sábado, 4 de fevereiro de 2012

Conto - A Enfermeira

Olá, companheiros.
Hoje trago a vocês um conto antigo, que consta nas páginas da coletânea Passos na Neblina. Chama-se A Enfermeira, e acredito que o nome possa revelar muito de sua naturalidade. Mas vamos ao que interessa.

"
Não era nada diferente de um hospital convencional, exceto por aquele ar de desconhecido. As paredes, branquíssimas como deveriam, aprofundavam a visão e causavam náuseas; o piso liso e frio mantinha os pés fixos ao solo, e o teto, cinzento como as nuvens de um dia pré-tempestade, fazia com que os pensamentos não circulassem corretamente. O odor do ar era irreconhecível, misturas de soros com sangue, de suor com pânico, de vida com morte. E de desconhecido.
Nunca antes estivera em um hospital tão grande quanto aquele. Oswald, renomado como um empresário de sucesso, pouco freqüentava hospitais. Evitava adentrar locais em que teria contato com pessoas doentias, o que lhe causava ânsia só de pensar. Desde criança, adquirira uma espécie de fobia com clínicas, de qualquer espécie, desde que vira sua mãe falecer em uma maca. Talvez por isso, talvez por outros diversos motivos, Oswald parecia ter ganhado uma imunidade estranha contra doenças, e raramente precisava de médicos.
Mas Oswald não estava naquele hospital em busca de um médico. Para falar a verdade, sequer sabia o por quê de estar ali. Sequer sabia onde estava...
Sua mente estava confusa, seja pelo odor fétido de morte que rodeava aquele corredor, seja pela algazarra de pensamentos que as diversas portas esbranquiçadas do lugar lhe causavam, seja pela luz fraquejada no teto. Não se lembrava de muita coisa, e o que se lembrava pouco fazia sentido. Havia imagens e mais imagens, mas nada que parecesse muito útil. Lembrava-se de deixar o escritório, de tomar um café no HouseWiks, que vira a atendente de cachos loiros que tanto sonhava (e que sonhos!). Depois disso, branco. Páginas e mais páginas de um diário ilegível, para então lhe mostrar sua casa, uma residência pouco modesta para um cidadão americano, de móveis importados e bem confeccionados, quadros de obras famosas (muitos deles réplicas...) e frescuras a parte. Alimentara seu cão, o velho Colt, e deitara no sofá, o típico jogo de sexta-feira lhe aguardando. Ouviu o telefone tocar, e... branco!
Depois de muitas páginas vazias, a próxima lembrança que o empresário tinha era a de acordar num hospital nunca antes visto, sozinho, sem dinheiro, sem coragem, sem vontade. Mas com medo.
A fobia de Oswald era pouca se comparado aos casos que estudara, mas o suficiente para deixar seus joelhos tremerem. A calça jeans azulada segurava o movimento involuntário de suas coxas, e os sapatos de couro negro deslizavam no piso claro. Oswald tinha traços joviais para seus trinta anos, e muito era elogiado por isso. Destacava-se muito pelo rosto fino, pontudo, e pelos olhos claros, de um verde tão artificial quanto rosas num jardim de margaridas. Os fios castanhos embaraçavam em meio aos cabelos negros, uma bagunça que ele pouco tentava controlar. Ouvia comentários inúmeros sobre sua aparência, bons e ruins, mas pouco ligava para isso, ou para ela. Não gostava de espelhos em casa. E, agora, um espelho enorme caía em sua frente, obrigando-o a ver sua imagem refletida, belo, mas temeroso.
Que porra de homem é você, Oswald?!, dizia para si mesmo mentalmente, lutando para acreditar não estar louco. Por que suas pernas estão tremendo assim? E realmente tremiam, e quanto mais Oswald olhava ao redor, mais seu medo aumentava. Seus dentes começaram a bater. Que tremor é esse? Aqui nem está frio! Mas estava, um frio incômodo, mais do que qualquer ar condicionado da época poderia garantir. Não que o empresário sentisse, é claro. Controle suas emoções! Você é um homem ou um rato?!
Sentiu falta de um queijo, mas ignorou.
Não tinha a menor idéia do que fazer. Olhou ao redor, e o corredor parecia infinito, assim como as portas espalhadas por ele. Olhou novamente no espelho: estava pálido, os olhos descontrolados, a boca arroxeada. As narinas entupiram rapidamente, e a respiração se dificultou. Não sabia explicar como, mas Oswald sabia que precisava sair daquele lugar. Precisava.
