TANTOS
TEMPOS, LUGARES E MOMENTOS
XII
Eu
não conseguia dormir.
Nós
estávamos de volta ao quarto de hotel. Todo aquele pesadelo acabou quando o
Cigano se foi, desfeito em cinzas, soprado por um vento que não deveria existir
naquele lugar. Tudo ruiu ao nosso redor, e o Sr. Sete Horas nos trouxe de volta
a Wyrestown, mas não à Wyrestown onde eu gostaria de estar.
Aquela
não era a minha cidade.
Todos
estavam cansados. Todos queriam suas camas, ao mesmo tempo em que queriam
entender todas aquelas coisas. Sofia era a contraparte da Decrépita, a mesma
Sofia que surgiu conosco no início de toda essa confusão, a mesma Sofia que
esquecemos no hospital, sequer dando importância. E, sendo ela a contraparte da
Decrépita, a outra, sua faceta alternativa naquele mundo, era a própria
Decrépita, a entidade que causava um mal sem tamanho, por melhor que fossem
suas intenções.
Eu
me recordava do dia em que a vimos na rua. Ela tinha uma parceira, uma mulher
ao seu lado, caminhando de mãos dadas. Conversava com a minha família, por mais
que ela não fosse minha. Minha esposa, Marrie, minha filha Madeleine, meu
melhor amigo, agora pai, agora em meu lugar. Eu me recordava de um olhar
minucioso, despreocupado, um olhar de quem estuda, mas na hora sequer o
percebi. Estava preocupado demais em aceitar o fato da minha família ter sido
destruída num reflexo que, por mais que eu soubesse que não era a realidade, me
feria como uma estaca no peito.
Ao
mesmo tempo, pensava nas palavras dos Herdeiros do Alvorecer, quando alguns
deles nos disseram sobre a fome da Decrépita. Ao ver a história de Cigano,
presenciando os fatos que ruíram sua vida e a de todo o Povo dos Oráculos, entendi
algo sobre aquele ser: ela não era malévola. Nascera mulher, como Suzan,
talvez. Como Sofia. Uma mulher destinada à grandeza, e foi isso o que lhe
trouxe o mal. A grandeza carrega a ambição, e mesmo um Deus não está livre de
tal sentimento. A culpa não era dela. Ela só tinha fome, e um único meio de
saciá-la. Ainda assim, eu não conseguia olhar para ela com piedade.
Era
o meu mundo o alimento, enfim.
Eu
pensava em todas essas coisas, mas não eram tais pensamentos o verdadeiro
motivo de minha insônia. Além de tudo isso, além de todas as loucuras que nos
circundavam, eu pensava num ferida ainda maior, uma cicatriz que me
acompanharia para sempre.
Sete
Horas não dormia no mesmo quarto que ocupávamos. Estava residindo ao lado, num
cômodo que alugara de última hora. Sendo assim, uma cama restava, vazia e
desarrumada, pois sequer tive coragem de ajeitá-la ao chegar.
A
cama de Hector.
Eu
me lembrava dos seus olhos quando, nos últimos instantes da Casa dos Espelhos.
Me lembrava das suas palavras estridentes, da sua determinação na escolha, da
sua força de vontade por ficar para trás, por aceitar a morte, o erro, por
culpar-se pelo fim de sua felicidade.
Os
espelhos não mentiram, eu sei disso. Eles lhe contaram a verdade, uma verdade
que homem algum seria capaz de aceitar. Mas alguns homens fugiriam. É mais
fácil fugir do que assumir a culpa, olhar para cima e gritar que sim, foi você
mesmo o culpado, foda-se. Aquele cara aceitou esse fardo. Eu o soquei, mas o
meu soco foi vazio, talvez pela minha força para lutar não estar neste lugar.
Mas o soco dele não foi vazio. Foi pesado. Carregava muita coisa, muitos
pensamentos confusos, muitas vontades reprimidas.
Carregava
o peso de uma vida.
Aquela
cama estava desarrumada e vazia, e parte disso era culpa minha. A escolha fora
de Hector, sim, mas eu a aceitei. Eu o deixei para trás, não insisti. Não o
soquei outra vez, não tentei arrastá-lo. Apenas aceitei a decisão de um homem,
a vontade de um cara de palavra, e fui embora, chorando como garotinha, sabendo
que nunca mais veria aquele filho de uma puta.
