domingo, 12 de fevereiro de 2012

Conto - Cela 12

Olá, companheiros!
Esta postagem tem como finalidade agradecer às 5000 visitas alcançadas pelo Blog Elhanor, de acordo com o nosso contador atual (que eu espero que nunca deixe de funcionar!). É com muito prazer que venho agradecer a todos que passam por aqui, mesmo que não comentem, e também para pedir uma interatividade maior entre os leitores. Gostaram do texto, ou não gostaram? Comentem, deixem suas criticas, sugestões para novos artigos e resenhas, dicas de livros, coisas do tipo. Participem do blog, isso ajuda bastante no crescimento do mesmo. De qualquer forma, fico orgulhoso pelas 5000 visitas, e trago como presente de comemoração um conto chamado Cela 12, baseado na Penitenciária Estudual da Filadélfia, um dos lugares mais "assombrados" do mundo. Vamos conferir?

—Vocês sabiam que o próprio Al Capone foi preso aqui?

A pergunta trouxe consigo um silêncio devastador, carregada de um temor sobrenatural e peculiar. Os garotos, gélidos na expressão e nas emoções, riram da expressão aterrorizava de suas companheiras. As garotas, por sua vez, praguejaram ante o questionamento desnecessário, como se buscassem discordar daquelas palavras. Mas Oliver não mentia: a Penitenciária Estadual da Filadélfia realmente fora o abrigo de um dos criminosos mais famosos das histórias antigas.

—Por que você não cala a boca, Oliver?

Gloria Lizbeth era a namorada de Oliver, uma americana mestiça, com traços e sotaque herdado da família italiana. Convivera durante muito tempo com os avós, mestres das massas de seu país de origem, mas apoiara os pais na decisão de mudar-se para os Estados Unidos, na casa de sua mãe, esta sim uma americana de sangue puro. Parecia amedrontava, sem fazer questão de disfarçar os olhos trêmulos, circundando a paisagem enegrecida ao seu redor. Seus fios castanhos enrolavam na altura dos ombros, deslizando com suavidade ao lado do tilintar de seus brincos prateados, um presente que recebera algum tempo atrás da família que deixara em Roma.

—Acho que a sua namorada está com medo, irmãozinho —zombava Lenn.

—Ela é uma medrosa!

—Calem-se os dois!

Diferente de Gloria, Ashley era valente, não aparentava se importar com a morbidez das paredes que os aprisionavam durante aquela noite. Talvez a coragem fora uma lembrança de seu sobrenome, Martine, a única prova naquela garota de que tinha uma parcela de sangue francês. Convivendo com os tios na Pensilvânia, logo começou os estudos e abandonou o idioma primário para dar lugar ao inglês da Filadélfia. Era a namorada de Lenn, que sempre fora fanático por loiras. Os olhos castanhos de Ashley, entretanto, impossibilitavam que o teatro de seus cachos dourados fosse acreditado por muito tempo.

—Não tentem colocar medo na Gloria, entenderam? —Era uma ordem.

—Sim, senhora! —riu Lenn, e suspendeu a lanterna para que continuassem o caminho.

Naquela noite, os gêmeos Dominick completavam dezenove anos de idade e, como presente, prepararam uma surpresa especial para suas companheiras. Acostumadas às loucuras dos ruivos, ambas as garotas esperaram pelo pior, mas ele não veio. Não foram levadas a um teatro pornô, nem mesmo banhadas por ovos com bacon. Era um passeio, inicialmente uma pequena volta de carro, mas que logo mudara o curso para uma das localidades mais apavorantes do Condado de Filadélfia: a Penitenciária Estadual.

Os irmãos sempre foram arteiros, caçadores de contatos importantes que poderiam algum dia lhes possibilitar aventuras inacreditáveis. Naquele dia, fizeram uso de uma de suas maiores fichas, o chefe da vigia da prisão, que os devia um favor da época do colegial. Com sua ajuda, conseguiram o direito de passar uma noite naquela prisão, que fora fechada em 1970, quando também transformou-se num museu de visitação pública. Obviamente, um local com tantas mentes criminosas não deixaria de ganhar as suas histórias macabras, e os Dominick, céticos ao limite daquela palavra, ansiavam por uma noitada divertida e silenciosa naquelas paredes sombrias.

