CINZAS NO CAMPO DE BATALHA
Havia
cinco generais, postados no imenso hall de um castelo.
A
simples presença daqueles homens fazia do ar mais denso, difícil de respirar.
Eram homens como todos os outros que os assistiam, não imortais, não mais
valentes ou poderosos. Homens, simples homens, fantoches numa batalha muito
maior do que suas mentes. Mas eram homens de valor, cavaleiros, guerreiros
dispostos a morrer por seus ideais, sem medo algum.
Isso
os tornava deuses.
—Camelot
não cairá antes mais uma dessas investidas —disse Bedwyr. Sua voz latejava as
paredes, ecoando nos pensamentos de cada servo, de cada irmão de arma. Vestido
em sua armadura cristalina, o cavaleiro arrastava uma imensa espada bastarda no
solo, arma integrada a mecanismos futurísticos que lhe permitiam atingir um
alvo numa distância muito maior do que sua lâmina. —Somos fortes, e somos
maioria.
—Arthur
está com eles —interveio Caradoc, coçando a barba ruiva com os dedos, —nunca
podemos nos esquecer disso. Ele tem a Excalibur em mãos. Nem mesmo cinco de nós
podemos fazer frente àquela arma.
—Não
faremos frente a uma espada encantada com armas mundanas —lembrou Galahad, as
tranças douradas inertes em suas costas. —Nosso exército é feito de peões.
—Apontou todos os cavaleiros menores, jovens e tolos se comparados a qualquer
um dos generais. —São seguidores fiéis, mas ainda são fracos. Milhares deles
não fariam frente a Arthur, centenas tombariam ante os líderes que ainda se
curvam.
Gingalain
escarrou no solo.
—Como
eles podem? —parecia indignado. —Como podem os campeões evitarem a verdade?
Arthur enlouqueceu! Ele tem a arma mais poderosa do mundo em mãos, tem a
fidelidade do mago mais sábio do universo. Ainda assim, pretende destruir o
Santo Graal! Malditos sejam Lancelot, Mordred, Sagramor e Uriens, que
despercebem tamanha tolice que têm feito.
—Não
podemos julgá-los, Gingalain —Lamorak interrompeu. —Eles são nobres, como nós.
Cada um tem seu ideal, sua motivação. Senão estão do nosso lado —
—Então
estão contra nós —definiu Bedwyr, e a discussão estava encerrada. —Aqueles que
suspendem lâminas contra os santos da Távola Redonda, afrontam a guilhotina de
seus destinos. Se nos desafiam, daremos a ele as mortes honradas que merecem,
bem como dolorosas execuções às quais criminosos são submetidos.
Caradoc
oscilou, a mão cobriu os olhos.
—E
como saber se não somos nós os traidores? —perguntou. —Como podemos ter certeza
de que escolhemos o lado correto para lutar?
—Hesita
por causa de seu irmão, Caradoc —disse Gingalain. —Mordred não é mais parte de
sua família. Desista de considerá-lo. Não há espaço para dúvida entre nós.
—Não
há dúvida em minha mente —mentia, mas o teatro estava acima de suas
habilidades.
—Assim
espero —Bedwyr, as mãos postadas nos ombros de seu companheiro. —Façamos da
seguinte maneira. —Tocou levemente o cabo da espada de Caradoc, tilintando sua
bainha no contato com as braçadeiras. —Guerrearemos, outra vez. Mas você não
mais será um protetor, Caradoc.
—E
o que serei?
—Um
assassino. Você matará Mordred, para que não haja receio algum em seu coração.
Arthur
estava atirado no solo, um dos ombros sangrava.
A
armadura prateada tinha escoriações, marca de infinitos combates dos quais já
participara naquele novo mundo. Apoiado num rochedo de forma bizarra, Arthur
lembrava-se de seu tempo de rei, de Avalon, do medievalismo que deixara para
trás. Estavam no holocausto, numa terra que desconheciam, levados até lá pela
magia que jorrara do Santo Graal quando este fora encontrado.
Ali,
em sua linha de visão, havia um mundo tecnológico.
Cidades
e mais cidades se estendiam no horizonte, iluminadas por invenções que os
cavaleiros sequer sonhavam entender. Postes com globos de luz, veículos movidos
sem a necessidade de cavalos, água tratada por máquinas inteligentes, tudo era
tão estranho, e ao mesmo tempo tão fascinante! Não havia tempo para admirar, no
entanto. Estavam em guerra, uma guerra que possivelmente não teria fim sem
causar dor para ambos os lados. Arthur tinha em mãos uma lenda, e com ela
pretendia destruir o artefato sagrado que tanto procurara em sua vida.
