X
As
portas se abriram diante do Sr. Sete Horas, e o escuro nos privou de grande
parte da visão.
Uma
luz se acendeu em algum lugar que eu era incapaz de decifrar, oferecida pelo
dom mágico daquela manifestação de um povo que sofrera o extermínio nas mãos da
mesma entidade que assolava nossas vidas.
Eu
me perguntava sobre a magia de Sete Horas, se ela também não lhe causara males como
aqueles que atingiram Hector, Lucius e Suzan, e só então parei para pensar em
suas deformações, na imagem bizarra de seus olhos, no passado enegrecido que
ele carregava. O que mais a magia poderia fazer de ruim àquele ser?
Foi
quando, distraído por pensamentos distintos e inexplicáveis, eu me surpreendi
pela primeira imagem turva a me cercar.
Ela
era eu, e eu era ela: um espelho. O primeiro de muitos, obviamente, já que tal
lugar era um construção destinada a assombrar crianças com imagens mutiladas que
se refletiam infinitamente. Escutando o som dos passos de doze pés, assisti os
meus olhos, minha expressão com certo teor de pavor, meu corpo que, daquele
lado do misticismo, pertencia a um outro eu.
—O
que exatamente estamos procurando?
Sete
Horas me respondeu como quem responde a uma pergunta infantil, livrando-se da
obrigação de explicar melhor o que já deveria ser óbvio.
—Respostas.
Só isso.
Enquanto
todos caminhavam, eu me permiti parar de frente a um dos reflexos. Lá estava
eu, exausto, incapaz de descansar por um único dia sem que o mundo desabasse em
minha mente. Os olhos tinham olheiras, as roupas estavam sujas pelo fogo que
apagara do braço de Hector anteriormente, a pele tinha marcas pela fantasia que
ocorria ao nosso redor. Era eu, uma imagem, e dessa vez a minha imagem, diferente do reflexo que, no início de tudo, mostrara
um rosto que eu não consegui reconhecer.
Agora,
o rosto era o meu, mas o mundo não o era, e eu me perguntava qual das opções
era a pior.
—Você
não sabe, Victor?
Olhei
ao meu redor: escuro, mais nada.
—Quem
está aí?
—Não
aí. Aqui.
Os
lábios se moviam sem que os meus se movessem, e assim também o faziam os braços
e os olhos, piscando vagarosamente por vezes, então velozes como um vício de
nervosismo.
Quem
falava era o espelho.
Era
eu, mas não era eu. Um outro eu, talvez. Eu já não mais suportava essa ideia de
outros nós. Quantos outros de mim
encontraria, quantas realidades teria de ver?
—Ah.
Claro. Estou falando com um espelho agora.
—Não
com um espelho qualquer. É o seu espelho.
É você. Sou eu. Somos nós.
—Não,
você não entendeu. Não somos nós. Eu
sou eu, você é você. Aliás, você é um espelho. Se possível, cale a boca, como
um espelho faz.
Ele
riu em deboche, deixando-se cair numa grande gargalhada posteriormente. Sem
respeito algum, coçou as virilhas de maneira desajeitada.
—Às
vezes as coisas estão na nossa frente, no reflexo, e mesmo assim nós não
conseguimos vê-las, não é? Como um espelho. Você tem um mundo inteiro para ver,
mas vê somente a si mesmo. É o mesmo espelho que pode refletir um universo, ou
uma devoradora de universos, mas ele
reflete você, e você, por impaciência ou fraqueza mental, se contenta com isso,
e tudo está bem, obrigado.
Eu
coloquei as mãos no bolso dentro do espelho, mas eu tinha as minhas mãos para
fora das roupas ali, e o frio as incomodava. Decidi que não repetiria o
movimento do reflexo, ou logo me perderia na classificação de quem era o real e
quem era o espelhado.
—Não
gosto de filosofia.
—Não
sou um filósofo. Sou um reflexo.
—Um
reflexo?
Olhei
para os lados, imaginando se meus companheiros de insanidade estariam passando
pelo mesmo que eu, ou mesmo se estariam me observando com ironia, zombando da
loucura que me parecia conversar com um espelho.
—Um
agente bancário, um assassino de esposas. O que sou eu, Victor? O que somos nós?
Ao
meu lado, ninguém; à minha frente, eu mesmo.
Ou
era eu à frente de Victor?
—Um
reflexo.
—Você
é? Eu não. Eu sou verdade. Eu sou realidade, sou eu mesmo. E você?
—Pare
de tentar me enganar! Eu sou o Victor, o pai da —
Engoli
em seco.
Como
era mesmo o nome de minha filha?
Como
era mesmo o nome de minha esposa? Como era o nome do amigo?
Como
era o meu nome?
—Quem
é você, homem?
Respirei
fundo, colocando as mãos nos bolsos, como o verdadeiro Victor fazia, pois é
isso o que os reflexos fazem: imitam.
—Victor
Fulcanelli.
Uma
resposta ríspida, e junto dela um golpe súbito, um soco desprotegido que fez
estilhaçar todo aquele espelho, destruindo o reflexo que me confundia para que
nada além de seu sorriso malicioso restasse.
