quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Conto - Senhora dos Espectros

Olá, companheiros.
Dobradinha de contos esta noite, e por sinal temos outra história ambientada em Elhanor! Senhora dos Espectros conquistou uma vaga na antologia Moedas para o Barqueiro 3, da Editora Andross, mas fiquei de fora outra vez. O texto está aqui, de qualquer modo, assim como está presente na coletânea 'No Ferro, No Fogo, No Fim', disponível à venda no site da PerSe (o link pode ser encontrado na aba Publicações, à esquerda <). Sem mais demoras, confiram o conto, espero que gostem.




—Esperei tanto por esse momento —disse o jovem. Seus olhos, banhados pela felicidade que inflamava sua vida, eram serenos, castanhos e sinceros. Os lábios pouco se moviam, e o rosto de guerreiro, naquele momento, era o de esposo, de amado, de apaixonado. A espada, presa ao cinto numa bainha perolada, pouco serviria após aquele instante. Sua vida mudaria. Adeus às batalhas, adeus às guerras, ao sangue e à morte. Seria um recomeço, um novo início, diferente de tudo o que imaginou para si.
Puxou as mãos da linda donzela que o admirava, e as beijou.
Lhénes tinha olhos divinos, azulados como o mar mais puro de Elhanor, e um rosto de anjo, claro e macio, cabelos de um louro tão claro que quase se confundia em sua pele alva. As orelhas miúdas se escondiam tímidas, sob os cachos que contornavam seus fios, desenhando nos ares com fios dourados e finíssimos. Ali, naquele momento, recebera a declaração de Hadril, seu amado, um guerreiro valoroso que abandonou o campo de batalha para se unir àquela por quem se apaixonou. Ali, aquele homem que nunca tombou na guerra, ajoelhou-se por vontade própria e puxou suas mãos, presenteando-a com um anel do mais puro ouro e com um pedido de casamento, e ela não poderia recusar. Fora seu sonho, mas não sua sina.
Lhénes tinha uma história diferente para esconder do mundo.
—Eu estou muito feliz, Hadril —disse a jovem, as bochechas coradas, tomadas por uma felicidade incontrolável. Seu vestido verde-água sacudia, carregado pela brisa, e vez ou outra revelava sua marca de nascença, seu fado, sua maldição, um par de asas negras traçadas em sua coxa, miúdas, eternas, sombrias. —É claramente o dia mais feliz de minha vida.
—Teremos uma vida de grandeza, milady —ergueu-se o cavaleiro, a armadura prateada cintilando pelo sol poente. —Bravura e ingenuidade, força e sabedoria, nada poderá nos abater. Viveremos juntos, para sempre.
—Hadril... —Lhénes murmurou, talvez para si mesma, e sua tristeza emocionou o cavaleiro, que se postou ao seu lado.
—Estás triste, minha dama? Imaginei que meu pedido seria motivo de felicidade. Se não é o que desejas, não me aceite, milady. Não sou o bruto que aparento, e sei entender as vontades de uma senhora.
—Não, não pense isso, por favor! É que... —Sua mão acariciava a pele, a marca. —Eu tenho uma praga. Sou amaldiçoada.
O pôr-do-sol se findou, e o céu, ainda manhoso, começava a se escurecer. As primeiras sombras surgiram, e trouxeram junto delas os mortos, nascidos das rochas da montanha, do vento e do ar, carregados pela maldade e pelo ódio, sem olhos, sem bocas, sem corações. Eram muitos, e eram tolos, munidos de machados e lâminas envenenadas, escudos partidos e elmos de espinhos imundos. Esqueletos, homens de carne pútrida, fantasmas e carniçais, todos sedentos por sangue e pela infelicidade daquela jovem.
Lhénes soluçou, o choro encharcando seu rosto puro. Enganara a morte muitas vezes, mas sabia que, naquele dia, não seria capaz.
—Proteja-se, milady —mandou Hadril, mas ela não se protegeu. Não era o seu sangue desejado pelos mortos. Era o dele.
Hadril lutou feito o herói que era, a lâmina deixando a bainha feito um trovão, partindo ossos e carne podre, distribuindo morte aos mortos, o preço pelo pecado e coexistir com a vida correta. Um tombava, dez surgiam, e logo um pequeno exército cercava o pobre guerreiro, o rosto coberto pelo suor do esforço, os olhos tristonhos pela perda que logo viria.
—Fuja, Lhénes! —choramingou o valente combatente, golpeando com fúria e desespero. —Eu volto para te encontrar! Nunca vou te abandonar, milady! Vamos ficar juntos por toda a eternidade!