Agora
eu me culpava e, por isso, não conseguia dormir.
Pensando
nessas coisas, entre cochilos destrutivos e pesadelos sem noção, eu fui o
primeiro a ver quando amanheceu.
E
a manhã trouxe coisas muito mais estranhas do que o pôr-do-sol de um mundo que
não é o meu.
—Que
merda é essa?
O
comentário não foi intencional. Ele escapou de minha boca quando, ao olhar pela
janela, eu me deparei com um pequeno feixe de luz, saído das nuvens, que
alvejou uma calçada e fulminou, deixando quedar uma mulher de saltos quebrados,
acompanhada de um carrinho de bebê dividido ao meio.
Um
segundo mais tarde, outra luz atingiu o centro de uma esquina, e neste ponto
surgiu um rapaz, o boné fora da cabeça, sacudindo no ar. Ele parecia confuso,
olhando para os lados sem entender o que acontecia, sem imaginar onde estava.
Tudo era familiar, possivelmente, mas as coisas não faziam sentido.
E
foi então que eu entendi o que acontecia.
—Lucius,
Suzan, acordem!
Eles
bocejaram, preguiçosos.
—Ainda
é muito cedo.
—Vocês
têm que ver isso.
A
porta do quarto abriu, e por ela passou o Sr. Sete Horas.
—Ela
começou sua última empreitada.
—O
que está acontecendo?
Ele
se aproximou de mim, também apreciando a imagem bizarra exibida pela janela.
Lucius e Suzan também o fizeram.
—Decrépita
ainda não sabe onde está sua contraparte. Mas ela já tem a chave para o Umbra
e, assim, não quer mais perder tempo. Agora, ela vai tirar tudo da Terra de
Cima, até que ela encontre o que deseja.
Um
terceiro feixe de luz trouxe consigo o museu, e a construção girou no ar,
imensa, e aquela cena era tão surreal quanto impossível. O museu, e agora o
museu de verdade, o museu da minha
Wyrestown, quedou como um meteoro sobre as ruas da outra Wyrestown, ruindo e se tornando destroços quando o impacto se
concluiu, deixando por sobre o estrondo da colisão o grito estridente de tantas
pessoas que jaziam em seu interior sem sequer saber o que lhes acontecia.
As
luzes se repetiam, cada qual trazendo consigo uma pessoa, um veículo, um lugar,
e eu imaginava Wyrestown sendo depenada como um frango preparado para o almoço.
A Decrépita tinha pressa, e não media esforços para encontrar o que desejava.
Mal sabia ela que Sofia já estava ali, quase ao seu lado.
—Logo
ela vai descobrir.
Sete
Horas pareceu ler minha mente.
—O
que nós vamos fazer?
—Nós
vamos até ela antes disso. Paradiso é nosso destino. Se alcançarmos a Torre dos
Murmúrios antes que a Decrépita encontre sua contraparte, podemos impedi-la de
concluir o Umbra e, assim, salvar o seu mundo.
—E
como isso é possível?
—Matando
a contraparte e a chave.
Eu
engoli em seco. Lucius estava impressionado demais para que sua expressão
mudasse.
Suzan
deixou um grito abafado escapar.
Teríamos
que matar Sofia e a Cega.
Os
ponteiros do Sr. Sete Horas giraram, chegando ao horário que ele mais apreciava
no dia.
—Não
podemos perder mais tempo. Deixei que
descansassem para o que viria, mas isso nos atrasou. Agora agiremos sob
pressão.
Lucius
tomou a frente.
—Como
chegaremos em Paradiso?
—Há
somente uma rota para lá.
Sete
Horas deixou que suas mãos cintilassem num brilho púrpura, e com ela riscou o
ar, abrindo uma janela luminosa e encantada. Antes que ele abrisse a cicatriz
de planos com sua outra mão, pude ver pela janela o banco onde trabalhava ser
atirado contra as casas da outra Wyrestown, e pensei em todos os meus
companheiros, em todos os inocentes que morriam ali, sem nada entender.
—Esta
é a Trilha de Espinhos. Não esperem compreendê-la. Quanto mais se entende desta
rota, mais se fica preso a ela. Não precisamos de atrasos. Precisamos deixá-la
para trás. Não se deixem enganar.