Enquanto caminhavam pelos corredores da entrada, ainda avistando a porta cerrada pelo chefe da vigia local, os quatro estudantes admiravam a construção. Era velha, como uma penitenciária criada em 1829 poderia ser, mas mantinha-se limpa graças ao trabalho da equipe encarregada de preparar as exibições. Nas frestas que encontravam nas paredes dos corredores, Lenn e Oliver enxergavam torres de vigia, onde sentinelas se postavam anos atrás para silenciar qualquer prisioneiro que tentasse se afugentar. À frente, além do cone dourado projetado pelas lanternas dos irmãos, era impossível distinguir qualquer coisa além da escuridão.

—Essa foi a primeira penitenciária do mundo a ter uma solitária —comentou Oliver, estudando as paredes frias com a ponta dos dedos. —Dizem que os presos ficavam sozinhos durante as refeições e os exercícios, e isso os enlouquecia.

—Talvez seja por isso que a fecharam, então —rebateu o irmão, que acompanhava Ashley e sua admiração. —Pelo que eu li na internet, esse lugar funcionou apenas cinquenta e sete anos como prisão.

—Não me levem a mal, mas não poderiam ter escolhido um cinema? —perguntou Gloria, que tremia das pernas ao último fio de cabelo. Gloria era do tipo que não assiste um vídeo do You Tube por ter medo do final, que pode carregar um grito estridente de uma brincadeira de mau gosto. —Sério, caras, esse lugar não é nada legal.

—Ah, Gloria, vai deixar que eles fiquem rindo de você? —Ashley tomou a lanterna de Lenn. —Vamos mostrar a eles que as mulheres também são corajosas!

—Não acho que seja uma boa ideia e —

Ashley puxou sua amiga pelos braços, deixando os irmãos e apenas uma das lanternas para trás.

—Venha, vamos!

E assim a formação se alterou, e o grupo continuou na passagem umedecida pelo frio invernoso.

Alcançaram o primeiro lance de celas rapidamente. Eram pequenas aberturas nas paredes, cômodos não maiores do que um banheiro de motel, suficiente para uma cama de solteiro estirada de um lado ao outro. Ali, presos eram empilhados para que pagassem por seus crimes, grunhiam suas lamúrias em arrependimento, gargalhavam por suas insanidades. Assassinos, estupradores, sequestradores, criminosos com penas incontáveis. Ao passar na frente de cada uma daquelas portinholas, o quarteto podia sentir o frio gélido de cada uma das mentes que foram destruídas por aquele confinamento punitivo, o que arrepiava os braços e as pernas numa sensação assustadora.

—Esse lugar é sinistro! —Oliver. —Não havia comemoração melhor do que essa, tenho certeza! Vamos, temos que conhecer as solitárias!

Enquanto os gêmeos corriam à frente de suas companheiras, Gloria se inquietava.

—Que tipo de loucos são eles?

—Do tipo que gosta de contar histórias dez vezes maiores do que as verdadeiras.

—Dez vezes maior? A sua história é tão pequena assim, Ashley?

A garota sorriu com malícia.

—Quem dera!

Os passos desordenados dos irmãos cessaram. Munidos de apenas uma lanterna, encontraram-se num cruzamento coberto pelo breu, onde o cone de luz faiscante pouco adianta das opções demonstradas pela bifurcação à frente de seus olhos. Oliver arriscou alguns passos, mas a escuridão o fez hesitar. Não era medo de escuro, mas alguma coisa estranha surgia daquela noite artificial, um cheiro peculiar, uma sensação umedecida.

Um tilintar ritmado e choroso.

—O que é isso?

—Vai saber! Até você está ficando com medo, não é?

—Deixa de ser bobo! Mas eu escutei alguma coisa estranha. Não está escutando?

—Nadinha.

Lenn não mentia, seus ouvidos não lhe mostravam nada. Mas Oliver não estava louco. Apoiou-se numa das paredes, encostou os braços nos tijolos maldispostos da construção, concentrou-se. Estava lá, um ruído miúdo e distante, como uma goteira de teto. O som, entretanto, fazia parecer que aquilo que tocava o solo era mais pesado do que a água.

—Vem comigo.

Seguiram alguns passos, e só então deram falta das garotas, provavelmente temerosas logo atrás deles. Recuaram alguns passos, mas não havia sinal de nenhuma delas. Chamaram por Gloria e Ashley, sem resposta. Retornaram até a bifurcação, mas o caminho parecia alterado. Ao invés de duas trilhas, havia quatro delas, o que formava uma espécie de pentagrama.

