quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 6 / Ato XII


TANTOS TEMPOS, LUGARES E MOMENTOS


XII


Eu não conseguia dormir.
Nós estávamos de volta ao quarto de hotel. Todo aquele pesadelo acabou quando o Cigano se foi, desfeito em cinzas, soprado por um vento que não deveria existir naquele lugar. Tudo ruiu ao nosso redor, e o Sr. Sete Horas nos trouxe de volta a Wyrestown, mas não à Wyrestown onde eu gostaria de estar.
Aquela não era a minha cidade.
Todos estavam cansados. Todos queriam suas camas, ao mesmo tempo em que queriam entender todas aquelas coisas. Sofia era a contraparte da Decrépita, a mesma Sofia que surgiu conosco no início de toda essa confusão, a mesma Sofia que esquecemos no hospital, sequer dando importância. E, sendo ela a contraparte da Decrépita, a outra, sua faceta alternativa naquele mundo, era a própria Decrépita, a entidade que causava um mal sem tamanho, por melhor que fossem suas intenções.
Eu me recordava do dia em que a vimos na rua. Ela tinha uma parceira, uma mulher ao seu lado, caminhando de mãos dadas. Conversava com a minha família, por mais que ela não fosse minha. Minha esposa, Marrie, minha filha Madeleine, meu melhor amigo, agora pai, agora em meu lugar. Eu me recordava de um olhar minucioso, despreocupado, um olhar de quem estuda, mas na hora sequer o percebi. Estava preocupado demais em aceitar o fato da minha família ter sido destruída num reflexo que, por mais que eu soubesse que não era a realidade, me feria como uma estaca no peito.
Ao mesmo tempo, pensava nas palavras dos Herdeiros do Alvorecer, quando alguns deles nos disseram sobre a fome da Decrépita. Ao ver a história de Cigano, presenciando os fatos que ruíram sua vida e a de todo o Povo dos Oráculos, entendi algo sobre aquele ser: ela não era malévola. Nascera mulher, como Suzan, talvez. Como Sofia. Uma mulher destinada à grandeza, e foi isso o que lhe trouxe o mal. A grandeza carrega a ambição, e mesmo um Deus não está livre de tal sentimento. A culpa não era dela. Ela só tinha fome, e um único meio de saciá-la. Ainda assim, eu não conseguia olhar para ela com piedade.
Era o meu mundo o alimento, enfim.
Eu pensava em todas essas coisas, mas não eram tais pensamentos o verdadeiro motivo de minha insônia. Além de tudo isso, além de todas as loucuras que nos circundavam, eu pensava num ferida ainda maior, uma cicatriz que me acompanharia para sempre.
Sete Horas não dormia no mesmo quarto que ocupávamos. Estava residindo ao lado, num cômodo que alugara de última hora. Sendo assim, uma cama restava, vazia e desarrumada, pois sequer tive coragem de ajeitá-la ao chegar.
A cama de Hector.
Eu me lembrava dos seus olhos quando, nos últimos instantes da Casa dos Espelhos. Me lembrava das suas palavras estridentes, da sua determinação na escolha, da sua força de vontade por ficar para trás, por aceitar a morte, o erro, por culpar-se pelo fim de sua felicidade.
Os espelhos não mentiram, eu sei disso. Eles lhe contaram a verdade, uma verdade que homem algum seria capaz de aceitar. Mas alguns homens fugiriam. É mais fácil fugir do que assumir a culpa, olhar para cima e gritar que sim, foi você mesmo o culpado, foda-se. Aquele cara aceitou esse fardo. Eu o soquei, mas o meu soco foi vazio, talvez pela minha força para lutar não estar neste lugar. Mas o soco dele não foi vazio. Foi pesado. Carregava muita coisa, muitos pensamentos confusos, muitas vontades reprimidas.
Carregava o peso de uma vida.
Aquela cama estava desarrumada e vazia, e parte disso era culpa minha. A escolha fora de Hector, sim, mas eu a aceitei. Eu o deixei para trás, não insisti. Não o soquei outra vez, não tentei arrastá-lo. Apenas aceitei a decisão de um homem, a vontade de um cara de palavra, e fui embora, chorando como garotinha, sabendo que nunca mais veria aquele filho de uma puta.
