sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Conto - Criança




Em homenagem ao Dia das Crianças que está chegando, nada melhor do que um pequeno texto sobre elas! Espero que gostem!

Criança

Havia tanta beleza naqueles movimentos que eu me perdia, segundo a segundo, deslumbrado na amorosa relação de tantos seres, de tantas vidas, cujos sorrisos eram o maior prêmio que um velho como eu poderia desejar.
—É a sua vez de contar!
Os olhos eram lindos, lindos e inocentes, e esta era uma beleza que passei décadas sem encontrar. Aquela magnificência de olhar para alguém e ler seus pensamentos, mas não sua criatividade, de entender a simplicidade de suas virtudes mas jamais compreender o trabalho do mecanismo que era seu cérebro agitado, impossível de acompanhar tamanha exaltação de tão grandiosa felicidade. Naqueles olhos, sejam verdes ou azuis ou mesmo nos tradicionais tons de castanho, eu via a infância que tive, há muito tempo, e a recordava com um sorriso de orelha a orelha. Eu me via naquela idade, com pernas curtas e funcionais, com braços fortes e singelos, ainda com cabelos e uma boa pele. Muitos sentir-se-iam entristecidos, entendendo que a vida passou e que não mais voltaria, mas eu vi ali a felicidade, vi a vontade de viver e, mais do que tudo, a sensação de dever cumprido.
—Eu já contei uma vez!
—Então venha nos pegar, bobão!
—Isso não vale!
Corriam de um lado para o outro, caíam, choravam, levantavam-se e corriam outra vez, sem parar, sem descansar, pois descanso era tempo perdido, era fraqueza que criança não tinha, era desleixo com as brincadeiras e seus participantes. Sem preocupações, sem responsabilidades, sem defeitos ou qualidades, apenas eles mesmos, arteiros, criativos e inocentes, ainda que maliciosos de maneira desatenciosa. Muitos sonhavam em crescer pela altura, pelo dinheiro ou pelas possibilidades, mas nenhum deles entendia o quão ruim crescer lhes seria. Anos mais tarde, quando os fios grisalhos lhes tomassem os rostos, quando as rugas assinalassem a testa, representando os calendários deixados para trás, entenderiam que aquela era a melhor época, que a melhor coisa era não se preocupar com nada além de correr, pegar alguém e escapar do próximo pegador, se esconder e torcer para não ser encontrado, achar um esconderijo no escuro e aguardar o gato-mia alheio para então miar com a voz mais diferenciada que pudesse criar.
E aí já seria tarde demais, como eu percebia agora.
O tempo não volta mas, se voltasse, eu faria tudo igualzinho.
—Vovô, vovô!
Vovô.
Aquele era eu. Minha neta corria até mim, linda com seus cachos de princesa. Eu a esperei, os braços abertos, o sorriso tomando conta de mim. Recordava-me de quando era eu a chamar por meu avô, e ele me esperava daquele mesmo modo, e eu o achava um bobo, um velho ranzinza e confuso, mas agora lhe compreendia com perfeição, e achava-o um herói, um bom homem, um exemplo.
—O que foi, querida?
Afaguei seus cabelos com as mãos surradas, e ela sorriu em resposta. Era linda, saudável e simpática, com um sorriso de janelas abertas e olhos manchados por barro e poeira.
—Vamos brincar também, vovô! Você pode contar enquanto nos escondemos!
Eu era velho demais para isso.
Foi quando parei para pensar.
Eu era velho demais para o quê?
Ser criança era viver, e eu nunca entendi isso quando o fui. Eu brincava, corria, saltava, cantava com meus amigos, implicava com as garotas, rolava no chão e na grama; fazia de tudo um pouco. Aquilo sim era a vida, e não o que se faz após crescer. Aquele é o melhor dos tempos, o tempo que voa na passagem, e que se distancia cada vez mais, sem voltar, sem ser lembrado.
Eu era velho, velho demais, mas não velho demais para viver.
—Eu já disse para vocês que era um excelente contador?
As crianças gritaram e sorriram, e então se esconderam, cada qual num lugar mais óbvio que o outro, e eu contei, fingindo não vê-las, fingindo não escutar suas risadas e respirações, e sorria como eles, como uma criança, não como um velho de poucos dias restantes.
E eu contei, procurei, encontrei, sem correr tão bem quanto eles, sem pular ou me jogar como eles, mas me divertindo tanto quanto, senão mais.
Naquele momento, entendi que ninguém é velho demais para nada.
Estava eu, um velho de corpo, mas ainda uma criança na alma, e nada poderia ser melhor do que isso.

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