—Onde elas estão?

—É você quem está com medo, Lenn! Elas devem ter se escondido! Estávamos assustando-as com essas histórias, talvez elas queiram dar o troco.

—O que acha de pegarmos elas?

—Eu trouxe umas coisas legais aqui comigo.

Oliver tirou dos bolsos cigarros rústicos e maltrapilhos, amassados pelo movimento de suas pernas. No outro lado do jeans, uma pequena sacola plástica armazenava uma boa quantidade de cocaína.

—Cara, elas vão morrer com isso.

—É só uma brincadeira, irmão! Depois que as encontrarmos, vamos brindar nossas descobertas noturnas com muitas drogas e muito sexo.

Bateram as mãos em cumprimento, e então seguiram por um caminho escolhido ao acaso. Lenn acendeu um dos cigarros, dividiu-o com seu irmão. O odor de maconha impregnou as paredes.

Gloria estava agarrada ao braço de Ashley, e mesmo ela parecia trêmula. Longe dos irmãos, a senhorita Martine era uma patricinha de primeira categoria, indisposta e sedentária, preocupada apenas com sua aparência e com seus dotes avantajados pela medicina.

—Corajosa você, não? —reclamou Gloria. —O que faremos agora? Aqueles dois se esconderam para nos assustar, tenho certeza!

—São dois viadinhos, isso sim! Quero ver quando aparecerem com as drogas para nos oferecer. Vou fazer jogo duro hoje.

—Drogas?

—Eles não te contaram?

—Não!

—Então deve ser surpresa. Esqueça o que eu falei.

Gloria preparou um suspiro de indignação, mas sua voz falhou, assim como seus pulmões. A respiração travou em sua garganta, encheu-a com a vontade de tossir ou vomitar, ou ambos. Ashley, por sua vez, paralisou, a lanterna focada no caminho à frente, que parecia um corredor interminável.

Eram passos.

—São eles!

Os passos pareciam pertencer a apenas uma pessoa. Eram lentos, por vezes seguidos do ruído de metal raspando nas paredes. Algo estava errado.

—Oliver! Lenn!

Sem resposta.

—Eles estão tentando nos assustar, malditos. Vamos pegá-los, Gloria!

—Mas —

Antes que ela terminasse sua frase, Ashley disparou a correr, alvejando o desconhecido à sua frente. A luz da lanterna avançou junto dela, e logo Gloria se embrenhou numa escuridão maligna, que a fez se lembrar de todos os pesadelos que um dia tivera em sua infância. Os passos continuaram, cada vez mais altos, vinham de trás de si. Ela hesitou, virou-se rapidamente, não havia ninguém. Voltou a seu caminho, o cone de luz já havia desaparecido.

—Ashley!

Em vão. Estava sozinha, no escuro de uma penitenciária assombrosa.

Gloria tremia. Tentou tirar o celular do bolso de sua calça, o pavor dificultou o que era simples, derrubou o aparelho no chão. Estava prestes a chorar, já respirando com dificuldade enquanto caçava a bateria de seu smartphone, tateando o solo imundo que se estendia num labirinto de celas.

Encontrou algo diferente com sua mão. Não era sua bateria, também não era o chão. Era áspero, um bico fino e estreito, como um sapato social, talvez um coturno militar. Um pé, sem sombra de dúvida. Havia alguém em sua frente, mas o escuro a impediu de distinguir um rosto.

—Ashley?

Sabia que não era Ashley, mas tinha de arriscar. Sabia que não eram Lenn, muito menos Oliver.

Gritou.

—É a Gloria!

Oliver correu numa direção aleatória, a maresia já lerdeava seus movimentos. Trombou com uma parede qualquer num primeiro instante, tropeçou nas próprias pernas enquanto tentava se esquivar das criaturas rosadas que desfilavam à sua frente, numa marcha fumegante e colorida. Deixou para trás seu irmão, que terminava o último trago daquele cigarro infernal, extinguindo a chama que possibilitava as alucinações do narcótico.

—Que Gloria nada, irmão! —disse Lenn, mas não havia ninguém para escutá-lo.

E nenhuma lanterna.

—Filho de uma puta, me largou no escuro.

Riu alto.

—Que merda, agora eu vou ser estuprado pelos padres da noite eterna! Oh, meu Deus, poderei me salvar desta punição maligna?