Agora eu me culpava e, por isso, não conseguia dormir.
Pensando nessas coisas, entre cochilos destrutivos e pesadelos sem noção, eu fui o primeiro a ver quando amanheceu.
E a manhã trouxe coisas muito mais estranhas do que o pôr-do-sol de um mundo que não é o meu.
—Que merda é essa?
O comentário não foi intencional. Ele escapou de minha boca quando, ao olhar pela janela, eu me deparei com um pequeno feixe de luz, saído das nuvens, que alvejou uma calçada e fulminou, deixando quedar uma mulher de saltos quebrados, acompanhada de um carrinho de bebê dividido ao meio.
Um segundo mais tarde, outra luz atingiu o centro de uma esquina, e neste ponto surgiu um rapaz, o boné fora da cabeça, sacudindo no ar. Ele parecia confuso, olhando para os lados sem entender o que acontecia, sem imaginar onde estava. Tudo era familiar, possivelmente, mas as coisas não faziam sentido.
E foi então que eu entendi o que acontecia.
—Lucius, Suzan, acordem!
Eles bocejaram, preguiçosos.
—Ainda é muito cedo.
—Vocês têm que ver isso.
A porta do quarto abriu, e por ela passou o Sr. Sete Horas.
—Ela começou sua última empreitada.
—O que está acontecendo?
Ele se aproximou de mim, também apreciando a imagem bizarra exibida pela janela. Lucius e Suzan também o fizeram.
—Decrépita ainda não sabe onde está sua contraparte. Mas ela já tem a chave para o Umbra e, assim, não quer mais perder tempo. Agora, ela vai tirar tudo da Terra de Cima, até que ela encontre o que deseja.
Um terceiro feixe de luz trouxe consigo o museu, e a construção girou no ar, imensa, e aquela cena era tão surreal quanto impossível. O museu, e agora o museu de verdade, o museu da minha Wyrestown, quedou como um meteoro sobre as ruas da outra Wyrestown, ruindo e se tornando destroços quando o impacto se concluiu, deixando por sobre o estrondo da colisão o grito estridente de tantas pessoas que jaziam em seu interior sem sequer saber o que lhes acontecia.
As luzes se repetiam, cada qual trazendo consigo uma pessoa, um veículo, um lugar, e eu imaginava Wyrestown sendo depenada como um frango preparado para o almoço. A Decrépita tinha pressa, e não media esforços para encontrar o que desejava. Mal sabia ela que Sofia já estava ali, quase ao seu lado.
—Logo ela vai descobrir.
Sete Horas pareceu ler minha mente.
—O que nós vamos fazer?
—Nós vamos até ela antes disso. Paradiso é nosso destino. Se alcançarmos a Torre dos Murmúrios antes que a Decrépita encontre sua contraparte, podemos impedi-la de concluir o Umbra e, assim, salvar o seu mundo.
—E como isso é possível?
—Matando a contraparte e a chave.
Eu engoli em seco. Lucius estava impressionado demais para que sua expressão mudasse.
Suzan deixou um grito abafado escapar.
Teríamos que matar Sofia e a Cega.
Os ponteiros do Sr. Sete Horas giraram, chegando ao horário que ele mais apreciava no dia.
—Não podemos perder mais tempo.  Deixei que descansassem para o que viria, mas isso nos atrasou. Agora agiremos sob pressão.
Lucius tomou a frente.
—Como chegaremos em Paradiso?
—Há somente uma rota para lá.
Sete Horas deixou que suas mãos cintilassem num brilho púrpura, e com ela riscou o ar, abrindo uma janela luminosa e encantada. Antes que ele abrisse a cicatriz de planos com sua outra mão, pude ver pela janela o banco onde trabalhava ser atirado contra as casas da outra Wyrestown, e pensei em todos os meus companheiros, em todos os inocentes que morriam ali, sem nada entender.
—Esta é a Trilha de Espinhos. Não esperem compreendê-la. Quanto mais se entende desta rota, mais se fica preso a ela. Não precisamos de atrasos. Precisamos deixá-la para trás. Não se deixem enganar.
