domingo, 3 de fevereiro de 2013

Estranhos no Espelho - Ato 4 / Parte IX


IX


Chegamos a uma porta dupla.
A caminhada até ali fora dificultada pelos ferimentos de Suzan, Lucius e Hector, mas enfim chegamos à construção que vimos ao longe. Era um bar. Acima do arco de entrada, num logotipo sem decoração alguma, estava escrita a palavra Pesadelo.
—Nós chegamos, ok? Vai ficar tudo bem. Vai dar tudo certo.
Eu falava por impulso, mas não tinha certeza de nada daquilo, muito menos conseguia acreditar em minhas próprias palavras.
Antes que eu pudesse pensar em agir, as portas de madeira se abriram como um convite, deixando passar por elas um homem de costas largas, vestido num jeans surrado e numa jaqueta de couro, cujo rosto se escondia sob uma máscara de búfalo.
Eu recuei, assustado.
—Quem é você?
Ele não me respondeu. Desceu para nosso lado e, com apenas um braço, tirou Lucius e Hector do chão, levando-os para dentro do local.
—Me solta, seu touro filho da puta!
Mas ele não soltou.
Escorando Suzan para diminuir seu sofrimento, eu entrei no desconhecido.
Era um bar. Um balcão se estendia por vários metros, tomado por cadeiras circulares e sem encosto, pelo menos uma centena delas. Poucas estavam ocupadas, e cada um de seus ocupantes era tão bizarro quanto o outro: uma mulher pálida de vestido elegante e cabelo desarrumado; um homem com um nariz dividido ao meio, cujas orelhas tinham perfurações do tamanho de um copo de vidro; um negro despido com marcas brancas por toda a pele e quatro braços; uma mulher com cabelos trançado e fios de serpentes, sibilantes e agressivas; entre outros.
Nenhum deles se incomodou em olhar quem entrava. Sequer se moveram. Todos continuaram a beber o que bebiam ou comer o que comiam, conversando sobre assuntos que eu não compreendia, talvez pela distância e pelo som abafado do lugar, apesar de acreditar fielmente que a língua utilizada por eles era outra.
O homenzarrão postou Hector e Lucius numa cadeira afastada dos demais e partiu, deixando-nos sozinhos de frente para ninguém.
—Que lugar é esse?
Eu falei num sussurro, o que não era de fato necessário.
Suzan, cujos olhos ainda estavam marejados pela dor, disse somente com a expressão que não fazia ideia de onde estávamos.
Do outro lado do balcão, alguém se aproximou. Desfilou em passos provocantes, as pernas e o torso demarcados por uma vestimenta colada. Tocou o balcão com suas mãos delicadas e, por um momento, acreditei que ela tivesse sorrido, mas ela não sorriu.
Não o fez por não possuir um rosto para sorrir.
—Posso ajudá-los?
Ela falou sem ter uma boca, e nos fitou sem ter olhos.
—Quem é você?
—A Atendente. Posso ajudá-los?
—Meus amigos estão feridos! Eles precisam de ajude, ou então —
—Não. Eles não estão feridos. Eles estão sofrendo as consequências. Essa dor vai passar, mas ela vai estar sempre ali, guardada no bolso. Vai voltar conforme vocês fizerem mais do que podem fazer.
—Isso quer dizer que —
—Eu sou a Atendente. Posso ajudá-los?
Quem era aquela mulher sem rosto?
—Onde nós estamos?
—Aqui é Pesadelo, a terra dos sonhos ruins.
—Estamos sonhando?
—Não. Os pesadelos que você sonha não são nada. Pesadelo é a terra dos pesadelos reais. Você não sonha um sonho ruim, porque sonhos não existem.
—E como chegamos aqui?
—Todo mundo vem aqui com um propósito. É em Pesadelo que tudo se encontra e que tudo se perde. Bebam. Isso é a vontade que lhes falta, e a incerteza que precisam.
Ela nos ofereceu quatro cálices com uma bebida prateada e chamativa. Inseguro, aproximei o cálice do rosto e provei da fragrância, adocicada e atraente. Busquei nos olhos da Atendente a verdade ou mentira, mas não havia nada em seu rosto, pois nem mesmo rosto havia.
Sem pensar por muito tempo, eu e todos os outros bebemos.
O gosto era absurdo. Ao provar daquela bebida, vi todo o lugar ruir ao meu redor, o mundo todo contorcer-se numa dança melancólica e pavorosa, gritando como se torturado pela eternidade. Eu não senti dor, mas sim um êxtase de existir, uma energia que me fez acreditar que eu era tudo, o mundo todo, as águas do oceano e o vento que acompanhar o céu, tudo mesmo. Eu sabia que não era. Sabia que não era nada, na verdade. Mas a sensação era incrível, quase que indescritível, ainda que o sabor fosse desastroso.
O escuro se misturava a tantas cores quantas seria possível contar num programa de computador, ainda mais, e elas aturdiam minha visão. As vozes cantavam e sopravam coisas que eu não entendia, e somente algumas vezes algo naquele caos parecia fazer sentido, e mesmo tal sentido era duvidoso.
—Vocês estão perto do que procuram, mas longe do que desejam encontrar.
—A verdade não está aqui.
—A mentira é tão real.
—Acredite no que te engana, ludibrie o que lhe parece verdade.
—Tudo está na Casa dos Espelhos.
—O reflexo mostra a resposta para a pergunta que não se faz.