—Eu
sou o único Victor Fulcanelli, maldito.
E
eu era o único.
Ao
longe, um grito feminino.
Quem
era? Suzan? A Cega?
O
grito ecoava.
Eu
corri, temeroso, escorei-me nos espelhos para que mantivesse o equilíbrio que o
solo disforme me tirava. A mão sangrava, mas eu não percebi de imediato e,
quando vi, o ferimento já estava feio demais, um corte que demoraria anos para
sarar, garantindo-me uma cicatriz macabra para o resto de meus dias.
Gritos
e gritos, mais altos, mais agudos.
—Suzan!
Sem
resposta.
—Hector!
Lucius!
Nada.
—Sr.
Sete Horas!
Nem
mesmo ele.
—Onde
estão vocês?
O
escuro era claro, mas de que me adianta enxergar quando nada havia para ser
visto?
Foi
então que percebi.
Tudo
ao meu redor eram reflexos. Tudo se refletia, todas as imagens se contorciam,
umas contra as outras, tudo se confundia num turbilhão de formas espelhadas.
Eu
me movia num só lugar, e ao mesmo tempo me movia em todas as paredes, no solo e
no teto, em tudo, e assim nada era decifrável num amontoado de coexistências.
Os olhos não me eram úteis. Ver não
era útil.
Parei,
e todos os espelhos pararam junto de mim, mas os gritos continuaram. Abandonei
a visão, fechando os olhos para que o ato de respirar se tornasse tão
meticuloso quanto o ágil movimento de uma mosca que sobrevoava minhas narinas.
Sem que pudesse ver, ouvi, e ouvindo me deparei com a localização daqueles
gritos.
Joguei
o corpo contra um dos espelhos, estilhaçando-o numa queda que me cortou
parcialmente o braço e o torso, deixando o sangue correr livre pelas roupas.
—Apareçam!
Eu
não era o único ferido naquele lugar. Além de mim, todos tinham o sangue em
seus corpos, alguns ainda mais. Hector se abraçava às pernas, choramingava como
criança, gaguejava surpreso por uma visão que mutilara parte de sua alma e suas
crenças. Ao lado, Suzan tinha sangue no rosto, um corte na testa demarcando sua
pele delicada, e Lucius gritava em descontrole.
A
Cega não estava lá.
Sete
Horas era o único que não se alterara. Ele olhava para todos os lados, para
inúmeros reflexos de seus ponteiros, como se procurasse por algo, por alguém.
—Onde
ela está?
Eu
perguntei, mas de que isso adiantava?
—Ela
se foi.
Sete
Horas respondeu com certo pesar.
—Se
foi?
—Nós
a perdemos. Ela se foi, Victor.
—Mas
como —
Um
dos espelhos se quebrou, deixando chover vidro sobre nós. Me protegi da maneira
que me foi possível, mas Hector não o fez, e seus braços e pernas foram
presenteados por peças miúdas da tormenta que nos assolara.
—O
que é aquilo?
Lucius
apontou, e todos os olhos se voltaram para o mais distante dos espelhos, e ele
mostrava aquilo que Sete Horas tanto procurava.
A
verdade.
Ali
estavam dois olhos, um sorriso mirabolante, um nariz mundano, um corpo
chamativo. Uma mulher, e era familiar, e me parecia um erro vê-la ali, daquele
jeito, sabendo que ela antes esteve ao nosso lado, presente e quase doente,
perdida na mesma confusão que, de tanto nos golpear, fez com que esquecêssemos
daquele nome, daquela voz, daquele rosto.
Sofia.
Ela
ficara para trás, no hospital, passando por uma cirurgia pelo ferimento que a
criatura que Hector enfrentara causara em sua cabeça. Desde então, todos os
acontecimentos que aconteceram numa sequência surreal foram tão intensos que
sequer tivemos tempo de pensar em seu estado, em sua recuperação. Nos
esquecemos dela, e agora ela estava ali, refletida, mas não era ela.
Era
outra Sofia.
Ela
tinha um sorriso macabro, olhos perversos e uma expressão doentia. Não parecia
a mulher que vimos caminhar nas ruas ao lado de outra mulher. Não parecia a
bela patricinha que, mesmo no outro lado, ainda me parecia nojenta demais para
se amar.
Ela
era o terror. Em seus olhos, pude ver o sofrimento de tantos mundos, ouvir o
grito de tantas mortes, sentir o medo de infindáveis inocentes que jaziam sem
entender o que lhes acontecia. Em seu rosto eu via a fome, a fome de universos,
a vontade de devorar tudo e todos, de levá-los à inexistência, apagar tudo o
que um dia fora alguma coisa.
Aquela
era outra Sofia.
E
a outra Sofia era a Decrépita.
—Não
pode ser!
Eu
gritei, mas gritar de nada adiantaria.
Todos
os espelhos estouraram de uma só vez, e a construção todo tremulou, prestes a
desabar.
—Precisamos
sair daqui!
Sete
Horas falou como uma ordem, e eu assenti, correndo até Suzan. Ela se levantou
de imediato, parecendo melhor do que eu esperava que estivesse.
