sábado, 16 de fevereiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 6 / Ato XIII


XIII


Num cenário pálido e doentio, milhares de portas se espalhavam em todos os ângulos e direções.
Eu saí por uma delas, tomado por uma náusea incomensurável e, apoiado numa parede invisível, vomitei. A substância deslizou por degraus que forma não tinham, levada por um vento que não soprava, e então se foi, desaparecendo. Respirei com dificuldade, ainda enojado pela sensação súbita do incompreensível.
—Quer ajuda?
Levantei os olhos.
Quem me estendia as mãos era um homem com olhos de ponteiro.
—Não precisa.
Precisava, mas eu me levantei sozinho num esforço orgulhoso.
—Onde estão os outros?
O Sr. Sete Horas deu de ombros.
—Nem todos são capazes de vencer a Trilha de Espinhos, Victor. Espero que esteja preparado para aceitar possíveis perdas.
Lucius e Suzan não estavam lá, em nenhuma daquelas portas. Eles ainda estavam na Trilha.
—Eles vão conseguir.
—Esperamos que sim. As bênçãos dos Herdeiros farão falta, caso contrário. Precisamos de tudo o que tivermos para enfrentar a Decrépita e impedir que o Umbra se realize.
Sentado num banco imaginário, Sete Horas tirou um cigarro do ar e o acendeu nos dedos.
—Sente-se. Pode demorar.
Eu me larguei no chão que inexistia, permitindo-me respirar e apagar a irrealidade daquelas cenas de minha mente. Se um dia voltasse para a Terra de Cima, teria de me contentar com todas aquelas lembranças insanas, conviver com memórias de coisas que eu preferia desconhecer, como muitos outros desconhecem.
Uma porta ao longe se abriu, e por ela passou Lucius.
Ele quedou de imediato, arfando. Suava frio, abraçado às próprias pernas, trêmulo como uma criança após um filme de terror de baixa categoria, cujos sustos são inconsequentes e desnaturados. Eu queria oferecer apoio e forças, mas não os tinha nem mesmo para mim, portanto fiquei ali, inquieto, deitado em minha podridão.
Sete Horas não se moveu.
O tempo passava. Eu via os ponteiros girarem em seus olhos, sem parar.
Minutos, horas, dias.
—Teremos uma abertura em poucos instantes.
As palavras do Sr. Sete Horas foram ríspidas, servindo-me como o despertador que martela nossas cabeças ao amanhecer.
—Quantos anos duram poucos instantes?
—Apenas poucos instantes. Neste momento, poderemos sair daqui, partir para Paradiso e encontrar a Torre dos Murmúrios.
Olhei ao redor. Lucius ainda estava lá, aflito.
Nenhum sinal de Suzan.
—Suzan ainda não está aqui.
—Então torça para que ela esteja em poucos instantes.
Pigarreei, teimoso.
—Não vou sair daqui sem ela.
—É um orgulho tolo, Victor. Você e Lucius não a conheciam antes disso tudo.
—Mas agora a conhecemos, e é isso o quê importa! Sabemos que ela também tem alguém a esperando na Terra de Cima! Não vamos abandoná-la aqui, como uma indigente.
—Ó, mas vocês não a abandonaram! Todos tivemos chances iguais de cruzar a Trilha de Espinhos. Mesmo eu poderia fraquejar e oscilar diante do conhecimento que lá reside. Mas nós o fizemos, não foi? Eu, você, Lucius. Todos nós trespassamos aquele lugar amaldiçoado, e agora estamos aqui, guiados por pura força de vontade. Se ela não o fez, é erro dela, não de vocês.
—Vá se foder.
E me virei, destinado a adormecer por mais alguns poucos instantes.
Eu sabia que, no fundo, as palavras de Sete Horas eram verdadeiras.
Foi a voz dele que me despertou outra vez.
—Já é hora.
De encontro com uma visão turva, levantei-me zonzo, apoiado nas inúmeras portas que nos cercavam. Percebi que uma delas diferia de todas as outras: ela era pouco mais que uma fresta, pela qual uma luminosidade branda e azulada desbravava o local bizarro onde nos encontrávamos.
—Onde está Lucius?
—Estou aqui.
E estava. Ao meu lado, não recomposto, não bem disposto, não determinado. Mas estava.
—E Suzan?
Lucius baixou os olhos, tristonho.
—Ela não conseguiu.
Eu senti uma coisa estranha por dentro. Um aperto no coração, acho. Uma dor miúda, coisa que não soube explicar.
—Que pena.
Não chorei. Por dentro, algo me remoía o peito, me pressionava os pensamentos. Poderia ser tristeza, mas eu não a compreendia mais e, assim, não chorei.
O Sr. Sete Horas limpou a garganta.
—Não vamos perder mais tempo. A passagem logo se fechará. É a nossa única chance.