Andou, e andou, ignorando todas as portas, procurando uma escadaria, um mapa, uma saída, mas nada. Apenas portas, e um corredor que parecia aumentar o suficiente para suas pernas falharem. Correu, e correu, e nada. Ofegou, e então parou, encostando os braços em uma porta qualquer. Leu o número: 246. Nada especial.
Abriu, e entrou.
Um berçário, para crianças recém-nascidas. As memórias apertaram, e Oswald sentiu enjôo, sem sequer saber o motivo.
Observava o cômodo: berços vazios, sujos, encostados a um canto; entulhos de um pedaço de teto que caíra, empilhados em uma das paredes; desenhos infantis pendurados nos ganchos de metal que pendiam das luminárias altas; caixas e caixas de brinquedos velhos e assustadores (a maior parte em pedaços); cheiro de conforto, de vida nova... e de sangue.
E o sangue cheirava mais forte.
Sangue nas paredes, nos destroços, nos brinquedos, nos desenhos. Sangue em tudo.
E Oswald também se viu sangrar. E se desesperou.
Viu cortes, viu golpes em seu corpo, contorceu-se, uma dor mental, muito pior que a dor física. Não sabia explicar aquilo, mas doía, mesmo sem existir. Caiu ao chão, e rolou, e sangrou sem derramar sangue algum. Gemeu de dor, e implorou por ajuda, por misericórdia, por piedade, mas nada disso havia. Chorou.
As lágrimas limparam seus olhos, e se viu limpo, caído ao chão de uma sala de cirurgias. Bisturis, tesouras, alicates, pregos, grampos; os utensílios ficavam cada vez mais estranhos, todos espalhados em uma prateleira metálica enferrujada pelo tempo, desorganizados, fora de padrão. Ao chão, chumaços de cabelos negros e loiros, pêlos pubianos, pedaços de lábios, olhos amassados, unhas... Oswald segurou a boca com as mãos, o sangue circulando veloz em suas veias, e o vômito tão rápido quanto em sua garganta.
Levantou-se, a mão agora cobrindo seu nariz também, pois o cheiro era forte, e incômodo. Cambaleou, procurando pelos machucados das dores anteriores, mas nada havia. Estava limpo, sem um ferimento sequer. O que está acontecendo aqui? Aquilo tudo fora tão real... Aconteceu... não?
Só posso estar ficando louco.
E talvez estivesse, pois era incerto. Mas, uma coisa era certa: tinha medo.
E tremia.
Vasculhou a sala, encontrando cada vez mais peças de corpos velhos, fétidos e apodrecidos. Vomitou ao chão, e cuspiu gotas de sangue junto da sujeira disforme.
Olhando ao redor (após limpar a boca no único tecido limpo que encontrara na prateleira do local), Oswald viu uma maca, onde algo se remexia sob um manto branco e espesso. A figura parecia ter espasmos, o que o empresário conhecia bem (conhecimento rendido por um funcionário problemático que encontrou em uma de suas viagens). Infelizmente, era empresário, e não médico, e não poderia fazer nada.
Infelizmente, era humano, e não perfeito, e sofria de curiosidade descontrolada como todos seus iguais. Hesitando um pouco, com os dedos trêmulos, tocou o pano. Ao se preparar para puxar, escutou risos.
Que merda foi essa?, pensou consigo mesmo. Parou, soltou o pano, girou assustado no mesmo lugar, mas nada. Nem ninguém. Então escutou, atento, e nada ouviu. Só posso estar ficando louco...
Tocou o pano novamente e, mesmo com a impressão de ouvir risos novamente, o puxou.
E caiu.
A figura feminina tinha espasmos enormes agora, e toda suas costas deixavam a maca em seus saltos de dor, urros de falta de ar soltos a cada pressão. Os seios estavam disformes, abertos, e o intestino pendia para fora de um grande corte no abdome, por onde era possível ver os rins e os pulmões (estes que estavam enegrecidos graças a uma provável longa vida de fumo). A língua estava para fora da boca, e os dentes (amarelados e tortos) cerrados sobre ela, que sangrava em abundância. Os olhos viravam sem controle em direções inacreditáveis, e as mãos faziam gestos desconhecidos (muitos que lembravam gestos obscenos).
Oswald poderia se assustar, recuar, tremer, gritar e espernear, mas nada fez. Apenas manteve o olhar fixo naquele rosto zonzo, naqueles lábios sem cor, naqueles olhos tortos, prestes a cair. Os cabelos (na maior parte sujos de poeira e sangue seco) foram um dia claros, mas agora eram tão escuros quanto petróleo. Os traços foram um dia belos, mas agora pareciam os de um paciente em estágio terminal.