Eu
não entendi muito daquelas palavras, mas quando dei por mim, já era carregado
pela luz violácea, e o mundo ao meu redor girava em cores e formas.
Tudo
agora era um roxo melancólico.
Havia
uma cidade em ruínas. Lembrava-me das velhas cidades árabes, com suas
construções de tijolos maltrapilhos, decoração desértica e adornos esbanjando a
riquezas que o povo não possuía. As ruas eram de areia e pedras, os prédios
estavam todos quedados, e dois córregos corriam por valetas previamente
trabalhadas na falta de pavimentação, deixando um agradável ruído de água
corrente.
Percebi
que estava sozinho naquele lugar sombrio.
Chamei
por Lucius, por Suzan, pelo Sr. Sete Horas. Nenhum deles me respondeu.
Sem
alternativa, caminhei.
O
céu me acompanhava, como se móvel, como se uma única parte de céu contentasse o
mundo com sua existência. Nuvens arroxeadas e claras deslizavam como se
melódicas, adquirindo no silêncio a música que lhes garantia a dança. No
horizonte, além daquele quadrado de céu, o teto de tudo era negro, cinzento ou
vazio, e pior sensação do que aquela não existia.
—Onde
eu estou?
Quem
me responderia? Nenhuma voz estava lá, nenhuma pessoa, nada. Estava sozinho na
tal Trilha de Espinhos, sem nem mesmo saber que tipo de lugar era aquele.
Sabia
que tinha de atravessá-la e, por ora, isso me bastou.
Quanto mais se
entende desta rota, mais se fica preso a ela.
As
palavras do Sr. Sete Horas ficavam estrondando em minha mente.
Jamais
ficaria preso, então, pois nada entendia.
Eu
andei pelo que me pareceram horas, ou minutos. A concepção, a sensação de
realidade, tudo era muito diferente ali. Às vezes eu me sentia caminhando sobre
os braços, e às vezes sentia o peso do corpo na cabeça, mas andava. O mundo
embaralhava suas emoções, dispersava tudo o que era possível sentir, confundia.
E
eu andava, sem parar pra pensar.
Eu
vi um pássaro no céu.
Ele
tinha quatro asas, quatro asas plumadas e imensas, mas seu corpo era tão miúdo
quanto o de um beija-flor. Ele piava músicas que aturdiam os tímpanos,
cantarolava uma marcha fúnebre aguda demais para que fosse admirada, e dançava
no ar, em movimentos bizarros, dificultados pelo tamanho das asas, relativamente
anormais.
—Você
gostaria de voar, Victor?
A
voz veio do meu lado, e lá estava um pássaro como aquele, postado no fio de
eletricidade de um poste que, tenho certeza, até então inexistia. No céu, a
outra ave continuava a voejar.
—Não.
Frio,
sem pudor.
—Não
seja bobo. Todos gostariam de voar.
—Eu
não.
Continuei
a andar.
—Você
sabe o que somos, Victor?
—Não.
Nem mesmo sei como você sabe o meu nome. Só sei que preciso continuar esse
caminho e —
—Ora,
não se acanhe. Muitos dos seus procuraram durante vidas pela oportunidade de
encontrar um de nós. Vai recusá-la agora que a tem?
—Sim.
Eu vou.
Dei
de ombros, prossegui.
O
céu fechou, e as nuvens ganharam um tom escuro de violeta. Mas ainda era
violeta a cor de tudo naquele mundo.
Começou
uma tempestade, e a chuva me acolheu de maneira incômoda, deixando que os
raios, cada qual de um anil estrondoso, rutilassem no céu, rítmicos.
—Sou
um pássaro do trovão, senhor Fulcanelli.
Aquela
foi a primeira coisa que entendi daquele lugar.
Quanto mais se
entende, mais se fica preso.
—Grande
merda.
Eu
estava curioso. Queria saber mais, queria perguntar e ser respondido, mas sabia
o que isso poderia dizer.
À
frente, no que me pareceu a distância de um mundo, eu vi uma porta fechada.
Havia várias outras portas no caminho, em edifícios e destroços de casas, mas
aquela era diferente.
Ela
parecia real.