Eu não entendi muito daquelas palavras, mas quando dei por mim, já era carregado pela luz violácea, e o mundo ao meu redor girava em cores e formas.

Tudo agora era um roxo melancólico.
Havia uma cidade em ruínas. Lembrava-me das velhas cidades árabes, com suas construções de tijolos maltrapilhos, decoração desértica e adornos esbanjando a riquezas que o povo não possuía. As ruas eram de areia e pedras, os prédios estavam todos quedados, e dois córregos corriam por valetas previamente trabalhadas na falta de pavimentação, deixando um agradável ruído de água corrente.
Percebi que estava sozinho naquele lugar sombrio.
Chamei por Lucius, por Suzan, pelo Sr. Sete Horas. Nenhum deles me respondeu.
Sem alternativa, caminhei.
O céu me acompanhava, como se móvel, como se uma única parte de céu contentasse o mundo com sua existência. Nuvens arroxeadas e claras deslizavam como se melódicas, adquirindo no silêncio a música que lhes garantia a dança. No horizonte, além daquele quadrado de céu, o teto de tudo era negro, cinzento ou vazio, e pior sensação do que aquela não existia.
—Onde eu estou?
Quem me responderia? Nenhuma voz estava lá, nenhuma pessoa, nada. Estava sozinho na tal Trilha de Espinhos, sem nem mesmo saber que tipo de lugar era aquele.
Sabia que tinha de atravessá-la e, por ora, isso me bastou.
Quanto mais se entende desta rota, mais se fica preso a ela.
As palavras do Sr. Sete Horas ficavam estrondando em minha mente.
Jamais ficaria preso, então, pois nada entendia.
Eu andei pelo que me pareceram horas, ou minutos. A concepção, a sensação de realidade, tudo era muito diferente ali. Às vezes eu me sentia caminhando sobre os braços, e às vezes sentia o peso do corpo na cabeça, mas andava. O mundo embaralhava suas emoções, dispersava tudo o que era possível sentir, confundia.
E eu andava, sem parar pra pensar.
Eu vi um pássaro no céu.
Ele tinha quatro asas, quatro asas plumadas e imensas, mas seu corpo era tão miúdo quanto o de um beija-flor. Ele piava músicas que aturdiam os tímpanos, cantarolava uma marcha fúnebre aguda demais para que fosse admirada, e dançava no ar, em movimentos bizarros, dificultados pelo tamanho das asas, relativamente anormais.
—Você gostaria de voar, Victor?
A voz veio do meu lado, e lá estava um pássaro como aquele, postado no fio de eletricidade de um poste que, tenho certeza, até então inexistia. No céu, a outra ave continuava a voejar.
—Não.
Frio, sem pudor.
—Não seja bobo. Todos gostariam de voar.
—Eu não.
Continuei a andar.
—Você sabe o que somos, Victor?
—Não. Nem mesmo sei como você sabe o meu nome. Só sei que preciso continuar esse caminho e —
—Ora, não se acanhe. Muitos dos seus procuraram durante vidas pela oportunidade de encontrar um de nós. Vai recusá-la agora que a tem?
—Sim. Eu vou.
Dei de ombros, prossegui.
O céu fechou, e as nuvens ganharam um tom escuro de violeta. Mas ainda era violeta a cor de tudo naquele mundo.
Começou uma tempestade, e a chuva me acolheu de maneira incômoda, deixando que os raios, cada qual de um anil estrondoso, rutilassem no céu, rítmicos.
—Sou um pássaro do trovão, senhor Fulcanelli.
Aquela foi a primeira coisa que entendi daquele lugar.
Quanto mais se entende, mais se fica preso.
—Grande merda.
Eu estava curioso. Queria saber mais, queria perguntar e ser respondido, mas sabia o que isso poderia dizer.
À frente, no que me pareceu a distância de um mundo, eu vi uma porta fechada. Havia várias outras portas no caminho, em edifícios e destroços de casas, mas aquela era diferente.
Ela parecia real.
