EPÍLOGO
Aquele
era um pesadelo terrível.
Eu
via um homem com olhos de relógio, e ele enfrentava uma besta indescritível. Ao
seu lado, deuses na forma de estações anuais riscavam o mundo com suas figuras,
auxiliando o homem dos ponteiros em seu embate.
Por
último, uma mulher, que mais me parecia uma bruxa, e todos eles lutavam.
Até
que algo ocorreu.
Algo
ao longe ruiu, desmoronando como se fraquejasse diante da pancada de um herói,
como se desabasse perante a vontade de um mundo todo, de inocentes e viventes.
Junto disso, todo o local desmoronou, e o conflito se perdeu no estrondo da
inexistência, conforme a torre em que todos estavam tombava, lentamente, contra
o solo, que me parecia distante demais para que alguém pudesse sobreviver.
Eu
vi a bruxa se desesperar e fugir, e o homem dos ponteiros a perseguir, furioso.
Vi o monstro se perder nos poderes dos deuses, e os deuses partirem,
concludentes de suas missões. Vi o local deixar de existir, se perder no nada e
no vazio, cobrir-se em completa escuridão, e então não vi mais nada além do
breu, e não ouvi mais nada além do silêncio.
Eu
abri os olhos.
Tudo
ainda era turvo, estranho demais, como se eu me acostumasse outra vez àquela
paisagem. O quarto bagunçado, as tralhas jogadas no chão, o cheiro de suor e de
pizza.
Aquele
era o meu quarto, enfim.
Enfim?
Por que eu pensava daquela maneira? Era como se eu não visse aquele lugar há
tempos, como se eu estivesse distante há semanas! Mas eu estava lá, sempre
estive, não? Seja como for, levantei-me da cama, respirando aquele odor
intrigante e incômodo, e ele me agradou como nenhuma perfume poderia me
agradar.
—Já
se levantou, meu amor?
A
voz era uma canção em minha manhã. Abri as cortinas, deixando que o sol
entrasse pelas janelas, iluminando a bagunça, o pijama, os lençóis caídos ao
chão.
—Sim,
meu anjo. Eu já me levantei.
Marrie
surgiu na porta de meu quarto, vestindo nada além de sua camisola mais
provocante, e eu me apaixonei novamente por aquela mulher. Ela era minha razão
de existir, a mãe da garota mais linda do mundo, e também a melhor esposa que
alguém como eu poderia desejar.
E
eu estava com saudades dela, por mais que estivesse dormindo ao seu lado nos
últimos anos.
—Dormiu
bem, Victor? Você estava estranho ontem.
Corri
até ela e a abracei, tirando seu corpo atraente do chão num abraço que mais
parecia um reencontro.
—Eu
estou ótimo, princesa, melhor impossível! Já disse que te amo, te amo mesmo?
—Sim,
várias vezes.
—Mas
é bom repetir para que não se esqueça: eu te amo.
E
eu a beijei, e seu beijo era bom, delicioso, perfeito e mais que perfeito.
—Eca!
Madeleine,
minha filha, meu orgulho, surgia pela porta, linda como somente a mais bela
princesa poderia ser.
Eu
a abracei com a mesma sensação de reencontro, motivado pela emoção que somente
um pai distanciado de sua cria poderia sentir, por mais que Madeleine estivesse
ao meu lado durante quase todos os dias.
—Eu
te amo, minha filha.
—Eu
também, papai, mas você tá meio estranho hoje!
Sorri,
pois talvez estivesse mesmo, mas quem se importa? Eu apenas acordei assim, com
uma vontade imensa de amar, de ser amado, de dizer a todos aqueles que têm de
ouvir o quanto são importantes para mim.
—Que
tal se eu comprasse alguns doces para a gente comer no café da manhã, hein?
—Oba,
eu adoraria, papai!
Afaguei
os cabelos de Madeleine e, após um último beijo em minha esposa, vesti-me e
caminhei até a padaria, deixando para trás o carro, o horário de meu trabalho e
qualquer coisa menos importante do que a família.
No
caminho, pouco antes de atravessar a rua, um homem passou por mim. Ele
deslizava numa cadeira de rodas, as pernas quase inexistentes, massacradas por
um acidente trágico em seu passado. Ainda assim, parecia bem, feliz na medida
do possível. Carregava nos braços alguns livros de história.
—Bom
dia.
Lucius.
Que
nome era aquele que surgia em minha mente?
—Bom
dia.
Respondi
por educação, mas senti-me no dever de oferecer aquele cumprimento. Quando dei
por mim, o homem já havia sumido numa esquina próxima.
—Que
estranho.
Voltei
ao meu caminho, estacando no lugar quando uma garota incansável trombou com meu
corpo, caindo sentada na calçada logo a seguir.
—Ei
amiga, tome mais cuidado! Você está bem?
Ela
se levantou e limpou as roupas, olhando para mim com um enorme sorriso no
rosto.
Seus
olhos eram de vidro, foscos e inertes.
—Sim,
eu estou bem. Me desculpe, senhor.
—Eu
sempre digo para você não sair correndo, menina! Você sempre faz isso, sempre
atrapalha os outros!
Quem
falava era, possivelmente, seu pai, um homem que julguei estranho demais para
que acreditasse em sua responsabilidade. Coberto de tatuagens e piercing,
lembrava-me um andarilho, um cigano perdido nos tempos modernos, carregando
marcas de um passado sombrio.
—Imagine,
ela não me atrapalhou, meu bom senhor.
—Eu
espero que não. Ela é muito arteira, você não sabe o quanto!
—Eu
não sou arteira!
—É
sim, e muito mais do que deveria! Pergunte à sua mãe.
A
mulher que os acompanhava sorriu, e seu sorriso era belo e sereno, ainda que me
parecesse misterioso, como uma máscara que esconde mais do que se pode
imaginar.
—Peço
desculpas por ela. Você sabe como são as crianças, não sabe?
Sorri,
amigável.
—Sim,
sei bem. Tenho uma filha de idade similar, e sei muito bem como elas gostam de
correr para todos os lados.
A
mulher sorriu, simpática, enquanto seu marido brincava com a filha, ambos já do
outro lado da rua.
—Senhor
Victor, posso perguntar qual é o seu doce favorito?
Estranhei
a sua pergunta, mas a respondi do mesmo modo.
—Acho
que chocolate. Não consigo pensar em nada melhor, ao menos. Por que a pergunta?
Mantive
o sorriso no rosto, tentando parecer simpático, por mais que estivesse
duvidando da sanidade daquela mãe.
Sua
resposta apenas agravou minhas hipóteses:
—Chocolate,
claro. São ótimos doces. É uma pena que nunca tenha provado um mundo, senhor
Victor. É realmente uma pena.
E
ela se foi, deixando-me ali, pensando em suas palavras, e só então percebendo
que, por duas vezes, ela usara meu nome, o qual eu nunca havia dito.
Pensando
naquele estranho fato, não pude perceber o estranho que me observava, pouco
afastado, estranho este que também observava a mulher, por sob um chapéu escuro
demais para o sol que nos acolhia, esperando por um momento certo, uma hora
exata, um tic-tac final.
Eu
não pude ver, e talvez devesse agradecer por isso, mas seus olhos pareciam
relógios antigos.
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