Com
essa escolha, fora traído por cinco de seus melhores homens, cavaleiros e
amigos.
—Ainda
pensa neles, não é? —era Lancelot. Aproximava-se com vagarosidade, acompanhado
do velhaco feiticeiro Merlin, e ambos se sentaram ao lado do antigo rei. —Nos
traidores, naqueles bastardos.
—Eles
foram meus homens, Lancelot.
—Eles
foram meus irmãos, também. Foram cavaleiros, guerreiros pelos quais eu ousaria
sacrificar minha vida. Os salvei, e também fui salvo por eles, muitas e muitas
vezes. Não mais. Agora, são vilões, são perversos. Querem nos impedir, Arthur,
e isso eu não posso permitir.
Arthur
suspirou. Não era mais rei, nem mesmo tinha o orgulho e a firmeza de uma
realeza. Era um mortal, outra vez, e
hesitava como um.
—Estamos
do seu lado, meu amo —disse o feiticeiro.
—Você
não é um servo, Merlin.
—Para
mim, o senhor será sempre um rei. Tem em mãos uma das lendas, e ouso dizer que
seu próprio nome é uma lenda em nossas terras. Com a destruição daquela
maldição, teremos de volta nosso lar, nossas casas e famílias. Seremos livres
dessa prisão, livres para comemorar pela eternidade.
—Não
há o que comemorar. As perdas foram maiores do que vitória alguma pode ser.
—Arthur se levantou. Tirou sua espada da bainha, a lâmina dourada cintilou
junto da lua. Era linda, adornada com cristais e joias sem nome, tão brilhante
quanto o próprio sol poderia ser. —Faremos valer todos os sacrifícios, e então
baixaremos as armas. De volta ao nosso lar, hei de ser camponês, não mais cavaleiro.
Esta vida me trouxe honra, mas carregou-me para um mar de incertezas e dores.
—O
senhor é um —
—Não
quero mais reinar, não quero comandar tropas. Quero viver aquilo que não pude
até então. Quero ser um homem sem títulos garbosos, sem nomenclaturas
especiais. Quero ser livre, livre da responsabilidade, livre das normas e das
decisões, pois esta é a maior liberdade que se pode alcançar.
—Renunciará
seu título, meu lorde? —Lancelot se surpreendeu. —Avalon entrará em colapso com
sua decisão! Quem será o responsável pelo domínio de incontáveis cavaleiros de
nossa época?
Arthur
deu as costas aos seus companheiros.
—Acredito
que somente um feiticeiro poderia tomar meu lugar —disse ele.
Merlin
balbuciou:
—O
que disse, meu senhor?
—O
que entendeu, Merlin. Quando retornarmos, você será o rei, o dono de Camelot, o
líder de Avalon. Serei teu submisso, teu escravo, pois apenas assim serei
feliz.
—Mas
—
—Teremos
tempo para discutir tais assuntos futuramente. Agora, precisamos preparar
nossas tropas para um novo embate.
Sem
demoras, partiram os três para se reunir com os outros generais, imbuídos na
organização do exército restante. Lancelot refletia com preocupação, um mau
pressentimento assolando seus pensamentos.
Merlin
tinha um estranho sorriso no rosto.
Caradoc
patrulhava áreas muito distantes do castelo.
—Meu
senhor —chamou um dos cavaleiros que o acompanhava. —Não deveríamos voltar?
Nossa zona de patrulha ficou para trás há horas. Estamos avançando no
território dos rebeldes e —
A
espada girou no ar, e a cabeça do cavaleiro quedou sem resistência.
—Algum
outro temeroso entre nós?
Vinte
homens se mantiveram calados.
—Excelente.
Caradoc
estava furioso. Por dentro, queimava em seu coração o desleixo de ser
destratado, de ser visto como um fraco. Duvidavam de sua lealdade pelo fato de
estar contra seu irmão, contra Mordred. Que diferença faria aquilo? Ele
escolhera um lado, escolhera as tropas de Bedwyr para proteger o Santo Graal.