Gargalhou, e ouviu enquanto seu eco se alastrava pela infinidade de corredores. Todas as celas estavam abertas, todas despejavam seu próprio riso de volta para ele, como o efeito de um elástico de vozes. Ao longe, entretanto, a risada que o acompanhou parecia diferente.

—Quem está aí? —tentou ele, sem resposta. —Oliver?

Espalmou na altura dos olhos, livrando sua visão incapaz da fumaça de seu vício.

—Oliver!

Apoiou-se numa das paredes, sua única forma de se equilibrar. Cambaleou com dificuldade, tonteando a cada passo, sentindo o chão abaixo de si flutuar de maneira surreal. Algumas paredes pareciam curvilíneas, o teto era um céu laranja e lilás. A gargalhada anterior ainda estava lá, ecoando, sombria e incessante.

—Pode parar de rir, Oliver, já me caguei todo com essa sua brincadeira!

Zombava, pois o ceticismo falava mais alto, mesmo durante os surtos garantidos pelo uso das ervas. Livrou-se do apoio dos braços, correu sem que visse o caminho, caiu como uma criança que ainda não aprendera a andar. Levantou-se, o ombro inchava, buscou o apoio da parede outra vez.

—Mano, eu estou muito louco, na boa. Olha só essas árvores!

Pois em sua mente, havia árvores, longas e belas árvores de cores e formas indescritíveis. A brisa da natureza soprava seus galhos, os frutos sorriam numa melodia doentia.

Mas a gargalhada não parava.

Trocou de braço, apoiando-se na parede contrária, não encontrou nada para tocar. Perdeu o equilíbrio e caiu para dentro de uma cela, sentindo-se afobado na claustrofobia que os presos tinham de suportar durante toda a pena. Lenn estava numa solitária, ainda que não pudesse enxergar a distância miserável entre uma parede e outra.

Estava numa solitária, mas havia alguém além dele.

—Que lugar é esse, hein?

Tateou o solo até encontrar a parede, se levantou, como um bêbado que mal conseguia engatinhar. Abraçou a porta metálica, chamou-a de mãe, sentiu o gosto sanguinolento do ferro ao beijar a maçaneta se lembrando dos seios de sua namorada. Afastou-se, brandindo o celular como uma arma, deixou que o visor iluminasse, ainda que levemente, a placa que o separava da liberdade.

A portava estava trancada, como se nunca antes estivesse aberta.

Na altura de seus olhos, Lenn encontrou os dizeres: Cela 12.

—Que doideira! Por onde eu entrei?

Ainda usava do celular quando se virou, iluminando aquilo que o observava há algum tempo. A luz era fraca, mas fez com que o garoto enxergasse perfeitamente seu companheiro de cela, seu parceiro de solitária.

A ideia parecia assustadora, mas Lenn implorou ao Deus que desacreditava para que pudesse estar sozinho naquele lugar. Os olhos arregalados mostravam-lhe uma pessoa macabra, fitando-o com olhos tão afiados quanto uma lâmina. Não era Oliver, muito menos Gloria ou Ashley.

Lenn tentou gritar, mas o pavor desmontou todo seu corpo, largando-o no solo como uma marionete de cordas partidas.

Então, gargalhadas.

Ashley parou de correr, exausta. Deixou-se cair à frente de uma cela qualquer, respirou com dificuldade, limpou o suor que lhe cobria o rosto. A leve ardência salgada incomodou os olhos, reprimida por sua fúria interna para com seu namorado. Em sua mente, pensava nos castigos que poderia lhe garantir por semanas para descontar aquelas brincadeiras estranhas.

Os devaneios dispersaram quando um estranho barulho estrondou nas proximidades, como se algo metálico caísse no chão, tilintando até que o último baque emudecesse.

—Encontrei você, Lenn!

Levantou-se, ainda tonta pelo disparo de maratonista, mas logo detectou a procedência dos ruídos. Mirou a lanterna na direção mostrada por seus ouvidos, encontrou uma cela como outra qualquer, ainda que um pouco menor. Apoiando um dos braços no contorno da porta, iluminou o interior da cela, estudando cada teia de aranha espalhada nos cantos.

Ao fundo, algo se movia, escondido por tecidos surrados e malcheirosos.

—Ainda quer se esconder? O que espera que eu faça, corra igual uma garotinha? Finja que não estou te vendo atrás das cortinas? Pode parar com essa brincadeira, Lenn, você já passou da idade de se fazer de bobo.

