XIII
Num
cenário pálido e doentio, milhares de portas se espalhavam em todos os ângulos
e direções.
Eu
saí por uma delas, tomado por uma náusea incomensurável e, apoiado numa parede
invisível, vomitei. A substância deslizou por degraus que forma não tinham,
levada por um vento que não soprava, e então se foi, desaparecendo. Respirei
com dificuldade, ainda enojado pela sensação súbita do incompreensível.
—Quer
ajuda?
Levantei
os olhos.
Quem
me estendia as mãos era um homem com olhos de ponteiro.
—Não
precisa.
Precisava,
mas eu me levantei sozinho num esforço orgulhoso.
—Onde
estão os outros?
O
Sr. Sete Horas deu de ombros.
—Nem
todos são capazes de vencer a Trilha de Espinhos, Victor. Espero que esteja
preparado para aceitar possíveis perdas.
Lucius
e Suzan não estavam lá, em nenhuma daquelas portas. Eles ainda estavam na
Trilha.
—Eles
vão conseguir.
—Esperamos
que sim. As bênçãos dos Herdeiros farão falta, caso contrário. Precisamos de
tudo o que tivermos para enfrentar a Decrépita e impedir que o Umbra se
realize.
Sentado
num banco imaginário, Sete Horas tirou um cigarro do ar e o acendeu nos dedos.
—Sente-se.
Pode demorar.
Eu
me larguei no chão que inexistia, permitindo-me respirar e apagar a irrealidade
daquelas cenas de minha mente. Se um dia voltasse para a Terra de Cima, teria
de me contentar com todas aquelas lembranças insanas, conviver com memórias de
coisas que eu preferia desconhecer, como muitos outros desconhecem.
Uma
porta ao longe se abriu, e por ela passou Lucius.
Ele
quedou de imediato, arfando. Suava frio, abraçado às próprias pernas, trêmulo
como uma criança após um filme de terror de baixa categoria, cujos sustos são
inconsequentes e desnaturados. Eu queria oferecer apoio e forças, mas não os
tinha nem mesmo para mim, portanto fiquei ali, inquieto, deitado em minha
podridão.
Sete
Horas não se moveu.
O
tempo passava. Eu via os ponteiros girarem em seus olhos, sem parar.
Minutos,
horas, dias.
—Teremos
uma abertura em poucos instantes.
As
palavras do Sr. Sete Horas foram ríspidas, servindo-me como o despertador que
martela nossas cabeças ao amanhecer.
—Quantos
anos duram poucos instantes?
—Apenas
poucos instantes. Neste momento,
poderemos sair daqui, partir para Paradiso e encontrar a Torre dos Murmúrios.
Olhei
ao redor. Lucius ainda estava lá, aflito.
Nenhum
sinal de Suzan.
—Suzan
ainda não está aqui.
—Então
torça para que ela esteja em poucos
instantes.
Pigarreei,
teimoso.
—Não
vou sair daqui sem ela.
—É
um orgulho tolo, Victor. Você e Lucius não a conheciam antes disso tudo.
—Mas
agora a conhecemos, e é isso o quê importa! Sabemos que ela também tem alguém a
esperando na Terra de Cima! Não vamos abandoná-la aqui, como uma indigente.
—Ó,
mas vocês não a abandonaram! Todos tivemos chances iguais de cruzar a Trilha de
Espinhos. Mesmo eu poderia fraquejar e oscilar diante do conhecimento que lá
reside. Mas nós o fizemos, não foi? Eu, você, Lucius. Todos nós trespassamos aquele
lugar amaldiçoado, e agora estamos aqui, guiados por pura força de vontade. Se
ela não o fez, é erro dela, não de vocês.
—Vá
se foder.
E
me virei, destinado a adormecer por mais alguns poucos instantes.
Eu
sabia que, no fundo, as palavras de Sete Horas eram verdadeiras.
Foi
a voz dele que me despertou outra vez.
—Já
é hora.
De
encontro com uma visão turva, levantei-me zonzo, apoiado nas inúmeras portas
que nos cercavam. Percebi que uma delas diferia de todas as outras: ela era
pouco mais que uma fresta, pela qual uma luminosidade branda e azulada
desbravava o local bizarro onde nos encontrávamos.
—Onde
está Lucius?
—Estou
aqui.
E
estava. Ao meu lado, não recomposto, não bem disposto, não determinado. Mas
estava.
—E
Suzan?
Lucius
baixou os olhos, tristonho.
—Ela
não conseguiu.
Eu
senti uma coisa estranha por dentro. Um aperto no coração, acho. Uma dor miúda,
coisa que não soube explicar.
—Que
pena.
Não
chorei. Por dentro, algo me remoía o peito, me pressionava os pensamentos.
Poderia ser tristeza, mas eu não a compreendia mais e, assim, não chorei.
O
Sr. Sete Horas limpou a garganta.
—Não
vamos perder mais tempo. A passagem logo se fechará. É a nossa única chance.