Mataria Arthur, se fosse preciso. Mas não, eles ainda duvidavam de sua escolha,
de suas capacidades. Pediram a ele que matasse seu irmão, como um teste final.
Como uma prova que se faz a uma criança.
Não
esperaria tanto tempo assim. Queria provar para todos, inclusive para si mesmo,
que não era fraco, não era medroso. Provar que mataria um deus com as próprias
mãos, se houvesse necessidade.
Por
isso, naquele momento, atravessava as fronteiras do confronto, sozinho. Tinha
homens, cavaleiros inexperientes, nada mais. Vinte espadas além da sua, vinte
espadas que ele poderia derrubar sem dificuldade alguma. Eram seus servos, no
entanto, fiéis e destemidos, até que se prove o contrário. Não esperava invadir
as tropas de Arthur, não teria chances contra cinco generais e um mago.
Esperava encontrar algum desavisado, uma sentinela ou uma patrulha.
O
sorriso se estendeu de maneira insana quando encontrou, afastado dos
acampamentos, um de seus antigos irmãos de arma: Sagramor.
—Alto
—ordenou Sagramor ao perceber a tropa que se aproximava. —Cerquem-nos —disse
aos seus homens, prontamente obedecido. Brandiu sua espada. —Quem são vocês?
Quando
reconheceu a marca de Caradoc, era tarde demais.
—Matem
todos —ordenou o general, e o combate se iniciou com essas palavras. Desviando
de todos os lacaios, Caradoc alcançou Sagramor, as espadas se chocaram.
—O
que faz aqui?
—Vim
para matá-lo —sorriu o cavaleiro, trocando golpes tomados por ira. —Não me
entenda mal, não há nada pessoal envolvido. Eu quero apenas provar para mim
mesmo, e para todos os outros, que não existe laço algum entre nós. Vocês são a
escória, seguidores de um falso rei, de um homem que deseja destruir a maior
esperança para o nosso mundo.
—Essa
esperança nos trouxe até aqui com aquela magia infame! —bradou Sagramor. —Não
consegue ver o que está à sua frente, Caradoc? Esse artefato é perigoso, é poderoso
demais! Nem mesmo Merlin poderia controlá-lo, ninguém pode!
—Alguém
poderá, um dia. Isso não justifica desistir antes de tentar.
As
lâminas faiscavam a cada contato, tilintando no solo acidentado como uma trilha
de metal sendo pisoteada por gigantes. Sagramor e Caradoc se equiparavam,
nenhum golpe passava por suas defesas, nenhuma espada avançava além da
distância que a outra lhe permitia. Treinaram juntos durante tanto tempo,
lutaram em tantas guerras. Conheciam um ao outro como as próprias famílias não
chegariam a conhecer.
—Tudo
o que queremos é voltar ao nosso mundo, Caradoc!
—E
não é destruindo a representação sagrada de nossa divindade que conseguirão
isso! Não entendem a calúnia que têm em mente?
—Você
está louco!
—Vocês
estão, e eu vou provar que os odeio!
Sagramor
tinha habilidades similares a Caradoc, mas faltava-lhe algo: ódio. Hesitava ao
golpear um dos homens que esteve ao seu lado durante anos. Caradoc não. Não
odiava Sagramor, não odiava nenhum adversário. O ódio era dele, e apenas dele,
pelas coisas terem chegado àquele ponto. Suas pancadas se tornaram mais
pesadas, seus cortes mais precisos, tudo pelo ódio, uma raiva incontrolável, um
frenesi que só acabou quando a lâmina atravessou o aço do peitoral de Sagramor,
forçando o oponente a tombar em agonia.
—O
que você se tornou, Caradoc? —tartamudeou o cavaleiro.
Sagramor
olhou ao redor. Suas tropas estavam derrotadas, mas ainda restavam cavaleiros
de seu inimigo. Perdera.
—Eu
me tornei forte, pois escolhi o lado correto para me unir —respondeu ele.
—Gostaria de deixar uma mensagem contigo, Sagramor, mas acredito que não vá
sobreviver até que ela chegue a Arthur. Faremos de outro modo, então.
Com
um aceno de mão, Caradoc chamou três de seus homens.
—O
que vai fazer?
—Vamos
escrever com tinta vermelha, meu caro companheiro —sorriu o insano cavaleiro.
—Depois disso, vamos tornar as coisas mais quentes.