E o pior de tudo: Oswald conhecia aquela mulher.
Mãe?
Jurou ter falado isso, mas a voz nunca deixou sua boca, e sua mente sempre o enganou. Lágrimas rebeldes escorreram por seu rosto como uma cachoeira, e a tremedeira voltou rápido. Com joelhos bambos, caiu ao chão, e sentou-se, abraçando as pernas com os braços amolecidos. O que está acontecendo aqui? Não fazia idéia. Por que eu estou vendo isso? Sem resposta. Onde eu estou?
Desespero.
ONDE EU ESTOU?!
Risos.
Oswald também queria rir, mas aquilo parecia tão distante. Então, chorou. As lágrimas estavam muito mais perto.
Onde... eu... estou...
Uma voz.
—Você está onde sempre quis... ou não —disse a voz, tão feminina quanto o que sobrara de sua mãe. Por um momento, Oswald pensou ter visto o cadáver falar, mas viu que nem mesmo existia um cadáver ali. Cada vez mais tinha certeza de estar louco.
Ignorou a voz. Levantou-se do chão, e agora se viu em uma sala escura, onde nada enxergava. Caminhou, esbarrando em caixas e outros objetos irreconhecíveis, e caiu, os braços impedindo a face de alcançar o chão. Imaginou estar em um depósito, e parou, pensando em como faria para sair dali (se isso fosse possível...). De súbito, a luz se acendeu, e ele se viu em meio ao nada, em meio à escuridão.
Mas enxergava.
Agora, não havia mais cheiro de hospital, nem de vida, nem de morte, nem de sangue, nem de nada. Não havia mais cheiro, seja qual fosse. Havia ele, e as sombras, e a escuridão.
E ela.
Sentada, sobre um trono improvisado de ossos cobertos por panos sujos, as pernas cruzadas em um gesto provocante, meia-calça vermelha abaixo da curta saia clara. Os sapatos tinham saltos enormes, e eram tão brancos quanto o restante do uniforme, que tinha rasgos por si todo, mostrando grande parte das curvas sinuosas e simétricas da mulher. No lugar dos olhos, vácuo, coberto por uma tira de esparadrapo velha. A face pálida tinha cortes e cicatrizes miúdas, mas a maior parte destes era coberto por um cabelo longo, cor-de-sangue, onde se encontrava um cap maltratado pelo tempo e pelo descuido.
A enfermeira chamava atenção por si só, isso era óbvio. Mas, mesmo que fosse uma qualquer, o que ela carregava nas mãos chamaria toda a atenção do mesmo modo: uma foice, enorme e pontiaguda, de lâmina curva e brilhante.
Oswald hesitou.
—Quem é você? —perguntou ele, a voz soando trêmula como a de uma criança envergonhada.
Silêncio.
A enfermeira se levantou. A foice cortou o ar, e parou nas costas do ser (que agora parecia estar muito distante de algo humano). Com passos vagarosos e assustadores, ela se deslocou, lentamente, na direção do empresário, que não pôde se mover. Conforme andava, a enfermeira mudava de aspecto, e sombras espectrais surgiam e sumiam por seu corpo.
—Onde eu estou?! —tentou novamente o empresário, em vão. Queria correr, gritar, chorar, mas nada podia fazer. Seu corpo não respondia. Aguardou até que a mulher (ou o que quer que fosse) se aproximasse, e os passos cessaram.
Então risos.
—Do que está rindo? —perguntou. —Qual é a graça aqui?
Acha que eu tenho medo de você?!
A pergunta nunca deixou a mente de Oswald.
Silêncio.
Não tenho?
Ele mesmo se confundia no desespero. E a enfermeira se moveu novamente, mas dessa vez apenas o braço. As mãos largaram a foice, que flutuou no ar, e os dedos se aproximaram da testa de Oswald, que nada pôde fazer.
Sentiu frio, fome e sede, e viu toda sua energia desaparecer. Viu lembranças que sequer sabia que existiam deixarem seu corpo em forma de luzes; viu sua mãe ainda jovem, viu a morte desta, o pranto de seu pai e seu suicídio, viu a fuga de sua irmã, o desprezo de seus médicos, a zombaria de seus colegas de classe, o sofrimento de sua infância. Viu tudo, e sentiu novamente na pele, e era horrível. E tudo aquilo deixava seu corpo, junto de sua energia.
—O... que vai... fazer? —balbuciou, os olhos fraquejando, despencando. Tudo escurecia gradativamente.
O que vai acontecer comigo?
Alguma coisa fez com que o desespero sumisse. Talvez ele tenha deixado o corpo de Oswald, junto de seus outros sentimentos e suas memórias. Talvez.
Despencou.