Não houve resposta. Aquela coisa continuou a se mover, coberta por um escudo de panos velhos. Ashley estava temerosa, mas suspirou, mantendo o teatro de sua valentia.

—Tudo bem, Lenn, é você quem sabe. Vai perguntar quem é o papai também ou eu posso puxar os panos sem enrolar?

Próxima aos tecidos sombrios daquela cela, Ashley sentiu o coração gelar. Estendeu os braços na direção daquele esconderijo infantil, hesitando a cada movimento que os panos demonstravam. Enrolou a mão numa peça das cobertas e, de súbito, puxou-as para trás, deixando que caíssem do outro lado da cela.

Não havia ninguém.

—Merda!

Agora ela estava com medo. Alguma coisa estranha inundava sua mente, tornando seus pensamentos caóticos e perturbados. Tinha medo, mas não era medo o responsável por aquela sensação. Apesar de se encontrar numa cela vazia, Ashley não se sentia sozinha, e este era o pior dos males.

Atrás de si, as cobertas continuavam a se debater, como se vivas.

—Que coisa é essa agora, um brinquedo? —Buscava explicações lógicas, ainda que não as encontrasse. —É isso, não é? Você colocou um brinquedo aqui, deixou que ele vibrasse para me assustar. Você é um tremendo filho da puta, Lenn. Vai ficar um mês sem sexo depois dessa!

Ela poderia correr, poderia fugir de seu temor, mas não o fez. Ao invés disso, agarrou as cobertas que se moviam na imundice daquele local e as desenrolou, revelando o conteúdo de seu interior.

Ashley tombou para trás, parte pelo odor intragável, parte pela imagem assombrosa que se revelou aos seus olhos.

Ali, dentro das cobertas, havia uma coleção de corações pulsantes.

Ashley berrou seu desespero, o teatro da coragem feminina fugiu de seu controle. Disparou numa corrida por sua vida, sem sequer refletir sobre o caminho que seguia em seu pavor.

Oliver estava tonto. A droga que tinha em mãos se perdera há algum tempo, antes mesmo de descer aquele lance de degraus espiralados. Não lembrava do guarda que o auxiliou na invasão daquela propriedade mencionar escadarias, mas não estranhou. Era aquele o caminho que o levaria até Gloria, ali a escutava gritar.

E os gritos não paravam instante algum.

—Gloria! —chamava ele. —Gloria, eu estou chegando!

Mas não sabia se estava, pois a lanterna não era capaz de mostrar grande coisa naquele breu fantasista da penitenciária. Oliver saltou do último degrau como uma criança, rolou ao perder o equilíbrio, o joelho ralou abaixo do jeans. Levantou-se como um bêbado, sentia o sangue escorrer quente na altura do tornozelo. A lanterna rolara alguns metros, mancou até que a alcançasse novamente.

Quando reergueu o cone de sua lâmpada, Oliver nauseou pelo choque.

Estava num porão antepassado, tomado por aranhas e ratazanas, além de outras criaturas que seus olhos não conseguiam acompanhar. Primeiramente notava o usual, macas de alumínio, beliches de alojamentos penitenciários, instrumentos de cozinhas, entre outros. Mas logo a visão mudou. Havia caixões, apetrechos de tortura, máscaras com espinhos e engrenagens, camas de pregos e máquinas de distensão. Parecia uma câmara de punições, algo surreal para uma prisão. O que eles faziam para os criminosos naquele lugar?

—Puta merda! —foi o que conseguiu exclamar.

Enquanto seguia iluminando aquele cômodo, Oliver avistava mais e mais aparelhos; algemas de agulhas, seringas, machadinhas, serrotes, tudo impregnado por sangue seco e fezes de bichos.

Alguns passos mais tarde, entretanto, a paisagem pareceu mudar. As paredes ganharam pinturas sem sentido, frases de idiomas desconexos, figuras distantes da noção humana. Havia homens de chifres e quatro pernas, como cavalos, mulheres com três seios e três olhos, crianças com pele rochosa e disforme. Garotas tinham tranças de ossos, bebês vomitavam símbolos satânicos. Tudo cercado por estrelas, constelações, satélites e luas, planetas distintos, e fogo. O fogo rodeava todas as gravuras, acompanhado de pentagramas e cruzes invertidas, como se queimasse aquelas escrituras num pergaminho antigo.