Mordred
e Uriens guiavam as tropas na oração da fidelidade. Ao término, todos
sustentaram suas espadas em riste, imitados por inúmeros soldados receosos,
guerreiros experientes ou jovens desacostumados à arte de guerrear.
—Cavaleiros
buscam a perfeição humana! —bradou Uriens, e todos repetiram suas palavras.
—Respeitamos os semelhantes, os enfermos, as mulheres e as crianças. Somos
leais na paz, mas acima de tudo, somos justos e valentes na guerra!
Houve
um urro de vibração, e então todas as armas voltaram a suas bainhas.
—Acredita
que podemos vencer essa guerra? —Mordred sussurrou.
Uriens
virou-se para ele, deixando claramente à mostra o braço esquerdo, mutilado no
confronto anterior.
—Que
não exista medo em teu coração, Mordred —respondeu o cavaleiro de um só braço.
—Se eu, que mal posso sustentar um escudo, não hesito ante um milhão de
cavaleiros, não será você a nos trair pela decisão tola de seu irmão.
—Eu
não tenho um irmão.
—Excelente.
Arthur
e os demais chegaram neste momento. Todos os cavaleiros mais jovens se curvaram
perante seu comandante, que fez sinal para que se levantassem. O silêncio
reinou no proceder da cerimônia.
—Vamos
nos preparar para uma nova investida —disse Arthur, Excalibur rutilando em sua
bainha. —Desta vez, derrubaremos todos os muros daquela fortaleza que eles
chamam de Camelot. Não há um castelo neste mundo que possa se comparar com a
magnificência de nosso lar, meus homens! Ousam blasfemar contra o forte que
tanto nos honrou, pagarão com suas vidas por isso!
A
espada dourada riscou o ar, simbolizando a lenda que era.
—Em
nome de Excalibur, e em nome do orgulho que tenho por todos vocês, venceremos
essa batalha, de uma vez por todas!
Todos
os cavaleiros urraram, repetindo calorosamente o grito de guerra que trouxeram
consigo do outro mundo.
Arthur é o nosso
rei! Arthur é o nosso rei! Arthur é o nosso rei!
Mas
não o era.
—Onde
está Sagramor? —perguntou Arthur, dessa vez murmurando para que apenas Uriens o
escutasse.
—Ele
acompanhou as patrulhas desta tarde, meu lorde. Não retornou até então.
—Vou
verificar o andamento das sentinelas. Lancelot, quer me acompanhar? Precisamos
definir novas estratégias para que possamos montar um cerco naquela fortaleza.
—Sim,
meu senhor.
—Dividam
as tropas em unidades, preparem cada batalhão para que um general possa
comandar. Merlin, tome conta de alguns homens até que Sagramor esteja de volta.
Se há de comandar um dia, é melhor que aprenda como é feito.
O
feiticeiro assentiu, a expressão abobada.
Arthur
e Lancelot se afastaram do acampamento, deixando para trás as barracas de
mantimento e as armarias. Caminharam trocando informações quanto as batalhas
anteriores, discutindo táticas e possibilidades, refletindo sobre os pontos
fracos da tropa adversária.
Foi
então que encontraram sangue.
—Merda,
o que é isso agora? —Lancelot tinha a espada em mãos.
—Vamos.
Seguiram
a trilha e foram surpreendidos por corpos, pedaços de armadura e armas quedadas.
Havia claros sinais de combate, escudos destroçados por maças e ossos à mostra
nos cadáveres de guerra. Entre as sentinelas, servos de Bedwyr, de Galahad,
Gingalain e Lamorak. Até mesmo o símbolo de Caradoc estava em alguns dos
escudos.
Ao
longe, o corpo de Sagramor jazia sem vida, a pele tomada por queimaduras
profundas. Estava cercado por uma mensagem tenebrosa, escrita com seu próprio
sangue.
Onde está o nosso
rei quando precisamos de um?
—Eles
mataram um de nós —disse Lancelot, ajoelhado sobre o corpo de Sagramor. Fechou
seus olhos com as mãos, orando por sua alma em silêncio. —Ousaram nos provocar.
Não podemos deixar que isso passe impune.
—E
não deixaremos —Arthur tinha firmeza na voz. Lancelot nada disse, mas notou
naquelas palavras um pouco da valentia que há muito não via naquele homem. Era
como um rei, novamente. —Eles vieram até nós em zombaria; vamos até eles com o
caos nos olhos. Incineraram um amigo, um irmão. Vou fazer arder todas as
esperanças e emoções que sobrevivem em suas almas decrépitas.
