IX
Chegamos
a uma porta dupla.
A
caminhada até ali fora dificultada pelos ferimentos de Suzan, Lucius e Hector,
mas enfim chegamos à construção que vimos ao longe. Era um bar. Acima do arco
de entrada, num logotipo sem decoração alguma, estava escrita a palavra Pesadelo.
—Nós
chegamos, ok? Vai ficar tudo bem. Vai dar tudo certo.
Eu
falava por impulso, mas não tinha certeza de nada daquilo, muito menos
conseguia acreditar em minhas próprias palavras.
Antes
que eu pudesse pensar em agir, as portas de madeira se abriram como um convite,
deixando passar por elas um homem de costas largas, vestido num jeans surrado e
numa jaqueta de couro, cujo rosto se escondia sob uma máscara de búfalo.
Eu
recuei, assustado.
—Quem
é você?
Ele
não me respondeu. Desceu para nosso lado e, com apenas um braço, tirou Lucius e
Hector do chão, levando-os para dentro do local.
—Me
solta, seu touro filho da puta!
Mas
ele não soltou.
Escorando
Suzan para diminuir seu sofrimento, eu entrei no desconhecido.
Era
um bar. Um balcão se estendia por vários metros, tomado por cadeiras circulares
e sem encosto, pelo menos uma centena delas. Poucas estavam ocupadas, e cada um
de seus ocupantes era tão bizarro quanto o outro: uma mulher pálida de vestido
elegante e cabelo desarrumado; um homem com um nariz dividido ao meio, cujas
orelhas tinham perfurações do tamanho de um copo de vidro; um negro despido com
marcas brancas por toda a pele e quatro braços; uma mulher com cabelos trançado
e fios de serpentes, sibilantes e agressivas; entre outros.
Nenhum
deles se incomodou em olhar quem entrava. Sequer se moveram. Todos continuaram
a beber o que bebiam ou comer o que comiam, conversando sobre assuntos que eu
não compreendia, talvez pela distância e pelo som abafado do lugar, apesar de
acreditar fielmente que a língua utilizada por eles era outra.
O
homenzarrão postou Hector e Lucius numa cadeira afastada dos demais e partiu,
deixando-nos sozinhos de frente para ninguém.
—Que
lugar é esse?
Eu
falei num sussurro, o que não era de fato necessário.
Suzan,
cujos olhos ainda estavam marejados pela dor, disse somente com a expressão que
não fazia ideia de onde estávamos.
Do
outro lado do balcão, alguém se aproximou. Desfilou em passos provocantes, as
pernas e o torso demarcados por uma vestimenta colada. Tocou o balcão com suas
mãos delicadas e, por um momento, acreditei que ela tivesse sorrido, mas ela
não sorriu.
Não
o fez por não possuir um rosto para sorrir.
—Posso
ajudá-los?
Ela
falou sem ter uma boca, e nos fitou sem ter olhos.
—Quem
é você?
—A
Atendente. Posso ajudá-los?
—Meus
amigos estão feridos! Eles precisam de ajude, ou então —
—Não.
Eles não estão feridos. Eles estão sofrendo as consequências. Essa dor vai
passar, mas ela vai estar sempre ali, guardada no bolso. Vai voltar conforme
vocês fizerem mais do que podem fazer.
—Isso
quer dizer que —
—Eu
sou a Atendente. Posso ajudá-los?
Quem
era aquela mulher sem rosto?
—Onde
nós estamos?
—Aqui
é Pesadelo, a terra dos sonhos ruins.
—Estamos
sonhando?
—Não.
Os pesadelos que você sonha não são nada. Pesadelo é a terra dos pesadelos
reais. Você não sonha um sonho ruim, porque sonhos não existem.
—E
como chegamos aqui?
—Todo
mundo vem aqui com um propósito. É em Pesadelo que tudo se encontra e que tudo
se perde. Bebam. Isso é a vontade que lhes falta, e a incerteza que precisam.
Ela
nos ofereceu quatro cálices com uma bebida prateada e chamativa. Inseguro,
aproximei o cálice do rosto e provei da fragrância, adocicada e atraente.
Busquei nos olhos da Atendente a verdade ou mentira, mas não havia nada em seu
rosto, pois nem mesmo rosto havia.
Sem
pensar por muito tempo, eu e todos os outros bebemos.
O
gosto era absurdo. Ao provar daquela bebida, vi todo o lugar ruir ao meu redor,
o mundo todo contorcer-se numa dança melancólica e pavorosa, gritando como se
torturado pela eternidade. Eu não senti dor, mas sim um êxtase de existir, uma
energia que me fez acreditar que eu era tudo, o mundo todo, as águas do oceano
e o vento que acompanhar o céu, tudo mesmo. Eu sabia que não era. Sabia que não
era nada, na verdade. Mas a sensação era incrível, quase que indescritível,
ainda que o sabor fosse desastroso.
O
escuro se misturava a tantas cores quantas seria possível contar num programa
de computador, ainda mais, e elas aturdiam minha visão. As vozes cantavam e
sopravam coisas que eu não entendia, e somente algumas vezes algo naquele caos
parecia fazer sentido, e mesmo tal sentido era duvidoso.
—Vocês
estão perto do que procuram, mas longe do que desejam encontrar.
—A
verdade não está aqui.
—A
mentira é tão real.
—Acredite
no que te engana, ludibrie o que lhe parece verdade.
—Tudo
está na Casa dos Espelhos.
—O
reflexo mostra a resposta para a pergunta que não se faz.