Oliver tentou ignorar o medo, mas não conseguiu. Era cético, mas não acreditar não o livrava de não sentir, e sentia. Uma presença, uma respiração, um ser acompanhando suas desventuras naquele lugar macabro. Ouviu passos numa direção qualquer, seguiu com os olhos, nada além de vultos. Aproximou-se com cautela de espião, não encontrou coisa diferente de livros e papiros, anotações antigas, informações de cultos e divindades esquecidas. Aquele era o palco de um teatro religioso e insano, de fanáticos por uma crença perversa, domadores do filho do mal ou o quê quer que fosse.

Num dos papéis, Oliver encontrou palavras que podia diferenciar. Era inglês, ainda que de épocas antigas, e ele conseguiu distinguir o garrancho de um doutor do passado daquela penitenciária. Leu em sua mente:

“Ele é o risonho, o ser que nos assombra. Mas está tudo bem, temos um acordo. Ficamos com nossa sanidade e nossos corações, contanto que entreguemos o restante. Um sacrifício na lua cheia, é o suficiente. O risonho sempre está lá, não nos faz mal, contanto que não esqueçamos de transferir um azarado para sua área. Chamam-no de Palhaço da Prisão, mas não acredito que ele seja parte de uma atração circense. Que diferença faz, afinal? Há algo naquela Cela 12, algo que se alimenta de nós. Nos ofereceu vidas graciosas. Em troca, anseia por vidas que já foram perdidas.”

Afastou-se daquele papiro com um susto, tropeçou em algo macio, eram músculos. Sentiu algo incomodar suas costas, virou-se apenas para encontrar uma dúzia de olhos inertes, esmagados pelo peso de seu corpo, infectando ainda mais aquele solo infernal. Gritava, mas a garganta parecia rasgar em seu interior, a ânsia descontrolada o fez vomitar algo que se debatia. Chutou aquela aberração para longe, correu com os olhos vendados pelo terror, não havia mais escada. Olhou ao redor, não encontrou aparelho algum, nem figuras ou livros, nada. Estava outra vez no corredor de celas, ouvindo o grito de sua namorada, de Ashley, mas não o de seu irmão.

—Ashley!

Gloria chorava mais do que nunca chorara na vida. Ao longe, a silhueta de Ashley lhe trouxera esperanças, avançou sem pensar duas vezes. A garota também a notou, correu até ela, trombou com alguém tão desesperado quanto ambas as garotas.

Era Oliver.

—Oliver! —exclamou Ashley.

—Vocês estão bem? —perguntou ele.

—Tirando as brincadeiras que vocês têm feito e —

—Escute bem, Ashley, não é brincadeira! Nós temos que sair daqui, isso está ficando perigoso!

Gloria saltou nos braços de Oliver, agarrou-o como uma criança após despertar de um pesadelo.

—Eu achei que ia morrer!

—Não estamos livres dessa opção ainda, amor. Temos que achar Lenn!

—Ele não estava com você?

—Estava, mas eu corri na direção dos gritos de Gloria e —

—Você o abandonou?

—Eu não o abandonei! Eu tinha que salvar Gloria, ela estava assustada!

—Que merda de irmão é você, Oliver?! Você abandonou Lenn! Como vamos encontrá-lo agora?

Oliver pensou.

—Eu vou atrás deles. Vocês vão até a porta de entrada, nos esperem lá. —Esperou até que ambas corressem, mas elas estavam paralisadas pelo terror. —Vão, agora!

Só então Ashley e Gloria obedeceram. Ashley parecia contrariada, não desejava abandonar seu namorado nas mãos do irmão abobalhado que prometera encontrá-lo, mas era sua única opção. Além do mais, nada no mundo faria com que ela voltasse para aqueles corredores.

Oliver escutou os gritos de Lenn.

—Lenn! Lenn!

Seguia as lamúrias de seu irmão, mas os corredores pareciam um labirinto na escuridão. A lanterna falhou, continuou a correr como um cego, apoiando nas paredes para trilhar um caminho confuso por seu desespero. Gritava o nome do irmão, tentava definir a origem de seus berros, de seus pedidos de socorro.

Em minutos, encontrou o lugar de onde se originavam os gritos apavorados do gêmeo Dominick. Uma cela fechada, trancada como a solitária mais perversa daquela penitenciária, impossível de ser aberta por qualquer um dos dois lados. Não havia fechaduras, trincos ou maçaneta, era apenas uma chapa de metal coberta por ferrugem, ostentando uma plaqueta miúda com palavras que ruíram as esperanças de Oliver.