Aquela
foi uma noite de luto, e também uma noite de preparativos.
A
manhã chegaria em poucos minutos, mas antes dela chegariam as tropas de Arthur.
Uma sentinela das proximidades foi silenciada, outros dois soldados tombaram
nas flechas dos homens do rei. Aproximavam-se numa marcha silenciosa, diferente
do comum. Não queriam apavorar, não queriam demonstrar superioridade, assustar
com o baque de suas botas metálicas contra o solo.
Queriam
surpreender, pois esta era a melhor chance que tinham.
Quando
avistaram a primeira das unidades de Bedwyr, Arthur mandou que todos os seus
homens parassem, fazendo uso de apenas um sinal de mão.
—Merlin
—chamou ele. —Você comandará a tropa de Sagramor, como já havia dito. Vou
distribuir meus homens pelos arredores, e então invadirei a fortaleza. Quero
que esses traidores paguem pela morte de nosso irmão. Faça-os agonizar, derrube
sobre eles a lua e todo o peso de suas atitudes. Não seremos derrotados.
—Sim,
mestre.
—Meus
irmãos —continuou o rei, voltando-se para os demais generais. —Confortem seus
cavaleiros com palavras de honra. Após o primeiro grito, matamos ou morremos,
pois nenhuma outra opção será válida.
Todos
assentiram, e então as armas foram empunhadas.
Era
hora do ataque.
A
morte veio tão rápida quanto um manto de virotes, despejado sobre os protetores
da fortaleza com violência e brutalidade. Quando o sol começou a nascer, o
sangue já demarcava muito das redondezas de Camelot, empoçando-se nos corpos
cujas vidas eram carregadas pela guerra. Os generais se separaram, Merlin
partiu à frente, Arthur dispersou seus homens. Cada um tinha seu plano, sua
posição, eram heróis num combate planejado.
Os
adversários, no entanto, conheciam suas táticas. Após tantos anos de
convivência, cada um daqueles homens poderia apontar os defeitos e qualidades
dos outros, indicar as estratégias em cada situação. Assim sendo, mesmo
surpreendendo num ataque sem aviso, logo os estandartes de Bedwyr, Caradoc,
Gingalain, Galahad e Lamorak foram suspensos por seus homens, afrontando as tropas
de cada irmão de arma. Lancelot partiu contra Bedwyr, impossibilitando-o de
perseguir Arthur, que a essa altura já se infiltrava no castelo onde jazia o
Santo Graal. Uriens se uniu a Merlin, e ambos confrontaram três dos generais, a
magia calorosa do feiticeiro já cumprindo seu papel na desvantagem da batalha.
Por último, Mordred, o gosto de sangue nos lábios. A espada tremia nas mãos, em
riste; Caradoc se aproximava.
—Irmãozinho —zombou o adversário.
—Você
matou um dos nossos, Caradoc —disse o outro. —Eu não mais tenho um irmão.
—Ora,
é uma pena! Nosso sangue é tão valente, tão heroico!
—O
que há de heroico num traidor?
Caradoc
avançou.
—Por
que não me responde, escória?
As
espadas se encontraram, a faísca radiante acompanhada do sol nascente. O choque
das lâminas se repetiu por vezes, sinfônico e ritmado a todas as outras armas
brancas que se abraçavam no conflito. Ao redor, outras incontáveis batalhas se
misturavam, indescritíveis e irreparáveis; maças ruíam escudos, martelos
esmagavam ossos, flechas trespassavam a carne mais frágil e desprotegida.
Virotes e mais virotes escapavam das bestas das sentinelas, encontravam seu
destino final em armaduras brilhosas; uma delas rasgou o estandarte de Caradoc,
mas ele não se importou.
—Onde
está Arthur? —perguntava Bedwyr, descarregando toda sua fúria contra Lancelot,
que tinha dificuldade em resistir aos poderosos golpes desferidos pelo general.
—Guerreando,
como todos nós —respondeu Lancelot.
—Galahad,
encontre-o! —ordenou ele. —Arthur é um covarde! Pretende se aproveitar da
guerra que nos cerca para capturar o Santo Graal.
—Vou
arrancar a covardia pela sua garganta —disse Galahad, e então montou um cavalo
sem dono no campo de batalha, abandonando seus homens sob a tutela de
Gingalain.
