E
assim ele vivia, acorrentado à pior das maldições: a rotina. Aquela que te
prende num ciclo interminável e repetitivo, te coloca pra correr num aro
metálico, como um rato de laboratório. Acordava cedo, trabalhava o dia todo,
estudava ao anoitecer, perdia minutos com inutilidades e então se largava para
repousar tarde demais, e o amanhã poderia se chamar hoje, pois como hoje era,
idêntico, gêmeo.
Na
rotina, ele tinha amigos, tinha sim. Todos nós sempre temos, e ele não era
diferente, por mais que pensasse diferente em certas ocasiões. Tinha amigos e
amigas, todos eles não-mágicos, todos eles aprisionados na mesma cela, mesmo
que distantes. Amigos e amigas sem poderes, sem vontades, sem sonhos incríveis
e imaginários como os deles, ou talvez alguns o tivessem, incertos e inseguros
de compartilhá-los. Vendo-os, ele ficava feliz, sorria quase sempre. Sorria num
teatro certas vezes mas, na maioria delas, sorria por admirá-los, por desejar a
companhia que o tirava da solidão, por sentir-se bem e seguro no meio dos seus,
daqueles em quem confiava (e que certas vezes traíam sua confiança), daqueles
que eram similares, mas muito diferentes ainda assim.
Entre
todos, havia Ela, que no momento era apenas ela, com “e” minúsculo.
Sempre
fora uma boa amiga, não só para ele. Ela era especial para todos e, por muitas
vezes, era o centro das atenções. Ela era linda, mas tinha uma beleza que
sobrepunha a beleza tradicional; uma beleza no existir. Não tinha uma vida
fácil, certamente, mas tinha uma vida única, sua, repleta de determinações e
fobias, de receios e alegrias. Rodeada de amigos, sorridente mesmo nas
dificuldades, independente.
Ela.
E
ele gostava dela, mas somente isso. Ela era sua amiga. Interessante, atraente,
admirável, mas somente sua amiga. Ele não era nada disso. Ele era uma criança
com idade maior do que a dela, um bebê maioritário de hábitos abobados e sem
nada de especial. Mas ela era Ela, e o fazia sorrir entre os amigos, e ele
acreditava que ela o faria sorrir sem ninguém por perto também, mas acreditou
em silêncio.
O
silêncio, por vezes, é uma boa companhia.
Talvez
não tenha disso naquele momento, mas, às vezes, é.
O
tempo passou, pois os relógios não tardam a girar, e ele e ela viveram suas
vidas. Dias e mais dias, meses, a distância insistia em afastá-los, mas por
vezes restava um tempo nas rotinas exaustivas e eles se encontravam no outro
mundo, no mundo digital, e lá se divertiam. Assuntos desconexos, risadas
infantis, uma conversa de amigos, uma conversa fértil.
Algo
nascia ali.
Mas
como acreditar? O pessimismo, não, o realismo, este sim às vezes nos força a
pensar pequeno, baixo, evitar sonhar demais, e ele ficou ali, tendo o silêncio
como companhia, sem pressa, pois a pressa não o levaria a lugar algum. E ele a
encontrou alguns dias, circundando de amigos e silhuetas, e a admirou de longe,
com os olhos atentos e o “detalhismo” exacerbado, mas nada disse, e ela também
não o fez, e cada vez mais ele acreditava que sonhara acordado.
Até
que, um dia, o mundo girou rápido demais.
Foi
num piscar de olhos, numa piscadela, e os seus cabelos perfumados estavam no
seu rosto, seus dedos frios estavam nas suas mãos, e as bocas se encontravam.
Foi sem aviso, e ela estava ali, em seus braços, e ele estava ali, no paraíso.
O
paraíso era lindo demais.
Era
um beijo, mas não somente um beijo, era muito mais do que um simples ato, do
que uma atitude desinibida, do que uma união carnal e instável. Circulava naquele
toque macio e cheiroso uma carícia garbosa, uma atração que lhe mostrava que
aquela menina que sempre esteve por perto deveria estar ainda mais perto desde
sempre, que aquela garota tinha tudo para se destacar dentre uma multidão de
outras garotas por ser feliz acima de tudo, e também que aquela mulher, e não
menina ou garota, era linda, era perfeita e tinha de ser sua.
Dois
desacostumados a relacionamentos, dois inocentes sem inocência, dois viventes
de vidas tomadas por monotonia, mas dois. A rotina ainda estava lá, mas não era
mais um problema; havia o tempo em conjunto. As surpresas ainda assustavam, mas
eram boas, eram surpresas de um casal. E eles hesitaram em falar demais, em
deixar que as palavras tomassem conta na vontade que os fazia acelerar, mas
então disseram seus sentimentos, e riram e comemoraram e ficaram juntos, e é
assim até então.
Ele
sabia que, em seu mundo, a magia inexistia.
Sabia
mais do que ninguém.
Mas
ele também sabia que, conforme a beleza da vida se revela, a mágica existe, sim,
mesmo que dentro de cada um de nós, seja ela um simples amor, seja ela um
complexo encanto.
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