—É
sim, somos uma grande merda. Fazíamos
milagres em eras passadas, você sabia? Nós éramos lendas. Ainda somos, se quer
saber. Ainda nos procuram, nos cultivam, nos —
—Cale
a boca.
Disparei
numa corrida desenfreada, e atrás de mim uma horda de pássaros levantava voo,
cada um deles antes pousado nos cabos de um poste de energia, e eram milhares,
como um jardim de tecnologia numa cidade desértica, tudo tão anil, tudo tão
morto.
Eles
me seguiam, guinchando suas baladas insanas, falando e falando o quê eu não
conseguia ouvir, talvez por sorte, talvez por medo.
Eu
não queria ficar preso naquele lugar.
A
cidade ficou para trás, e junto dela as ruínas, os edifícios e os pássaros. A
planície agora era ampla, e nela se situavam infindáveis cavernas, grutas e
furnas, cada qual com entradas tão imensas que eu sentia náuseas somente por
olhar.
Acima
destes rochedos, mosquitos de tamanhos colossais circundavam o ar num voo
desajeitado, e eles tinham pinças e lâminas nas patas dianteiras, bem como
caudas pomposas e ferrões curvilíneos.
—Que
porra é essa?
Tentei
ignorar, caçar a porta, mas aquela visão era aterradora. Para meu desespero, um
dos mosquitos me notou e, soando suas vias respiratórias como uma corneta que
aciona a guerra, apontou-me com suas lâminas para todos seus irmãos, e eu me
tornei um alvo.
Foi
quando uma das cavernas gigantescas se levantou,
e eu entendi que elas não eram cavernas.
Eram
tartarugas.
Aquela
foi a segunda coisa que eu entendi daquele lugar.
A
monstruosidade ergueu-se no casco de rochas e grunhiu, um bocejo trêmulo e
preguiçoso, e somente isto seria o suficiente para dizimar a Terra de Cima,
acreditei. Os mosquitos se desesperaram, fugiram temerosos, e ela os caçou, deixando
chicotear uma língua de sapo para fora da bocarra rochosa, capturando uma horda
deles e os engolindo sem pudor, na tentativa de extinguir uma fome que me
parecia insaciável.
Ela
então se virou em minha direção, e eu encontrei, nos seus olhos, um par de céus
estrelados.
—O
que.
—O
que?
—Você.
Eu
não compreendia.
—Faz.
—O
que você está falando?
—Aqui?
O
que você faz aqui?
Cada
palavra daquele colosso era espaçada no que me pareciam dias graças à lentidão
de sua fala.
—Eu
estou de passagem. Estou seguindo para Paradiso.
A
tartaruga-caverna respirou tão fundo que eu pensei que seria sugado por sua
inspiração, ou veria um ciclone se formar na saída do ar.
—Paradiso.
Um
minuto até que a palavra se completasse.
—Sim,
Paradiso. Tenho um mundo para salvar.
Eu
não salvaria nada. Eu só queria voltar para o meu lugar, para a minha família.
O Sr. Sete Horas era um herói, não eu. Falando daquele jeito, sentia-me capaz
de fazer alguma coisa de verdade.
—Salvar.
Um. Mundo?
—Você
sabe sobre a Decrépita?
A
criatura grunhiu, mais alto do que nunca.
—Eu.
Sei. De. Tudo.
Ao
longe, algo ribombava, e a terra parecia tremer a cada novo som, como se algo
ainda maior do que aquele ser à minha frente se aproximasse.
—Eles.
Estão. Vindo.
—Eles
quem?
—Vá.
Embora.
A
porta estava ali, ao meu lado.
—Vocês
vão ficar bem?
—Não.
Se. Importe.
Eu
vi, no horizonte, criaturas que me distorceram a visão, contorceram a
realidade, expurgaram qualquer vontade que eu tinha no corpo, e minhas pernas
oscilaram no mesmo instante. Eram gigantes de espinhos e caos, corpanzis
caminhando num território insignificante para suas existências, com olhos de
galáxias e rostos deformados pela incompreensão.
As
demais tartarugas se colocaram em pé, e um enfrentamento de proporções
inimagináveis se iniciou.
Eu
entendi, algum tempo depois de ver a porta se abrir, que elas não eram capazes
de vencer.
Por sorte, eu já estava fora
daquele lugar.
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