Ausência
Sentado
num sofá plumado, estofado pelo conforto que infindáveis mundos desconheciam,
aquele homem sentia-se tão desconfortável quanto a personificação do
desconforto pode ser.
Encostava-se
à braçadeira, o cigarro numa das mãos, o álcool na outra, seus eternos
companheiros, talvez os únicos a acompanha-lo até então. A fumaça deslizava por
entre seus dedos, subia ao teto de sua sala soprada com leveza e suavidade, e
ela era especial por ser assim, leve e suave, como nada mais naquela vida vazia
o era. Ele a observava dançar, no brisa fria que entrava pela janela, respirava
fundo para que tragasse o cheiro do próprio vício, deleitava-se naquilo que
logo lhe tiraria a vida e, entre um gole e outro da bebida, perguntava-se se
ainda havia uma vida a ser tirada.
Os
anos não lhe trouxeram boas coisas. Pelo contrário: os anos levaram tudo
daquele homem. Ele manteve-se ali, sentado, tendo dois companheiros que faziam
tudo passar, mandavam-no esquecer dos problemas, e ele esquecia loucamente,
somente para se lembrar no outro dia, ao acordar, como um trovão que estronda
somente algum tempo depois de tocar o solo. Envelhecendo daquela maneira, o
homem viu sua saúde ruir, mas não se importou. Viu sua estética estilhaçar, mas
não havia mais ninguém a impressionar.
Ele
não tinha mais uma família.
Sentia
falta da esposa, sempre amável e dedicada, uma mulher de princípios e virtudes,
pela qual se apaixonara décadas atrás, quando ainda era jovem, quando ainda era
ele próprio a tomar conta de seu corpo, não os vícios. Lembrava-se de seus
carinhos, de seus sorrisos, das tardes de namoro e dos cinemas, lembrava-se de
tudo o que não queria lembrar, ou talvez quisesse. Eram boas lembranças, mas
boas não eram as sensações que tais recordações lhe deixavam, rastros de
feridas profundas que jamais seriam capazes de cicatrizar.
Sentia
falta de suas filhas, aquelas que nasceram da união de um amor incomensurável,
que o abraçaram e chamaram de pai durante toda uma vida, para então lhe deixar
de lado quando ele errou, quando ele se deixou levar para além da linha do bom pai. Lembrava-se do beijo que recebi
nas bochechas, dos carinhos que tanto fizera nos cabelos daquelas lindas crias,
de tê-las no colo e nos ombros, correndo como uma montaria cuidadosa, tirando
fotos que ele sequer sabia onde encontrar dentro de sua própria casa.
Ele
sentia saudades delas, de todas elas e de todos aqueles momentos, mas nunca
mais teria uma chance de dizer isso a elas, por mais que somente uma porta de
madeira os separasse.
O
choro nascia forte em seus olhos, mas ele era rústico, era rígido como um muro,
e lágrima alguma trespassava a barreira de seus olhos. Sem alternativa, sem
escolhas ou decisões, ele ficava ali, sentado ao lado da bebida e do cigarro,
esperando. Talvez, um dia, aquela porta fina que o separava de sua vida, de sua
felicidade, se abrisse outra vez, e ele fosse lembrado como pai, como marido,
como homem da casa. Talvez, um dia, o mundo girasse diferente, e a ausência que
sentia ao lado daquelas que carregava seu próprio sangue se extinguiria,
deixaria de existir, dando lugar a uma outra vida com outras possibilidades,
onde ele não teria de beber para se esquecer de nada.
Talvez,
um dia, ele pudesse acreditar que tudo aquilo que o circundava não era sua
culpa, mas delas.
Mas
isso não aconteceria em dia nenhum.
Ele
errou, como todos os homens erram. Ele continuou a errar sem perceber, e erra
até hoje quando as ameaça, quando grita com elas ou as maltrata, mas ele é
somente isso: um homem. Um imperfeito, como todos os outros, banhados por
pecados e pensamentos errôneos. Um dia, tempos atrás, ele bebera sem razão, e
ali se iniciara sua desgraça. Agora, ao ter razão para beber, ao desejar
insanamente se esquecer do vazio que o preenche, ele faz pior. E elas sabem
disso e, assim sendo, não se aproximam. Algumas delas não o olham nos olhos há
anos, outras sequer dirigem palavras. Elas estão erradas, ele também, e a
imparcialidade mantém tudo assim, insolúvel, como uma conta física sem fórmula.
Elas
estão erradas, mas talvez os seus erros tenham se justificado ao longo dos
anos, por tantas as vezes que elas tentaram consertá-lo, e ele destruía todas
as tentativas.
A
porta se abriu, veloz, e por ela passou sua esposa. Ele a via com dificuldade, arte
zonzo, parte exausto pelo nada que fazia; esticou os dedos em sua direção, um
chamado silencioso, uma súplica sem melodia. Ele não o viu. Talvez tenha visto,
mas não faria diferença. Passou, como o vento passa por nossos cabelos, e se
foi para um outro cômodo, e então retornou carregando o que desejava, e passou
outra vez, sem que os olhos se encontrassem, e isso o fazia se lembrar de tantos
os dias em que os olhos amorosos não se descruzavam, não se afastavam em
momento algum, e ele chorou, mas chorou por dentro, pois choro algum avançaria
de seus olhos ao rosto enrugado.
A
porta se abriu outra vez, silenciosa, mas logo se fechou, sonora e súbita, e
ele ficou sozinho outra vez.
Ele
errou, como todos os homens erram, e se arrependeu, mas talvez seja tarde
demais para isso. Assim, sem que houvesse escolhas, um homem sem medo algum
conheceu o pior dos medos: o medo da ausência. E ele a teme, mas ela já o
abraça sem pestanejar, sendo sua maior companheira, acima dos vícios ou da
alienação da televisão. A ausência que se sente ao lado de todos, no meio das
multidões. A ausência que nos faz acreditar que nada somos, que nascemos para
inexistir, que seria melhor sequer nascer. A ausência que nos faz imaginar que
o mundo sem nossa presença em nada se alteraria, que atrapalhamos a vida de
quem merece coisa melhor, que criamos cenários onde a felicidade de outros
ruíram graças aos erros de nosso passado, ou mesmo do nosso presente.
E
ele, como um saco vazio de vida, mas repleto de ausência, sabe mais do que
ninguém o quão devastadora essa palavra pode ser.
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