quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Conto - Johan e Aveline

Olá, companheiros!
Trago hoje mais um conto situado em Elhanor (o segundo no site, me desculpem por isso, hehe). Johan e Aveline é baseado no conto de fadas João e Maria, basicamente uma versão convertida para a mitologia deste cenário. Espero que gostem do texto, e não deixem de comentar!



A tarde tombava perante a tormenta de estrelas noturnas, e a lua logo cintilou em seu lugar, minguante, brilhosa e, mais do que nunca, sombria. Entre os ramos tenebrosos das árvores, ouvindo o caminhar das aranhas e o farfalhar das plantas, os irmãos, agora arrependidos pela fuga súbita, aceitaram a realidade que tanto temiam: estavam perdidos.
—Johan, nós vamos morrer —disse a garota, o rosto banhado por suor frio, apavorada por estar desprotegida sob a noite.
—A ideia foi sua! —disse o garoto, afastando as folhas para buscar um caminho seguro, o que talvez fosse impossível.
Na verdade, a ideia fora de ambos. Moravam em Jotur, a capital de Mekharia, reino das máquinas e da pólvora. Jotur era uma cidade turbulenta, e todos estavam sempre trabalhando, indispostos para sorrisos e brincadeiras. Era um lar tedioso para crianças, ainda mais para as hiperativas, como aquele par de irmãos. Aproveitando-se da desatenção do pai, fugiram, e os gêmeos correram até alcançar a Floresta da Noite Eterna, famosa por suas histórias macabras. Não bastasse isso, chegaram pouco antes da noite, e o breu piorava muito as coisas.
—Qual é o plano? —sussurrou Aveline, bem próxima, assustando o valente guerreiro que a guiava.
—Criar um plano —respondeu ele. Aveline resmungou, mas Johan tapou sua boca com uma das mãos, e sinalizou para que ela se calasse.
Apesar de gêmeos, os irmãos eram muito diferentes. Aveline tinha fios castanhos, cachos volumosos e rosto magro, e gostava de livros, em especial sobre piratas. Johan tinha bochechas largas, cabelos maltratados e músculos em desenvolvimento, apesar das cicatrizes nas pernas, lembranças de teimosias e irresponsabilidades. Apenas uma característica os definia como gêmeos: os olhos, grandes e castanhos, foscos como nozes caídas das árvores. De resto, eram tão invertidos quanto uma imagem no espelho.
—Olhe —murmurou Johan, e Aveline o escutou. Acalmou-se, silenciou e, atenta, observou.
Entre as árvores, à frente, um monstrengo se arrastava pelo lodo, manchando a pele cinzenta de barro e musgo. Uma de suas pernas estava partida, o sangue jorrando no solo pantanoso, o osso desenhando conforme raspava a terra molhada. Atrás dele, um imenso lupino surgiu, as presas banhadas em sangue fumegante, as garras prontas para triturar outra refeição. Temerosos, não tiveram reação alguma, mas alguém os puxou pelos ombros antes que as criaturas os notassem. Gritaram, mas as vozes falharam, e uma bela jovem os tranquilizou, o rosto sereno enchendo-os de paz.
—Não gritem —pediu a linda mulher, os cabelos azulados caindo sobre os olhos. —Vou levá-los daqui.
E levou, em silêncio. Guiou pela floresta até que, entre as sombras, encontraram uma pequena casa rústica, trabalhada na madeira das próprias árvores ao redor, coberta por imundice de animais e tocas de insetos venenosos. A mulher fez sinal para que entrassem, e os seguiu, fechando a porta atrás de si com um rangido.
Assim como seu exterior, a parte de dentro da casa era simples, nada além de um chalé miúdo, limpo e quente, com poltronas confortáveis e lamparinas nas paredes. Uma mesa ao guardava diversos livros, empilhados ao lado de uma vela apagada, talvez um local para estudo daquela bela mulher.
—Cheguei à tempo de salvar vocês dois —sorriu a estranha, e seus olhos maravilharam os irmãos, dotados de brilhos mais fortes do que a lua que irradiava acima do chalé. —Essa floresta é perigosa, ainda mais para duas crianças. Sou Aria.
—Prazer, Aria, mas não somos crianças —disse Aveline, mas seu irmão não a defendeu. Estava ocupado demais admirando o rosto angelical da moça, que agora sorria ainda mais contente.
—Que assim seja —brincou ela. —Por que não se sentam ali? Vou buscar algumas coisas para vocês comerem. Esperem só um minutinho.
Deixou os gêmeos, que se acomodaram num par de poltronas acolchoadas, mas logo voltou, carregando bolos, pilhas de biscoitos decorados e sucos deliciosos, bandejas estufadas flutuando ao redor de seu corpo, o que era estranho, mas não para ela. Serviu os irmãos, famintos pela adrenalina da fuga, e comeram tanto que até se esqueceram da bruxaria usada por ela pouco antes.
—Estão mesmo com fome, hein? —sorriu a donzela. Comam o quanto quiserem. Depois, ajeitem suas coisas e se preparem para descansar. Tiveram um dia cansativo, posso sentir.
—Obrigado pela hospitalidade —disse Johan. A cada mordida nas delícias da mulher, sentia os braços formigarem, mas não era um incômodo se comparado ao sabor maravilhoso da refeição.
—Ora, não me agradeçam! É o mínimo que posso fazer em troca de uma companhia agradável como a de vocês. Agora, se me dão licença.
E saiu, deixando as crianças comerem até que seus estômagos reclamassem. Johan ajeitava as coisas para dormir, jogando almofadas costuradas no tapete macio, quanto sua irmã o abordou.
—Não acha estranho? —perguntou ela. —Alguém aparecer no meio da floresta e nos ajudar desse jeito?
—Estranho seria não aceitar —sorriu Johan, e deitou. —Boa noite.