—Nosso paciente está recobrando os sentidos —disse um dos médicos. Além deste, outros seis doutores cercavam a maca onde o corpo de Oswald permanecia imóvel. Muito tempo depois de sua chegada ao hospital, ele recobrava os sentidos, e abria os olhos lentamente.
—Seja bem vindo de volta —disse um segundo doutor, um sorriso carismático no rosto. —Sabe me dizer o seu nome?
O meu nome?
—Os... Oswald... —murmurou. Não tinha voz, muito menos forças.
—Oswald —repetiu uma médica. —Muito bem. Você sabe o que aconteceu?
Não.
Não sabia.
—Você teve um derrame em sua residência, senhor Oswald —explicou o médico. —Um de seus vizinhos percebeu algo estranho e ligou para a emergência, por sorte. Tivemos tempo de salvar o senhor. Isso já faz alguns dias.
Não se lembrava de nada.
Minha residência? Vizinho?
—Não se lembra de nada disso?
Negou. Mal se lembrava de como respirar.
—Senhor Oswald teve um surto de amnésia como seqüela do derrame cerebral —afirmou um quarto doutor, fazendo anotações em um bloco.
Branco. Páginas vazias, tanto as passadas quanto à frente daquele dia. Oswald tinha apenas seu nome, e mais nada.
Nem mesmo fobia a hospitais.

E, não muito distante dali, uma enfermeira atraente, que se destacaria entre todas as outras, caminhava pelos corredores claros do hospital, marcando o solo com uma lâmina curva de uma imensa foice presa às costas. Seus passos foram miúdos e morosos, em direção ao infinito do corredor, onde ela desapareceu, na luz e na sombra.
"

Até a próxima!

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