Um
corredor de homens incendiou no caminho de Galahad.
—Eu
não faria isso, se fosse você —era Merlin, o cajado acima dos olhos. Por sua
vontade, armaduras se partiram, o solo trincou num terremoto. —Há outras
preocupações para atentar, Galahad.
—Posso
cuidar dele —disse Gingalain. —Vá atrás de Arthur!
—Está
enganando, meu caro. Nenhum de vocês pode cuidar
de mim. A propósito, Arthur me pediu para lhes garantir um presente. Disse-me
que a lua deveria ser de vocês, ou algo do tipo. Sendo ele um rei, quem sou eu
para recusar tal ordem, não concorda?
Merlin
ergueu os braços para o céu, e a lua que já desaparecia na manhã tremulou.
Partiu em infindáveis peças, desabando sobre o mundo que não era deles como uma
tormenta, feria apenas os oponentes. Nenhum general se feriu, nenhum cavaleiro
de Arthur foi tocado, mas os demais sofreram na tempestade que se lançou do
céu, rasgando as nuvens claras conforme o satélite daquele mundo despencava
sobre a guerra.
—É
impressionante —murmurou Galahad, desistindo de sua empreitada.
A
guerra ao seu redor tornava-se conturbada. Um quarto da lua faltava no céu.
Lamorak
se aproveitou da distração para apunhalar Merlin, mas o feiticeiro foi mais
rápido. Não era um exímio espadachim, sequer sabia como utilizar uma espada.
Era um mago, no entanto, e tudo o que um homem poderia fazer, Merlin sabia
fazer com sua mágica. Defendeu-se com um escudo que não existia, atacou pelo
reflexo do momento, empalando Lamorak numa lança multicolorida de força e luz.
—Lamorak!
—Gingalain urrava.
—Nenhum
de vocês pode me parar —disse Merlin. Ordenou que seus homens caçassem os
fugitivos, matassem todos. —Arthur vai destruir o Santo Graal.
No
interior da falsa Camelot, Arthur subia os lances de escadaria como se não
houvesse amanhã. Os degraus espiralados dificultavam seu avanço, mas ele era
incansável, e nada poderia pará-lo naquele instante. Excalibur estava em suas
mãos, ousada e eterna, cintilando pela proximidade do artefato sagrado que
almejava destruir. Matou três ou quatro cavaleiros, sem tempo para chorar pela
honra que desprezava naqueles homens, e só então alcançou o último nível da
fortaleza.
Havia
uma única porta naquela câmara, uma porta larga e pesada, trancafiada por
correntes e blocos de metal. Arthur se aproximou, tentou empurrar a porta,
parecia impossível movê-la. Aquelas trancas eram feitas dos materiais mais
resistentes daquele mundo. Sem escolhas, sustentou Excalibur e todo seu poder,
ruiu as defesas que o impediam de prosseguir perante a lenda que tinha em mãos.
Tudo se partiu como um pergaminho rasgando, as paredes desmoronaram de ambos os
lados do largo arco que moldava aquele salão defensivo. Arthur se esgueirou
pelos destroços, saltou sobre o que restara daquele escudo improvisado,
encontrando ali o que tanto procurara.
Estava
sobre um altar de mármore, rutilando enquanto o ar lhe acariciava a superfície.
Um cálice maior do que os elmos que quedavam do lado de fora daquele local,
maior do que as armas carregadas por grande parte dos cavaleiros. De tudo o que
se podia pensar, o Santo Graal era mais.
Mais incrível do que se pode descrever, mais mágico do que a própria magia,
mais poderoso do que Merlin sequer sonharia em ser.
Mais
do que a Excalibur, Arthur ousou pensar, mas a espada em suas mãos era tudo.
Aproximou-se
daquele artefato, e a simples presença daquele objeto fazia a pele do general
arder. A armadura enferrujou em certas partes, incapaz de suportar a pressão da
mágica do Graal. Os cabelos de Arthur se tornaram mais grisalhos, os olhos
perderam o brilho, os dedos afrouxaram a força exercida para carregar a espada
lendária. Apenas Excalibur suportava todo aquele poder. Não hesitava, não
deixava de brilhar, não fraquejava ante uma magia incompreensível,
incomensurável, antiga.