Nos das seguintes, comeram tão bem quanto naquela primeira noite. A cada dia, Aria parecia mais formidável, o corpo robusto e sedutor colado às vestes justas, os cabelos fabulosos brilhando. Sempre os servia com simpatia, e aquela sensação estranha no corpo, apesar de mais frequente, não os assustou. Sequer sentiam vontade de deixar o chalé, tamanha a bondade encontrada na mulher, que estava sempre ali, sorrindo e cuidando deles, diferente do pai que abandonaram em Jotur.
Num dia, Aria se despiu, deixando as roupas penduradas na porta do banheiro, e Johan a seguiu. Estava impressionado com a sua beleza, e queria conhecê-la melhor, admirá-la, ver cada canto daquele corpo escultural. Esgueirou-se nas sombras e, feito um gatuno, espiou. Quase tombou pelo espanto.
Na banheira, não havia nada de Aria. Era uma velha, a pele ressecada em dobras, manchada pela idade e marcada por cicatrizes enormes, e algumas partes descascavam sozinhas, cheirando a fezes de animais. Seus seios murchos sacudiam por seu corpo, feito pêndulos, as mamas pontiagudas como lâminas. Seu nariz era comprido e imundo, despejando gosmas amarelas vez ou outra, de acordo com sua respiração. Não parecia a mulher que tão bem os tratava, mas, quando ela se virou, seus olhos esbugalhados encontraram os de Johan, e eram os mesmos, por mais que horrorosos agora.
Fugiu. Correu até sua irmã, e a encontrou no cômodo principal, despedaçada. Erguia uma de suas próprias pernas, e a mastigava com ferocidade, como um pudim delicioso oferecido pela bruxa, e agora Johan entendia. Aqueles formigamentos, tudo aquilo era falso. Olhou para seu próprio braço, estraçalhado por mordidas famintas de suas próprias presas, a carne viva e os ossos à mostra num ferimento terrível. Sentiu a dor, acumulada pelas ilusões, e gritou, despertando assim sua irmã para a realidade, e os gritos de Aveline eram ainda piores.
Aria surgiu, vestida nas roupas tradicionais, mas ainda feito a velha macabra que era. Sorria, desabando seu hálito podre sobre os gêmeos, os dentes amarelos caindo vez ou outra pelo chão do chalé, que agora não passava de uma construção maltrapilha no meio da floresta.
—Ah, me desculpem, não me apresente propriamente —disse a bruxa, e seus olhos mudaram, agora finos como os felinos. —Sou Aria, devoradora de sonhos. Diretamente das profundezas, me alimento da ingenuidade e da inocência das crianças. É uma pena que tenham perdido a de vocês tão rapidamente, meus gêmeos queridos. Agora, serão descartados, e terei de encontrar outros.
Descartados não soava bem. Aria abriu uma bocarra grotesca, e engoliu os irmãos, que mal suportavam a dor da carne que eles mesmos mastigaram por dias. Os gritos sumiram na garganta pútrida da bruxa, que arrotou, indelicada, e esfregou o estômago.
—Crianças —disse para si mesma, voltando a ganhar a forma de uma linda donzela de cabelos azuis e belas curvas. —Vocês são deliciosas.
E saiu, em busca de um novo prato de ingenuidade.



Até a próxima!

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