Ele foi o primeiro a passar por aquela fresta, seguido de perto por Lucius. Antes de prosseguir, virei-me para trás, olhando para todas aquelas portas, infinitas passagens por onde, na melhor das hipóteses, Suzan poderia passar, destruída por vislumbres de um inferno pessoal, porém viva.
Mas ela não passou, e eu fui embora sozinho.

—Sejam bem-vindos a Paradiso.
Eu sabia que aquele era o verdadeiro paraíso dos homens, a terra prometida, o milagre além de todas as vidas. Aquela era a terra da perfeição, a mais bela das imagens, o palco dos sonhos de infindáveis pessoas de infindáveis universos.
A visão do paraíso me fez vomitar.
Se uma única palavra poderia descrever Paradiso, esta era caos. Parecia um deserto de areia asquerosa, misturada ao lodo pantanoso da mais fétida floresta, coberta por pedras e vermes de cores e formas anormais. Corpos se empilhavam em todas as direções, e suas almas vagueavam nos arredores, gritantes, perdidas; algumas delas comemoravam. Sorriam e celebravam de olhos fechados, mas um dia a visão retornaria, e o paraíso que os alegrava seria aquele que eu via, aquele terror, aquele caos, e os sorrisos se perderiam nas lágrimas, a felicidade desapareceria na tristeza, a alegria seria corrompida pela dor.
Além das areias nauseantes, eu via casas e mais casas, todas elas distantes, e montanhas que mais pareciam amontoados de carne podre ou restos mortais; vendavais de sangue seco e cachoeiras de água envenenada eram somente alguns dos fenômenos aleatórios que ocorriam simultaneamente naquela terra pecadora. Juntos à tempestade de trovões escarlates, tudo parecia um circo de horrores.
Se aquele era o paraíso, eu sequer conseguia imaginar como seria o inferno.
—Este lugar não foi sempre assim. Mas o paraíso foi criado para benefício do homem, e ao homem foi destinado. O cultivo de tal terra tende a se escorar na vivência daquele a quem foi prometida, e o homem zombou da vida, dos outros, viveu no egoísmo e na ambição. Isto é o que restou do presente de Deus. Conseguem imaginar o mal que a sua raça fez para que o paraíso se tornasse essa aberração?
Eu era incapaz de discutir um assunto como aquele, e Lucius estava igualmente abalado. Em silêncio, seguimos caminhada, acompanhados dos sermões do Sr. Sete Horas que, de tão reais, pareciam socos em nossas faces.
Então ela surgiu, imponente.
Antes vista em silhueta, era agora imensamente devaneadora, fazendo parecer crianças chorosas as tartarugas-cavernas que vira há pouco. Inversa em proporções, o topo que realçou o horizonte no Pesadelo fincava-se ao solo, como lança, e todo o restante da construção se erguia como um monumento, um memorial, uma figura a ser idolatrada por povos que morreram, que existiam e que ainda nasceriam em todas as áreas de todos os mundos.
Ela estava inerte, mas respirava, como criatura viva, como aberração que era. Murmurava um chamado, um assombro, murmurava um pavor.
A Torre dos Murmúrios chiava um agouro de morte.
—É enorme!
O Sr. Sete Horas deixou escapar um riso de deboche.
—Construtivo seu comentário, Victor. Caso contrário, seríamos incapazes de perceber a monstruosidade de tal construção. Se me permitem, agora, tenham em mãos as bênçãos oferecidas pelos Herdeiros a todo tempo. Elas podem lhes salvar, bem como salvar o mundo de vocês.
Retirei de minhas vestes o emblema do Outono, pressionando-o com mãos trêmulas. Era difícil acreditar que algo de tamanha insignificância pudesse me oferecer um dom que homem algum seria capaz de acreditar.
Lucius se recusou.
—Eu não quero essa magia.
—Não a quer?
—De modo algum! Ela quase nos matou! Como posso confiar em algo que me feriu?
Sem hesitar, Lucius atirou o emblema da Primavera para longe de si, seguindo sem ele.
—Faça como quiser.
Não intencionalmente, não por ganância ou ambição, mas eu fui até o emblema e o peguei, respeitoso, guardando-o comigo para caso fosse necessário.
Uma escadaria surgiu à nossa frente, externa à Torre dos Murmúrios, tão fabulosa quanto a construção, com degraus cristalinos e encantados. Ela não fazia parte daquele cenário: nascera de Sete Horas, uma facilidade oferecida por seus poderes, por suas vontades.
—Tem algo errado.
Eu não sentia nada de diferente.
—Do que está falando?
—O ar está mais denso. Não percebem?
Fiz que não, Lucius também.
—Que seja.
Subimos.