Arthur
levantou sua arma. Bastava um golpe, um único golpe, para todo aquele poder
estilhaçar à sua frente, extinguindo o pesadelo de viver naquele mundo que não
lhe pertencia. Poderia voltar para seu lar, para sua família, comemorar com
todos os seus amigos, abandonar o título de rei. Poderia ser camponês, ser um
homem, um pai.
Hesitou.
Com
aquele artefato em mãos, Arthur poderia ser o que quisesse.
Era
como se algo o chamasse, clamando por seu nome num túnel profundo e escuro.
Tinha propostas macabras, ainda que tentadoras. Oferecia-se de corpo e alma
para o general, fazia promessas que ninguém poderia acreditar, mas não mentia.
Era o próprio Graal a falar com Arthur, mostrando-lhe cenários onde ele se
tornava um Deus, onde mesmo Excalibur não era páreo para a lenda que ele se
tornara. Ele era mais que a Excalibur, mais que Merlin, mais que o próprio
Graal.
A
tentação era grandiosa. O punho cerrado no cabo da arma oscilou, perdia as
forças. Lá fora, a guerra estrondava pelo sangue e pela glória. Dentro da mente
de Arthur, outra guerra, mais violenta, mais insegura.
—O
que está fazendo?
A
voz fez com que Arthur despertasse de seu transe. Era Merlin.
—Eu
não sei —
—Você
está hesitando, Arthur! Está se deixando levar pela ambição!
Estava,
ainda que não pudesse acreditar naquilo.
—Eu
falhei.
—Destrua
o Graal!
—Eu
não posso.
—Você
pode!
Arthur
olhou novamente aquele cálice sagrado. Era tudo, tudo mesmo. Poderia oferecer
sonhos e realizações a qualquer homem que soubesse como utilizá-lo.
—Tem
razão —disse ele, a confiança outra vez em sua voz. —Eu posso.
E,
com a Excalibur, Arthur partiu o Santo Graal ao meio.
Esperou
por uma explosão indizível, por luzes, por estrondos, mas não houve nada. Houve
silêncio, e apenas isso. Arthur se sentiu inerte, como se o tempo estivesse
parado, e estava. Tentou se mover,
falhou. A espada lendária estava quedada ao solo.
Apenas
Merlin se movia.
—Excelente,
meu rei —disse o feiticeiro. —Agora sim tivemos uma vitória digna. Sabe, acho
que vou aceitar a sua oferta. Ser o rei de Avalon não deve ser tão ruim, estou
certo? Dominar tantas pessoas, tantas vidas ingênuas. É muito poder para um só
homem, ou um só cavaleiro. Não para um mago.
Arthur
não entendia. Queria perguntar, gritar, matar,
mas era incapaz, então apenas escutou.
—Destruir
o Santo Graal faz de mim o maior centro da magia do universo —contou o
feiticeiro. —Este artefato era o único poder que podia se equiparar ao meu.
Logo, sua empreitada desesperada acaba por me tornar um rei de proporções que
nem mesmo você seria capaz de alcançar. Como se sente sendo um mero peão,
Arthur?
Sentia
muitas coisas, mas não sentia o próprio corpo.
—Sabe
o que farei agora? Voltarei para Avalon. Serei um lorde, um governante. E vocês
ficarão aqui, para sempre. Sem o poder do Graal, nenhum de vocês poderá
retornar. Não há obstáculos, não mais. —Merlin pegou Excalibur no chão. —A
propósito, levarei comigo essa espada. Somente você pode utilizá-la, meu rei,
portanto eu vou mantê-la por perto. Não quero ser surpreendido.
Merlin
sorriu, deu dois tapas provocantes no rosto de Arthur e partiu.
Lá
fora, a guerra cessara. Quando o tempo voltou a correr, nenhum homem tinha
forças para lutar. O silêncio era tumular, chegava a ferir. Arthur deixou a
torre para trás com o coração abalado, sem sua arma. Os generais mais uma vez
se reuniram, admitiram a tolice perante aqueles que se opuseram. Choraram pela
morte de Lamorak e Sagramor, mas de que adiantaria chorar? Estavam presos na
liberdade, trancafiados numa terra que nunca os veria como filhos.
No
campo de batalha, todos eram assolados pela incerteza. Merlin se fora, provando
ser ele o verdadeiro traidor. Partira, levando consigo a esperança, a vontade,
a fé.
Restaram
apenas cinzas.
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