Arrependimentos
Havia
um corpo sobre o seu, o corpo de um estranho. Ele se mexia de maneira
desajeitada, respirava com dificuldade, suas bochechas ruborizavam entre movimentos
acelerados e vagarosos, os olhos revirados pelo júbilo.
Abaixo
dele, ela chorava, já adulta, já quase velha, mas as lágrimas ainda eram
infantis.
A
dor não era física. Já estava acostumada, e talvez o costume ao que lhe deveria
parecer especial fosse um castigo tão pior que as torturas no corpo não mais
lhe aturdiam. Ela era superior, mas era a escória, e sabia bem disso. Entre o
pranto de uma criança inocente, misturado aos falsos ganidos de uma prostituta
de luxo, aquela mulher se recordava de uma vida toda que passou diante dos seus
olhos, escorreu por entre seus dedos e, num momento inoportuno de difícil
visualização, lhe escapou pelas frestas de um bueiro em abismo, partindo para
nunca mais voltar.
Ela
se lembrava da infância, onde fora ensinada aos segredos da vida.
As
palavras de sua mãe não eram as mais belas, muito menos as mais carinhosas, mas
talvez fossem as mais sinceras.
—A
vida é um vale cerrado, minha filha. O que move as montanhas é o dinheiro.
Não
um belo exemplo, não uma filosofia a ser seguida, mas a realidade, porca e
escrota como tinha de ser, e assim ela cresceu, uma garota imersa na sujeira de
um mundo podre, uma criança nascida nas mãos de adultos cuja responsabilidade
faltava, inexistia.
—Eu
quero estudar.
Um
desejo inocente, um pedido ou uma súplica, algo que orgulharia os pais.
Mas
não aquela mãe.
—Foda-se,
garota. Mal temos grana pra comer. O que mais você quer que eu faça?
E
ela chorava, chorava demais, abaixo do travesseiro, sob os lençóis, enquanto
fuçava o lixo das casas vizinhas.
—Você
tem um belo corpo, garota.
O
podre do vizinho, aquele velho de barriga de verme, bigodes curvos e barba
tomada por óleo de frango. Ele sempre a elogiava, mas seus elogios eram tão
malcheirosos quanto suas roupas e seu suor.
—Ele
é horrível, mãe.
Uma
filha de doze anos discutindo beleza com uma mãe alcóolatra e viciada em
narcóticos, numa realidade onde brincar com bonecas ou se esconder para ser
encontrada por companheiros de escola era tão irreal quanto ganhar na loteria.
—Mas
ele é rico, filha.
E
este era um novo padrão de beleza.
—O
que você está sugerindo?
Ela
deu de ombros, indiferente e bicuda.
—Talvez
você possa estudar.
Ele
era nojento.
Ela
era virgem.
Mas
foi com o dinheiro da sua virgindade que ela conseguiu estudar.
Desde
então, ela chorava todos os dias.
A
mãe abusava do dinheiro que ela conquistava com seu corpo, bebia e fumava e
cheirava, nada de trabalhar. A garota chorava sempre, mas não se dava ao luxo
de desistir. Riscava as folha de um caderno que comprar antes das aulas, a capa
de bonecas rabiscada, pois a inocência ela jamais conheceu. Dizia para si mesma
que, quando as folhas terminassem, ela deixaria aquela vida, estaria formada,
pronta para o mercado, pronta para o mundo, preparada para a mais glamorosa das
vidas.
As
folhas acabaram, mas não o dinheiro, e aquela forma nauseante de se conquistar
o mundo tornava-se um vício.
Os
estudos foram abandonados, deram lugar ao luxo. Ela agora tinha um carro
importado, roupas de elegância duvidosa, vestimentas de couro de animais inexistentes
em seu país. Vivia com o cabelo escovado, com perfumes franceses, com saltos
tão finos que lembravam agulhas, mas aquilo
não era vida. Ela sobrevivia, talvez;
nunca vivera. A mãe se fora há alguns anos, mas que diferença aquilo fazia? O
dinheiro do vício lhe restava, mas era um extra, garantindo mordomias para a
casa de dois andares, o salário da empregada e a gasolina de seu automóvel.
—Eu
não estou te pagando pra chorar, vadia.
Mas
ela chorava por receber. Chorava todos os dias, todas as noites, todas as
madrugadas. Chorava ao ver no espelho as rugas que anunciavam o fim de sua
juventude, mesmo disfarçadas na maquiagem garbosa; chorava ao ver no reflexo o
grisalho em seus fios, mesmo que camuflados no tingimento dourado. Chorava pela
despedida da ingenuidade, das virtudes, por ter trocado a miséria e a humildade
pela ambição mais nojenta que ela poderia imaginar.
—Me
desculpe.
Ele
não queria desculpas. Ele queria sexo.
Todos
eles sempre queriam sexo.
E
era isso o que ela era: um objeto. Nada mais, não pessoa: um utensílio de
satisfação, sem nome, sem documento, sem sonhos ou prudências. Algo, não alguém. Uma coisa, não uma
mulher.
Um
poço de arrependimentos.
Cara, pancada nas costas esse seu conto. Muito bom! Parabens!
ResponderExcluirValeu mesmo Torinks, fico feliz que tenha gostado! Abraços!
ResponderExcluirFiquei triste lendo ele. Muito triste esse conto. =/ Mas muito bem escrito. Ai, credo. É sério. Que vida horrível dessa personagem. Meu Deus...
ResponderExcluirLuz Marrye