O tempo passou, e nós subimos, subimos sem parar. Cada degrau nos exigia um esforço sem tamanho, um novo passo para o desconhecido, para o maior dos temores. Ali, no topo daquela escadaria, estava a salvação, mas também estava o desfecho, e nem todo final é feliz.
Eu pensava em Madeleine, em Marrie, mas também pensava em Suzan e Hector. Pensava em Wyrestown, sem saber o que esperar quando retornasse.
Sem saber nem mesmo se retornaria.
Diferente de dois dos meus companheiros, eu ainda tinha uma chance.
E, pensando assim, sequer percebi quando os degraus terminaram, e um imenso portão adornado com figuras bizarras nos recepcionou.
—Tem algo errado.
Sete Horas repetiu a afirmação, e agora eu também sentia.
O ar estava difícil de respirar.
—Nós ainda temos tempo. Decrépita não sabe onde está sua contraparte.
Ele não disse nada. Só respirou fundo e, com ambas as mãos, empurrou o portão metálico para trás, garantindo-nos a visão que destroçaria as esperanças de qualquer pessoa.
Lá estava Sofia.
Ambas as ruivas estavam no mesmo local, mas somente uma delas parecia bem. A outra estava amarrada, amordaçada e vendada, presa por correntes numa altura considerável do solo, balançando de um lado para o outro como um pêndulo irracional.
Abaixo dela, a Cega riscava o solo com uma pedra dourada, rabiscando uma figura que cintilava a cada nova forma, ganhando intensidade e tornando o ar mais pesado a cada novo risco.
Logo percebi que o quê ela desenhava era uma chave e, acima das correntes da Sofia da Terra de Cima, havia a imensa figura de uma fechadura.
A outra Sofia sorria, felicitada por nossa presença.
—Nunca antes houve espectadores.
—Não há nada para ser visto aqui.
O Sr. Sete Horas se livrou das vestes e do chapéu, deixando a mostra roupas soturnas, placas metálicas e cicatrizes amorfas por uma pele empalidecida ao limite. Os ponteiros em seus olhos giraram como ciclones, e então pararam, mais uma vez naquele horário, mais uma vez naquele tempo.
Sete Horas.
Eu pude sentir a dor de todo um povo. Pude sentir a vontade de se vingar, a vontade de existir outra vez, o desejo pela morte de um único ser, uma única entidade que livrou incontáveis vidas da existência. Sete Horas era a manifestação a vontade de um povo, de um mundo, e seu nome não era uma simples união de palavras: aquele era o horário do fim. O exato instante em que tudo deixou de existir, quando o Umbra se concretizou e a fome da Decrépita foi saciada, custando para isso uma infinidade de vidas.
A mágica do Sr. Sete Horas parecia mais densa do que o ar, descontrolada num frenesi animalesco.
—Agora é a sua hora de cair, criatura! Não mais levará consigo a destruição! Não mais carregará no corpo o espectro de todo meu povo!
A Decrépita não parecia se incomodar com a vingança de todo um mundo manifestada ali, à sua frente, na forma de um homem de olhos de ponteiros.
—Seus relógios estão atrasados, jovem. É tarde demais.
—Nunca é tarde demais.
E a magia explodiu, carregada de chamas revoltas num turbilhão, levada por um vendaval estridente, e no vento eu via olhos e bocas gritantes, almas e espectros de um povo poderoso, um povo que não mais seria capaz de existir.
A mágica nascia de um só homem, mas se originava em centenas, milhares, milhões.
A Torre dos Murmúrios se abalou com aquele poder, mas não cedeu. Suas paredes se estilhaçaram de imediato, mas nada ocorreu à fechadura que aguardava por sua chave, e a Cega continuou a desenhar, enquanto Sofia sacudia no ar, nas correntes, sem saber o que acontecia ao seu redor.
A magia era poderosa demais, descontrolada demais, e avançou sobre nós como se fôssemos aliados da Decrépita. Suspendi os braços numa falha tentativa de resistir, ainda que soubesse que era incapaz.
Ao fim, ainda estava lá, cercado por folhas e árvores.
O Outono me protegera.
—Lucius!
O emblema da Primavera em meu bolso me fez pensar o pior. Olhei ao redor, preocupado, mas não encontrei a imagem serena do professor. Havia destroços por todos os lados, paredes ruídas e marcas do conflito, mas nem sinal de Lucius.
—Merda!
Foi quando o céu oscilou, e eu percebi que algo estava errado.
O Sr. Sete Horas não percebeu que algo se aproximava. Nem mesmo Decrépita, Sofia ou a Cega, nenhuma delas se importou em olhar pelas imensas lacunas nas paredes da Torre dos Murmúrios para ver, voejando ao longe, uma criatura bestial, de asas deformadas e carne pútrida, soprar inferno e destruição para todas as direções.
E era um monstro, era um ser, mas antes disso, era um homem, um homem que eu odiava, um homem que fez o que fez por amar.
Cigano.

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