Ele
foi o primeiro a passar por aquela fresta, seguido de perto por Lucius. Antes
de prosseguir, virei-me para trás, olhando para todas aquelas portas, infinitas
passagens por onde, na melhor das hipóteses, Suzan poderia passar, destruída
por vislumbres de um inferno pessoal, porém viva.
Mas
ela não passou, e eu fui embora sozinho.
—Sejam
bem-vindos a Paradiso.
Eu
sabia que aquele era o verdadeiro paraíso dos homens, a terra prometida, o
milagre além de todas as vidas. Aquela era a terra da perfeição, a mais bela
das imagens, o palco dos sonhos de infindáveis pessoas de infindáveis
universos.
A
visão do paraíso me fez vomitar.
Se
uma única palavra poderia descrever Paradiso, esta era caos. Parecia um deserto de areia asquerosa, misturada ao lodo
pantanoso da mais fétida floresta, coberta por pedras e vermes de cores e
formas anormais. Corpos se empilhavam em todas as direções, e suas almas
vagueavam nos arredores, gritantes, perdidas; algumas delas comemoravam.
Sorriam e celebravam de olhos fechados, mas um dia a visão retornaria, e o
paraíso que os alegrava seria aquele que eu via, aquele terror, aquele caos, e
os sorrisos se perderiam nas lágrimas, a felicidade desapareceria na tristeza,
a alegria seria corrompida pela dor.
Além
das areias nauseantes, eu via casas e mais casas, todas elas distantes, e
montanhas que mais pareciam amontoados de carne podre ou restos mortais;
vendavais de sangue seco e cachoeiras de água envenenada eram somente alguns
dos fenômenos aleatórios que ocorriam simultaneamente naquela terra pecadora.
Juntos à tempestade de trovões escarlates, tudo parecia um circo de horrores.
Se
aquele era o paraíso, eu sequer conseguia imaginar como seria o inferno.
—Este
lugar não foi sempre assim. Mas o paraíso foi criado para benefício do homem, e
ao homem foi destinado. O cultivo de tal terra tende a se escorar na vivência
daquele a quem foi prometida, e o homem zombou da vida, dos outros, viveu no
egoísmo e na ambição. Isto é o que restou do presente de Deus. Conseguem
imaginar o mal que a sua raça fez para que o paraíso se tornasse essa
aberração?
Eu
era incapaz de discutir um assunto como aquele, e Lucius estava igualmente
abalado. Em silêncio, seguimos caminhada, acompanhados dos sermões do Sr. Sete
Horas que, de tão reais, pareciam socos em nossas faces.
Então
ela surgiu, imponente.
Antes
vista em silhueta, era agora imensamente devaneadora, fazendo parecer crianças
chorosas as tartarugas-cavernas que vira há pouco. Inversa em proporções, o
topo que realçou o horizonte no Pesadelo fincava-se ao solo, como lança, e todo
o restante da construção se erguia como um monumento, um memorial, uma figura a
ser idolatrada por povos que morreram, que existiam e que ainda nasceriam em
todas as áreas de todos os mundos.
Ela
estava inerte, mas respirava, como criatura viva, como aberração que era.
Murmurava um chamado, um assombro, murmurava um pavor.
A
Torre dos Murmúrios chiava um agouro de morte.
—É
enorme!
O
Sr. Sete Horas deixou escapar um riso de deboche.
—Construtivo
seu comentário, Victor. Caso contrário, seríamos incapazes de perceber a
monstruosidade de tal construção. Se me permitem, agora, tenham em mãos as
bênçãos oferecidas pelos Herdeiros a todo tempo. Elas podem lhes salvar, bem
como salvar o mundo de vocês.
Retirei
de minhas vestes o emblema do Outono, pressionando-o com mãos trêmulas. Era
difícil acreditar que algo de tamanha insignificância pudesse me oferecer um
dom que homem algum seria capaz de acreditar.
Lucius
se recusou.
—Eu
não quero essa magia.
—Não
a quer?
—De
modo algum! Ela quase nos matou! Como posso confiar em algo que me feriu?
Sem
hesitar, Lucius atirou o emblema da Primavera para longe de si, seguindo sem
ele.
—Faça
como quiser.
Não
intencionalmente, não por ganância ou ambição, mas eu fui até o emblema e o
peguei, respeitoso, guardando-o comigo para caso fosse necessário.
Uma
escadaria surgiu à nossa frente, externa à Torre dos Murmúrios, tão fabulosa
quanto a construção, com degraus cristalinos e encantados. Ela não fazia parte
daquele cenário: nascera de Sete Horas, uma facilidade oferecida por seus
poderes, por suas vontades.
—Tem
algo errado.
Eu
não sentia nada de diferente.
—Do
que está falando?
—O
ar está mais denso. Não percebem?
Fiz
que não, Lucius também.
—Que
seja.
Subimos.
O
tempo passou, e nós subimos, subimos sem parar. Cada degrau nos exigia um
esforço sem tamanho, um novo passo para o desconhecido, para o maior dos
temores. Ali, no topo daquela escadaria, estava a salvação, mas também estava o
desfecho, e nem todo final é feliz.