—A
garota sumiu, Victor!
—Não
podemos fazer nada agora, temos que sair daqui!
Ela
concordou, e então correu na direção de Lucius, partindo para fora do lugar. Eu
os seguia, e só então me lembrei de Hector. Voltei, o chão oscilando sob meus
pés, a morte cada vez mais perto.
—Vamos,
Hector! Temos que sair daqui!
Ele
sequer pareceu me escutar. Manteve os olhos focados no solo, inertes e sem
brilho, como alguém que tem os sonhos destruídos, as vontades pisoteadas por
uma malícia sem fim.
—Hector,
vamos!
—Eu
não vou.
Sua
voz soou baixa e calma, muito diferente do normal.
—Como
assim não vai? Nós vamos morrer se ficarmos aqui, cara!
—Sim,
eu sei. E foi isso o que eu escolhi. Eu não vou, Victor. Vocês podem salvar o
mundo e voltar. Eu já não tenho mais razão para fazer isso.
—Do
que você tá falando?! Cara, a gente tem uma vida lá na Terra de Cima, você não
pode desistir agora!
Hector
me fitou, e seus olhos demonstravam os últimos resquícios de uma esperança
tola.
—Fui
eu.
—O
que?
—Fui
eu quem a matou, Victor. O espelho me mostrou. Eu não sou inocente.
—Mas
que —
—Eu
não quero voltar e encarar isso. Ver o caixão dela e ter de assumir que fui eu
o responsável por sua morte não é algo que vá me fazer feliz. Eu sinto muito se
vocês contavam comigo. Eu só quero —
Antes
que ele terminasse sua frase, eu o soquei, e o supercílio sangrou de imediato.
—O
que você fez não é importante, Hector! Você tem uma vida toda para se
arrepender e fazer por merecer! Vai deixar toda essa oportunidade passar em
branco?
Hector
se levantou, sem pressa.
Então
ele me socou, e eu senti um peso extremo naquele soco, um peso de quem carrega
um fardo que poucas pessoas seriam capazes de carregar, de quem sustenta uma
vontade que já não mais existe.
—Eu
matei a mulher que eu amava, cara. Eu sou um tremendo filho da puta. Mas se
você ficar aqui e morrer comigo, vou te achar ainda mais escroto do que eu. Você
tem uma família lá em cima, uma esposa gentil e uma filha linda! Ninguém vai
sentir a minha falta, merda! Elas vão sentir a sua! Vão chorar no seu enterro,
e a porra do seu caixão não vai ter nem mesmo um corpo para velar! É isso o que
você quer?!
O
silêncio foi tudo o que me restou.
—Então
vá embora daqui, seu merda.
Deixei
uma lágrima escapar.
—Você
é foda, Hector.
Ele
sorriu uma última vez.
—Eu
sei. Você não é. Mas quem sabe chega lá um dia.
Eu
me virei e, sem olhar para trás (parte para evitar o arrependimento, parte para
impedir que ele me visse chorar), corri, deixando a Casa de Espelhos para trás.
—Onde
está Hector?
Lucius
foi o primeiro a perguntar, e Suzan se aproximou, indagando-me com os olhos.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Sete Horas interveio.
—Morto,
como todos vocês estarão caso percam mais tempo nesse lugar.
—Morto?!
Como assim morto?!
—Ele
escolheu isso, Suzan. Ele viu a verdade sobre a morte da esposa. Ele... Ele é o
culpado.
Suzan
cobriu a boca com as mãos, surpresa.
Lucius
se sentou, chocado.
—Sofia
estava naquele espelho, Victor. Ela não pode ser —
O
Sr. Sete Horas admirou enquanto todo o lugar desmoronava atrás de nós.
—Sofia
é seu nome, então? A amiga de vocês é a contraparte da Decrépita. A outra dela é a verdadeira, a nossa
adversária, aquela que devemos exterminar.
—E
a garota?
—Ela
foi levada. A Cega é a chave e, nas mãos da Decrépita, juntamente de sua
contraparte, é o necessário para que o Umbra se realize. Temos que impedir que
ela chegue à Torre dos Murmúrios ou tudo vai estar perdido.
—E
onde fica essa torre?!
—Ela
pode estar em qualquer lugar desse universo.
—Merda...
Espere!
Em
minha mente confusa, a imagem de Pesadelo, o bar da Atendente sem rosto, girava
sem parar, e ao fundo, num horizonte negro e perverso, uma torre que me parecia
infinita se estendia.
—O
que?
—Eu
vi essa torre no Pesadelo! Tem que ser ela!
—É
impossível alcançar algum lugar pelo Pesadelo!
Aplausos.
As
palmas esgotaram nosso raciocínio. Surgiram estrondosas, e então diminuíram até
que se esgotassem.
—Há
somente uma entrada para o que procuram, meus caros: Paradiso. Uma entrada que,
por sorte, vocês ensinaram à chave necessária para que a Decrépita pudesse
concluir sua alimentação.
Aquela
era uma voz familiar e, antes mesmo que eu me virasse para encarar aquele rosto
que então se tornara odiável, pude definir quem era.
Cigano.
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