Cela 12.

Socou a porta de metal.

—Seu filho da puta, devolva o meu irmão!

Mas já era tarde. Encostado na chapa que o separava de seu irmão gêmeo, Oliver escutou os gritos da dor de Lenn, até o momento em que o silêncio voltou a reinar. Algo acontecera para Lenn naquela cela, algo maligno e irreal. Oliver era cético, mas naquele momento, acreditava mais do que nunca numa entidade superior.

Ainda mais quando escutou uma gargalhada grotesca que gelou todo seu corpo.

Ashley e Gloria esperavam próximas à porta de entrada quando viram Oliver correr em sua direção.

—É ele! —Gloria.

—Onde está Lenn? —perguntou Ashley.

Oliver não respondeu.

—Precisamos sair daqui —disse ele, passando por ambas e partindo na direção da porta de entrada.

—O que aconteceu com Lenn?!

—Eu não sei, droga, eu não sei! Procuraremos por ele mais tarde, quando amanhecer! Agora, precisamos sair daqui, entendeu?! Ou você prefere morrer?!

Ashley esmurrou as costas de Oliver, chorando pela raiva, não pelo medo.

—Você o abandonou, Oliver! Você é um covarde filho da mãe!

Oliver não a escutava. Esmurrava a porta, empurrava com seu corpo, em vão. Lembrara-se do acordo do vigia: a porta ficaria trancada durante toda a noite. Ao amanhecer, ele estaria lá, no horário costumeiro, para destrancá-la.

—Estamos presos —disse Oliver.

—Aproveite para encontrar Lenn! —chorava Ashley, desolada por sua perda.

—O Lenn está morto! —gritou o gêmeo. —Ele morreu, entendeu?! Não vamos encontrá-lo agora, ele está morto!

Uma gargalhada ecoou entre aquelas paredes.

—Vamos sair daqui, Oliver, por favor! —implorava Gloria.

—Sair?

A voz vinha do corredor. Masculina, similar à de Oliver, coberta por uma insanidade aterrorizante. Seguida de perto por uma gargalhada macabra e conturbada.

—Irmão, irmão, você pretendia mesmo me abandonar, não é?

Lenn surgiu no corredor. O peito estava aberto, deixando que as entranhas tombassem junto de uma cachoeira rubra enquanto ele caminhava. Não havia sinal de coração, assim como dos olhos, deixando seu rosto, geralmente belo e pálido, como uma monstruosidade sem tamanho. Os lábios estavam inchados, mutilados como um sorriso eterno, esticados por pregos enferrujados e navalhas luminosas. O nariz esmagado parecia uma esfera escarlate, jorrando sangue como um gêiser.

—O que você fez com o Lenn?! —chorou Oliver, caindo de joelhos à frente do irmão. Ashley e Gloria gritavam, tentavam escapar, abrir a porta cerrada atrás de si. Ninguém os escutaria. Ninguém viria salvá-los.

—Você me abandonou, irmãozinho. Pretendia fugir sem mim.

—Lenn, eu —

Lenn esmurrou Oliver, deixando que seu rosto ensanguentado focasse as lacunas que um dia foram seus olhos. Ali, Oliver encontrou um demônio, um ser inacreditável, indizível, irreal.

Sentiu os cabelos rasgarem sua cabeça quando aquela criatura o arrastou.

—A saída é para o outro lado, irmãozinho. Nobres damas, por gentileza, aguardem até que amanheça. Serão retiradas com vida daqui, caso se comportem, é claro. Loucas, talvez, mas com vida. Afinal, quem não enlouqueceria ao presenciar uma briga de irmãos drogados que levou à morte de ambos, não é?

Lenn chutou o estômago de Oliver outra vez. Algo dentro do gêmeo começou a vazar.

—E você, irmãozinho, vai sair daqui. Vai conhecer uma coisa fabulosa! Será a melhor experiência de toda sua vida! Prepare-se, querido Oliver, pois seu ceticismo será apenas história quando conhecer a Cela 12...

Ao fim daquelas palavras, Lenn desapareceu na escuridão, levando consigo Oliver. Deixou para trás Ashley e Gloria, chorosas e insanas, perdidas em acontecimentos que mais pareciam falsidades, mentiras de seus pensamentos conturbados.

Deixou para trás, junto daquelas crianças de cérebro fraco, uma gargalhada que jamais seria esquecida por nenhuma delas.


Até a próxima!

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