Lhénes não fugiu.
Recorreu à magia. As luzes e chamas dançaram em suas mãos, e ela castigou os mortos, fustigando-os com lampejos de cores sem fim, destruindo corpos sem vida, sem mente, sem vontade. Açoitou dezenas, centenas, mas o flagelo se reerguia, numa tormenta de guerreiros do inferno, banhados pelos pecados de seus passados inglórios, de suas vidas tenebrosas e malignas. Fantasmas gemiam, zumbis e esqueletos atacavam incessantes, e Lhénes gritava, apavorada, vergastando o exército com todo seu poderio encantado, mas nenhum deles se virava contra ele, ignorando-a, como o mundo todo o fazia.
Hadril, ao centro da turba fétida, tombou, e sua armadura não seria o suficiente. Dúzias saltaram sobre ele, monstros famintos e cruéis, e Lhénes nada pôde fazer. Ouviu os gritos, abafados pela selvageria dos mortos, e seus olhos explodiram em lágrimas, e logo o azul límpido se perdeu, junto de sua pureza. As chamas que a circundavam cessaram, a magia desapareceu, e a marca de asas em sua pele irradiou, negra, terrível, e o céu escureceu sem avisar, soprando as nuvens claras para longe, de súbito.
Gritou. Junto de seu grito, milhares, ou milhões de almas gritaram, um despejo de morte e ira, uma cachoeira de lágrimas de dor e sofrimento, um turbilhão de sentimentos complexos e disformes, unidos na voz de uma donzela e seus incontáveis súditos. O azul de seu olhar não mais existia, e lá estava o violeta, o negro, as trevas e os vultos, a morte e a morte, e só. Levantou seus braços, e sua pele clareava ainda mais, num pálido tenebroso, quase transparente, e sua ordem nunca deixou seus lábios, mas todos a obedeceram ainda assim, curvando-se perante a nova governanta, a nova rainha. O vestido claro desapareceu, e seu corpo vampírico foi coberto por um manto negro, de um tecido sombrio onde almas se perdiam, deslizando pela vestimenta num castigo infinito.
—Parem —murmurou, e sua voz se fez terrível, e todos os mortos se afastaram. O caminho, um corredor entre os servos curvados, guiou até o cavaleiro, seu antigo amado, que sua mente a forçava a esquecer. A armadura, banhada por sangue valente, era marcada por pancadas e mordidas, presas que amassaram o metal, penetraram na carne. Braços e pernas arrancados pela fome estava atirados ao solo, disformes, e a cabeça jovem de um guerreiro repleto de sonhos rolava pelo chão montanhoso.
—NÃO! —bramiu ela, e o exército de cadáveres ao seu redor se desintegrou por sua vontade, deixando apenas poeira pútrida, carregada pelo vento para as planícies abaixo. —Não. A morte não pode nos separar. —Seus olhos cintilaram, tomados por chamas escuras e ferventes. A mão albina tocou o corpo do guerreiro, que tremulou. —Vamos ficar juntos por toda a eternidade. Viveremos juntos, para sempre. Se não há vida, não há morte. VOLTE PARA MIM!
E Hadril obedeceu, sem hesitar, erguendo-se feito o morto que era, os olhos perdidos, vazios, a mente aberta, sem vontades, o corpo obediente, como uma marionete. As pernas voltaram, os braços se uniram, e o corpo completo buscou a cabeça, prendendo-a em seu lugar outra vez, por mais que a pele não se restaurasse dos cortes e das marcas de sua morte.
—Às suas ordens, milady —disse o cavaleiro das sombras, curvando-se sobre o joelhou estourado.
Lhénes derrubou a última de suas lágrimas. Viu, mas não com seus olhos, as mortes de todos, daqueles que se perderam há milênios, daqueles que morreriam nos dias seguintes, daqueles que acreditavam na imortalidade. Via a morte de Hadril, e sentia seu desespero, seu pânico, sua vida se esvaindo de seu corpo valente. Não mais chorou.
Após aquele dia, não seria mais a mesma. Após aquele dia, não existia mais fraqueza, dor ou sofrimento. Não existia mais Lhénes, a maga, a frágil, delicada e estudiosa donzela, orgulho de seu povo e de seus pais.
Ali, nas montanhas da Ilha de Wasurn, despertara Lhénes, a Senhora dos Espectros, uma nova etérea de Elhanor, protetora do mundo, da vida. A Dama da Morte.
E, ao longe, no mundo dos mortos, os juízes esperavam por Lhénes e Hadril, vislumbrando sua morte, pressentindo sua chegada. Mas eles nunca os viram.

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