—A vida, a morte, o fim e o nunca mais.
—Um recomeço existe em cada página virada.
—Tão perto do que procuram.
—Tão longe do que desejam.
Ouvi um baque, e o mundo começou a tomar forma ao meu redor, mas tudo era caótico e desconexo. Cores se perdiam no preto e branco, formas desalinhavam retas curvadas e curvas retilíneas, um padrão destruído por infindáveis padrões atirados uns sobre os outros.
Num horizonte distante, ouvi o sino ressoar sete vezes, o mesmo sino que nos despertou, que nos levou ao Pesadelo dos sonhos ruins.
No horizonte, havia uma torre negra, uma construção de proporções infinitas que por si só tinha o tamanho de um universo ou de vários, medidas que homem algum, nem mesmo uma divindade se elas realmente existisse, seria capaz de proferir com segurança.
A torre era imensa e obscura e, no horizonte, entre o estrondo repetitivo dos sinos, murmurava.
—Aquela que quer destruir tudo tem de ser destruída. A Casa dos Espelhos vai mostrar o que ninguém que ver. Os espelhos vão esconder o que todo mundo já sabe.
Então tudo girou como um tufão, e parou de súbito quando as cores voltaram aos seus lugares e as formas desenharam o que realmente existia.
Não havia mais um bar, uma mulher sem rosto ou um homem com cabeça de búfalo.
Estávamos outra vez em Wyrestown, numa rua que me era familiar.
A rua do circo.
—O que foi isso tudo?
A pergunta veio de Lucius, e ele parecia bem. O ferimento em sua perna desaparecera, bem como o braço incapaz de Hector ou as marcas gélidas nos ombros de Suzan. Todos estavam bem outra vez, ou ao menos assim me pareceu num primeiro momento.
Hector quedou de joelho no chão.
—Eu não aguento mais. Eu não aguento mais, sério! Eu quero voltar pra minha vida antiga, pra vida que você roubou de mim nesse lugar! Foda-se se eu era um inocente respondendo como assassino, foda-se se a cidade toda me via como um monstro, foda-se tudo isso! Eu quero a minha vida de volta, porra! Isso é pedir demais?!
Eu queria dizer que tudo ficaria bem, como sempre disse, mas quem era eu para dizer algo assim? Eu não estava bem. Eu, como Hector e todos os outros, queria minha vida de volta, minha família, meu emprego, por pior que ele fosse. Eu queria voltar, queria viver novamente, entender toda a situação, ainda que ela fosse nojenta.
Para isso, só tínhamos uma escolha.
—Temos que matar essa vadia.
Suzan engoliu em seco.
—A Decrépita?
—Sim. O único jeito de consertar toda essa merda é matando essa cretina.
—Ela é uma entidade, Victor! Como vamos matar uma coisa que devora universos?!
A pergunta me atingiu como um soco, e eu desnorteei ao tentar encontrar em minha mente uma resposta plausível.
—Eu... Eu não sei.
Lucius interveio, e não existiria hora melhor do que aquela para suas palavras.
—Antes de qualquer coisa, temos de saber quem ela é. Ela pode ser qualquer pessoa, mas pode não ser ninguém. Pode estar em qualquer lugar.
Hector se levantou, arfando. Seus olhos miravam a Cega.
—Ou pode estar mais perto do que imaginamos.
Ela riu.
A filha da puta riu!
Eu queria muito defendê-la, mas ela riu numa situação em que risadas não deveriam existir.
—Não se precipitem.
A voz nos assustou.
Sob os mantos escuros costumeiros, Sete Horas se aproximou, sem pressa.
—Ela é uma chave. Nada mais.
—Seu filho da mãe, onde você estava?!
—Procurando o lugar que vocês acabaram encontrando sem procurar: a Casa dos Espelhos. Parece ironia imaginar que tantas respostas residem num único espaço, não?
Ele deu as costas a nós, iniciando seus passos na direção do circo. A tenda estava apagada, e já não era utilizada há algum tempo, ao menos na Terra de Cima. As coisas não pareciam tão diferentes ali. A construção ainda existia, mas nada me fazia crer que os espetáculos continuaram a ser exibidos.
—Vocês vêm?
Hector explodiu.
—E que outra escolha temos?! Nós vamos matar a vadia que nos tirou de nossas vidas! Eu vou matá-la, se quer saber! Vou abrir a sua garganta com as próprias mãos, e então eles podem me enfurnar na porra de uma cela de prisão e me deixar apodrecer feliz, porque dessa vez eu não serei um inocente!
Sete Horas parou de caminhar. Os olhos de ponteiros nos encontraram.
—Se é isso o que querem, sejam bem-vindos. Talvez vocês sejam heróis, no fim. Só precisam acreditar mais nisso.
Eu me aproximei de Sete Horas, os olhos determinados.
—Eu não quero ser um herói. Mas se eu preciso ser alguma coisa para voltar para casa, para ao menos ter uma chance de ver minha família outra vez, então que seja!
—Me parecem um pouco complexados. Eu admiro determinação. Grande parte dela tomba diante do primeiro dos problemas, no entanto. Não me olhem agora. Olhem seus reflexos lá dentro. Os olhos de vocês não têm ponteiros, mas têm verdades. Torço para que as encontrem.

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