—A
vida, a morte, o fim e o nunca mais.
—Um
recomeço existe em cada página virada.
—Tão
perto do que procuram.
—Tão
longe do que desejam.
Ouvi
um baque, e o mundo começou a tomar forma ao meu redor, mas tudo era caótico e
desconexo. Cores se perdiam no preto e branco, formas desalinhavam retas
curvadas e curvas retilíneas, um padrão destruído por infindáveis padrões
atirados uns sobre os outros.
Num
horizonte distante, ouvi o sino ressoar sete vezes, o mesmo sino que nos
despertou, que nos levou ao Pesadelo dos sonhos ruins.
No
horizonte, havia uma torre negra, uma construção de proporções infinitas que
por si só tinha o tamanho de um universo ou de vários, medidas que homem algum,
nem mesmo uma divindade se elas realmente existisse, seria capaz de proferir
com segurança.
A
torre era imensa e obscura e, no horizonte, entre o estrondo repetitivo dos
sinos, murmurava.
—Aquela
que quer destruir tudo tem de ser destruída. A Casa dos Espelhos vai mostrar o
que ninguém que ver. Os espelhos vão esconder o que todo mundo já sabe.
Então
tudo girou como um tufão, e parou de súbito quando as cores voltaram aos seus
lugares e as formas desenharam o que realmente existia.
Não
havia mais um bar, uma mulher sem rosto ou um homem com cabeça de búfalo.
Estávamos
outra vez em Wyrestown, numa rua que me era familiar.
A
rua do circo.
—O
que foi isso tudo?
A
pergunta veio de Lucius, e ele parecia bem. O ferimento em sua perna
desaparecera, bem como o braço incapaz de Hector ou as marcas gélidas nos
ombros de Suzan. Todos estavam bem outra vez, ou ao menos assim me pareceu num
primeiro momento.
Hector
quedou de joelho no chão.
—Eu
não aguento mais. Eu não aguento mais, sério! Eu quero voltar pra minha vida
antiga, pra vida que você roubou de mim nesse lugar! Foda-se se eu era um
inocente respondendo como assassino, foda-se se a cidade toda me via como um
monstro, foda-se tudo isso! Eu quero a minha vida de volta, porra! Isso é pedir
demais?!
Eu
queria dizer que tudo ficaria bem, como sempre disse, mas quem era eu para
dizer algo assim? Eu não estava bem. Eu, como Hector e todos os outros, queria
minha vida de volta, minha família, meu emprego, por pior que ele fosse. Eu
queria voltar, queria viver novamente, entender toda a situação, ainda que ela
fosse nojenta.
Para
isso, só tínhamos uma escolha.
—Temos
que matar essa vadia.
Suzan
engoliu em seco.
—A
Decrépita?
—Sim.
O único jeito de consertar toda essa merda é matando essa cretina.
—Ela
é uma entidade, Victor! Como vamos matar uma coisa que devora universos?!
A
pergunta me atingiu como um soco, e eu desnorteei ao tentar encontrar em minha
mente uma resposta plausível.
—Eu...
Eu não sei.
Lucius
interveio, e não existiria hora melhor do que aquela para suas palavras.
—Antes
de qualquer coisa, temos de saber quem ela é. Ela pode ser qualquer pessoa, mas
pode não ser ninguém. Pode estar em qualquer lugar.
Hector
se levantou, arfando. Seus olhos miravam a Cega.
—Ou
pode estar mais perto do que imaginamos.
Ela
riu.
A
filha da puta riu!
Eu
queria muito defendê-la, mas ela riu numa situação em que risadas não deveriam
existir.
—Não
se precipitem.
A
voz nos assustou.
Sob
os mantos escuros costumeiros, Sete Horas se aproximou, sem pressa.
—Ela
é uma chave. Nada mais.
—Seu
filho da mãe, onde você estava?!
—Procurando
o lugar que vocês acabaram encontrando sem procurar: a Casa dos Espelhos.
Parece ironia imaginar que tantas respostas residem num único espaço, não?
Ele
deu as costas a nós, iniciando seus passos na direção do circo. A tenda estava
apagada, e já não era utilizada há algum tempo, ao menos na Terra de Cima. As
coisas não pareciam tão diferentes ali. A construção ainda existia, mas nada me
fazia crer que os espetáculos continuaram a ser exibidos.
—Vocês
vêm?
Hector
explodiu.
—E
que outra escolha temos?! Nós vamos matar a vadia que nos tirou de nossas
vidas! Eu vou matá-la, se quer saber!
Vou abrir a sua garganta com as próprias mãos, e então eles podem me enfurnar
na porra de uma cela de prisão e me deixar apodrecer feliz, porque dessa vez eu
não serei um inocente!
Sete
Horas parou de caminhar. Os olhos de ponteiros nos encontraram.
—Se
é isso o que querem, sejam bem-vindos. Talvez vocês sejam heróis, no fim. Só
precisam acreditar mais nisso.
Eu
me aproximei de Sete Horas, os olhos determinados.
—Eu
não quero ser um herói. Mas se eu preciso ser alguma coisa para voltar para
casa, para ao menos ter uma chance de ver minha família outra vez, então que
seja!
—Me parecem um pouco
complexados. Eu admiro determinação. Grande parte dela tomba diante do primeiro
dos problemas, no entanto. Não me olhem agora. Olhem seus reflexos lá dentro.
Os olhos de vocês não têm ponteiros, mas têm verdades. Torço para que as
encontrem.
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