Eu
pensava em Madeleine, em Marrie, mas também pensava em Suzan e Hector. Pensava
em Wyrestown, sem saber o que esperar quando retornasse.
Sem
saber nem mesmo se retornaria.
Diferente
de dois dos meus companheiros, eu ainda tinha uma chance.
E,
pensando assim, sequer percebi quando os degraus terminaram, e um imenso portão
adornado com figuras bizarras nos recepcionou.
—Tem
algo errado.
Sete
Horas repetiu a afirmação, e agora eu também sentia.
O
ar estava difícil de respirar.
—Nós
ainda temos tempo. Decrépita não sabe onde está sua contraparte.
Ele
não disse nada. Só respirou fundo e, com ambas as mãos, empurrou o portão
metálico para trás, garantindo-nos a visão que destroçaria as esperanças de
qualquer pessoa.
Lá
estava Sofia.
Ambas
as ruivas estavam no mesmo local, mas somente uma delas parecia bem. A outra
estava amarrada, amordaçada e vendada, presa por correntes numa altura considerável
do solo, balançando de um lado para o outro como um pêndulo irracional.
Abaixo
dela, a Cega riscava o solo com uma pedra dourada, rabiscando uma figura que
cintilava a cada nova forma, ganhando intensidade e tornando o ar mais pesado a
cada novo risco.
Logo
percebi que o quê ela desenhava era uma chave e, acima das correntes da Sofia
da Terra de Cima, havia a imensa figura de uma fechadura.
A
outra Sofia sorria, felicitada por
nossa presença.
—Nunca
antes houve espectadores.
—Não
há nada para ser visto aqui.
O
Sr. Sete Horas se livrou das vestes e do chapéu, deixando a mostra roupas
soturnas, placas metálicas e cicatrizes amorfas por uma pele empalidecida ao
limite. Os ponteiros em seus olhos giraram como ciclones, e então pararam, mais
uma vez naquele horário, mais uma vez naquele tempo.
Sete
Horas.
Eu
pude sentir a dor de todo um povo. Pude sentir a vontade de se vingar, a
vontade de existir outra vez, o desejo pela morte de um único ser, uma única
entidade que livrou incontáveis vidas da existência. Sete Horas era a
manifestação a vontade de um povo, de um mundo, e seu nome não era uma simples
união de palavras: aquele era o horário do fim. O exato instante em que tudo
deixou de existir, quando o Umbra se concretizou e a fome da Decrépita foi saciada,
custando para isso uma infinidade de vidas.
A
mágica do Sr. Sete Horas parecia mais densa do que o ar, descontrolada num
frenesi animalesco.
—Agora
é a sua hora de cair, criatura! Não mais levará consigo a destruição! Não mais
carregará no corpo o espectro de todo meu povo!
A
Decrépita não parecia se incomodar com a vingança de todo um mundo manifestada
ali, à sua frente, na forma de um homem de olhos de ponteiros.
—Seus
relógios estão atrasados, jovem. É tarde
demais.
—Nunca
é tarde demais.
E
a magia explodiu, carregada de chamas revoltas num turbilhão, levada por um
vendaval estridente, e no vento eu via olhos e bocas gritantes, almas e
espectros de um povo poderoso, um povo que não mais seria capaz de existir.
A
mágica nascia de um só homem, mas se originava em centenas, milhares, milhões.
A
Torre dos Murmúrios se abalou com aquele poder, mas não cedeu. Suas paredes se
estilhaçaram de imediato, mas nada ocorreu à fechadura que aguardava por sua
chave, e a Cega continuou a desenhar, enquanto Sofia sacudia no ar, nas
correntes, sem saber o que acontecia ao seu redor.
A
magia era poderosa demais, descontrolada demais, e avançou sobre nós como se
fôssemos aliados da Decrépita. Suspendi os braços numa falha tentativa de
resistir, ainda que soubesse que era incapaz.
Ao
fim, ainda estava lá, cercado por folhas e árvores.
O
Outono me protegera.
—Lucius!
O
emblema da Primavera em meu bolso me fez pensar o pior. Olhei ao redor,
preocupado, mas não encontrei a imagem serena do professor. Havia destroços por
todos os lados, paredes ruídas e marcas do conflito, mas nem sinal de Lucius.
—Merda!
Foi
quando o céu oscilou, e eu percebi que algo estava errado.
O
Sr. Sete Horas não percebeu que algo se aproximava. Nem mesmo Decrépita, Sofia
ou a Cega, nenhuma delas se importou em olhar pelas imensas lacunas nas paredes
da Torre dos Murmúrios para ver, voejando ao longe, uma criatura bestial, de
asas deformadas e carne pútrida, soprar inferno e destruição para todas as
direções.
E
era um monstro, era um ser, mas antes disso, era um homem, um homem que eu
odiava, um homem que fez o que fez por amar.
Cigano.
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