—É sim, somos uma grande merda. Fazíamos milagres em eras passadas, você sabia? Nós éramos lendas. Ainda somos, se quer saber. Ainda nos procuram, nos cultivam, nos —
—Cale a boca.
Disparei numa corrida desenfreada, e atrás de mim uma horda de pássaros levantava voo, cada um deles antes pousado nos cabos de um poste de energia, e eram milhares, como um jardim de tecnologia numa cidade desértica, tudo tão anil, tudo tão morto.
Eles me seguiam, guinchando suas baladas insanas, falando e falando o quê eu não conseguia ouvir, talvez por sorte, talvez por medo.
Eu não queria ficar preso naquele lugar.
A cidade ficou para trás, e junto dela as ruínas, os edifícios e os pássaros. A planície agora era ampla, e nela se situavam infindáveis cavernas, grutas e furnas, cada qual com entradas tão imensas que eu sentia náuseas somente por olhar.
Acima destes rochedos, mosquitos de tamanhos colossais circundavam o ar num voo desajeitado, e eles tinham pinças e lâminas nas patas dianteiras, bem como caudas pomposas e ferrões curvilíneos.
—Que porra é essa?
Tentei ignorar, caçar a porta, mas aquela visão era aterradora. Para meu desespero, um dos mosquitos me notou e, soando suas vias respiratórias como uma corneta que aciona a guerra, apontou-me com suas lâminas para todos seus irmãos, e eu me tornei um alvo.
Foi quando uma das cavernas gigantescas se levantou, e eu entendi que elas não eram cavernas.
Eram tartarugas.
Aquela foi a segunda coisa que eu entendi daquele lugar.
A monstruosidade ergueu-se no casco de rochas e grunhiu, um bocejo trêmulo e preguiçoso, e somente isto seria o suficiente para dizimar a Terra de Cima, acreditei. Os mosquitos se desesperaram, fugiram temerosos, e ela os caçou, deixando chicotear uma língua de sapo para fora da bocarra rochosa, capturando uma horda deles e os engolindo sem pudor, na tentativa de extinguir uma fome que me parecia insaciável.
Ela então se virou em minha direção, e eu encontrei, nos seus olhos, um par de céus estrelados.
—O que.
—O que?
—Você.
Eu não compreendia.
—Faz.
—O que você está falando?
—Aqui?
O que você faz aqui?
Cada palavra daquele colosso era espaçada no que me pareciam dias graças à lentidão de sua fala.
—Eu estou de passagem. Estou seguindo para Paradiso.
A tartaruga-caverna respirou tão fundo que eu pensei que seria sugado por sua inspiração, ou veria um ciclone se formar na saída do ar.
—Paradiso.
Um minuto até que a palavra se completasse.
—Sim, Paradiso. Tenho um mundo para salvar.
Eu não salvaria nada. Eu só queria voltar para o meu lugar, para a minha família. O Sr. Sete Horas era um herói, não eu. Falando daquele jeito, sentia-me capaz de fazer alguma coisa de verdade.
—Salvar. Um. Mundo?
—Você sabe sobre a Decrépita?
A criatura grunhiu, mais alto do que nunca.
—Eu. Sei. De. Tudo.
Ao longe, algo ribombava, e a terra parecia tremer a cada novo som, como se algo ainda maior do que aquele ser à minha frente se aproximasse.
—Eles. Estão. Vindo.
—Eles quem?
—Vá. Embora.
A porta estava ali, ao meu lado.
—Vocês vão ficar bem?
—Não. Se. Importe.
Eu vi, no horizonte, criaturas que me distorceram a visão, contorceram a realidade, expurgaram qualquer vontade que eu tinha no corpo, e minhas pernas oscilaram no mesmo instante. Eram gigantes de espinhos e caos, corpanzis caminhando num território insignificante para suas existências, com olhos de galáxias e rostos deformados pela incompreensão.
As demais tartarugas se colocaram em pé, e um enfrentamento de proporções inimagináveis se iniciou.
Eu entendi, algum tempo depois de ver a porta se abrir, que elas não eram capazes de vencer.
Por sorte, eu já estava fora daquele lugar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário