domingo, 3 de fevereiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 4 / Ato X


X


As portas se abriram diante do Sr. Sete Horas, e o escuro nos privou de grande parte da visão.
Uma luz se acendeu em algum lugar que eu era incapaz de decifrar, oferecida pelo dom mágico daquela manifestação de um povo que sofrera o extermínio nas mãos da mesma entidade que assolava nossas vidas.
Eu me perguntava sobre a magia de Sete Horas, se ela também não lhe causara males como aqueles que atingiram Hector, Lucius e Suzan, e só então parei para pensar em suas deformações, na imagem bizarra de seus olhos, no passado enegrecido que ele carregava. O que mais a magia poderia fazer de ruim àquele ser?
Foi quando, distraído por pensamentos distintos e inexplicáveis, eu me surpreendi pela primeira imagem turva a me cercar.
Ela era eu, e eu era ela: um espelho. O primeiro de muitos, obviamente, já que tal lugar era um construção destinada a assombrar crianças com imagens mutiladas que se refletiam infinitamente. Escutando o som dos passos de doze pés, assisti os meus olhos, minha expressão com certo teor de pavor, meu corpo que, daquele lado do misticismo, pertencia a um outro eu.
—O que exatamente estamos procurando?
Sete Horas me respondeu como quem responde a uma pergunta infantil, livrando-se da obrigação de explicar melhor o que já deveria ser óbvio.
—Respostas. Só isso.
Enquanto todos caminhavam, eu me permiti parar de frente a um dos reflexos. Lá estava eu, exausto, incapaz de descansar por um único dia sem que o mundo desabasse em minha mente. Os olhos tinham olheiras, as roupas estavam sujas pelo fogo que apagara do braço de Hector anteriormente, a pele tinha marcas pela fantasia que ocorria ao nosso redor. Era eu, uma imagem, e dessa vez a minha imagem, diferente do reflexo que, no início de tudo, mostrara um rosto que eu não consegui reconhecer.
Agora, o rosto era o meu, mas o mundo não o era, e eu me perguntava qual das opções era a pior.
—Você não sabe, Victor?
Olhei ao meu redor: escuro, mais nada.
—Quem está aí?
—Não . Aqui.
Os lábios se moviam sem que os meus se movessem, e assim também o faziam os braços e os olhos, piscando vagarosamente por vezes, então velozes como um vício de nervosismo.
Quem falava era o espelho.
Era eu, mas não era eu. Um outro eu, talvez. Eu já não mais suportava essa ideia de outros nós. Quantos outros de mim encontraria, quantas realidades teria de ver?
—Ah. Claro. Estou falando com um espelho agora.
—Não com um espelho qualquer. É o seu espelho. É você. Sou eu. Somos nós.
—Não, você não entendeu. Não somos nós. Eu sou eu, você é você. Aliás, você é um espelho. Se possível, cale a boca, como um espelho faz.
Ele riu em deboche, deixando-se cair numa grande gargalhada posteriormente. Sem respeito algum, coçou as virilhas de maneira desajeitada.
—Às vezes as coisas estão na nossa frente, no reflexo, e mesmo assim nós não conseguimos vê-las, não é? Como um espelho. Você tem um mundo inteiro para ver, mas vê somente a si mesmo. É o mesmo espelho que pode refletir um universo, ou uma devoradora de universos, mas ele reflete você, e você, por impaciência ou fraqueza mental, se contenta com isso, e tudo está bem, obrigado.
Eu coloquei as mãos no bolso dentro do espelho, mas eu tinha as minhas mãos para fora das roupas ali, e o frio as incomodava. Decidi que não repetiria o movimento do reflexo, ou logo me perderia na classificação de quem era o real e quem era o espelhado.
—Não gosto de filosofia.
—Não sou um filósofo. Sou um reflexo.
—Um reflexo?
Olhei para os lados, imaginando se meus companheiros de insanidade estariam passando pelo mesmo que eu, ou mesmo se estariam me observando com ironia, zombando da loucura que me parecia conversar com um espelho.
—Um agente bancário, um assassino de esposas. O que sou eu, Victor? O que somos nós?
Ao meu lado, ninguém; à minha frente, eu mesmo.
Ou era eu à frente de Victor?
—Um reflexo.
—Você é? Eu não. Eu sou verdade. Eu sou realidade, sou eu mesmo. E você?
—Pare de tentar me enganar! Eu sou o Victor, o pai da —
Engoli em seco.
Como era mesmo o nome de minha filha?
Como era mesmo o nome de minha esposa? Como era o nome do amigo?
Como era o meu nome?
—Quem é você, homem?
Respirei fundo, colocando as mãos nos bolsos, como o verdadeiro Victor fazia, pois é isso o que os reflexos fazem: imitam.
—Victor Fulcanelli.
Uma resposta ríspida, e junto dela um golpe súbito, um soco desprotegido que fez estilhaçar todo aquele espelho, destruindo o reflexo que me confundia para que nada além de seu sorriso malicioso restasse.
—Eu sou o único Victor Fulcanelli, maldito.
E eu era o único.
Ao longe, um grito feminino.
Quem era? Suzan? A Cega?
O grito ecoava.
Eu corri, temeroso, escorei-me nos espelhos para que mantivesse o equilíbrio que o solo disforme me tirava. A mão sangrava, mas eu não percebi de imediato e, quando vi, o ferimento já estava feio demais, um corte que demoraria anos para sarar, garantindo-me uma cicatriz macabra para o resto de meus dias.
Gritos e gritos, mais altos, mais agudos.
—Suzan!
Sem resposta.
—Hector! Lucius!
Nada.
—Sr. Sete Horas!
Nem mesmo ele.
—Onde estão vocês?
O escuro era claro, mas de que me adianta enxergar quando nada havia para ser visto?
Foi então que percebi.
Tudo ao meu redor eram reflexos. Tudo se refletia, todas as imagens se contorciam, umas contra as outras, tudo se confundia num turbilhão de formas espelhadas.
Eu me movia num só lugar, e ao mesmo tempo me movia em todas as paredes, no solo e no teto, em tudo, e assim nada era decifrável num amontoado de coexistências. Os olhos não me eram úteis. Ver não era útil.
Parei, e todos os espelhos pararam junto de mim, mas os gritos continuaram. Abandonei a visão, fechando os olhos para que o ato de respirar se tornasse tão meticuloso quanto o ágil movimento de uma mosca que sobrevoava minhas narinas. Sem que pudesse ver, ouvi, e ouvindo me deparei com a localização daqueles gritos.
Joguei o corpo contra um dos espelhos, estilhaçando-o numa queda que me cortou parcialmente o braço e o torso, deixando o sangue correr livre pelas roupas.
—Apareçam!
Eu não era o único ferido naquele lugar. Além de mim, todos tinham o sangue em seus corpos, alguns ainda mais. Hector se abraçava às pernas, choramingava como criança, gaguejava surpreso por uma visão que mutilara parte de sua alma e suas crenças. Ao lado, Suzan tinha sangue no rosto, um corte na testa demarcando sua pele delicada, e Lucius gritava em descontrole.
A Cega não estava lá.
Sete Horas era o único que não se alterara. Ele olhava para todos os lados, para inúmeros reflexos de seus ponteiros, como se procurasse por algo, por alguém.
—Onde ela está?
Eu perguntei, mas de que isso adiantava?
—Ela se foi.
Sete Horas respondeu com certo pesar.
—Se foi?
—Nós a perdemos. Ela se foi, Victor.
—Mas como —
Um dos espelhos se quebrou, deixando chover vidro sobre nós. Me protegi da maneira que me foi possível, mas Hector não o fez, e seus braços e pernas foram presenteados por peças miúdas da tormenta que nos assolara.
—O que é aquilo?
Lucius apontou, e todos os olhos se voltaram para o mais distante dos espelhos, e ele mostrava aquilo que Sete Horas tanto procurava.
A verdade.
Ali estavam dois olhos, um sorriso mirabolante, um nariz mundano, um corpo chamativo. Uma mulher, e era familiar, e me parecia um erro vê-la ali, daquele jeito, sabendo que ela antes esteve ao nosso lado, presente e quase doente, perdida na mesma confusão que, de tanto nos golpear, fez com que esquecêssemos daquele nome, daquela voz, daquele rosto.
Sofia.
Ela ficara para trás, no hospital, passando por uma cirurgia pelo ferimento que a criatura que Hector enfrentara causara em sua cabeça. Desde então, todos os acontecimentos que aconteceram numa sequência surreal foram tão intensos que sequer tivemos tempo de pensar em seu estado, em sua recuperação. Nos esquecemos dela, e agora ela estava ali, refletida, mas não era ela.
Era outra Sofia.
Ela tinha um sorriso macabro, olhos perversos e uma expressão doentia. Não parecia a mulher que vimos caminhar nas ruas ao lado de outra mulher. Não parecia a bela patricinha que, mesmo no outro lado, ainda me parecia nojenta demais para se amar.
Ela era o terror. Em seus olhos, pude ver o sofrimento de tantos mundos, ouvir o grito de tantas mortes, sentir o medo de infindáveis inocentes que jaziam sem entender o que lhes acontecia. Em seu rosto eu via a fome, a fome de universos, a vontade de devorar tudo e todos, de levá-los à inexistência, apagar tudo o que um dia fora alguma coisa.
Aquela era outra Sofia.
E a outra Sofia era a Decrépita.
—Não pode ser!
Eu gritei, mas gritar de nada adiantaria.
Todos os espelhos estouraram de uma só vez, e a construção todo tremulou, prestes a desabar.
—Precisamos sair daqui!
Sete Horas falou como uma ordem, e eu assenti, correndo até Suzan. Ela se levantou de imediato, parecendo melhor do que eu esperava que estivesse.
—A garota sumiu, Victor!
—Não podemos fazer nada agora, temos que sair daqui!
Ela concordou, e então correu na direção de Lucius, partindo para fora do lugar. Eu os seguia, e só então me lembrei de Hector. Voltei, o chão oscilando sob meus pés, a morte cada vez mais perto.
—Vamos, Hector! Temos que sair daqui!
Ele sequer pareceu me escutar. Manteve os olhos focados no solo, inertes e sem brilho, como alguém que tem os sonhos destruídos, as vontades pisoteadas por uma malícia sem fim.
—Hector, vamos!
—Eu não vou.
Sua voz soou baixa e calma, muito diferente do normal.
—Como assim não vai? Nós vamos morrer se ficarmos aqui, cara!
—Sim, eu sei. E foi isso o que eu escolhi. Eu não vou, Victor. Vocês podem salvar o mundo e voltar. Eu já não tenho mais razão para fazer isso.
—Do que você tá falando?! Cara, a gente tem uma vida lá na Terra de Cima, você não pode desistir agora!
Hector me fitou, e seus olhos demonstravam os últimos resquícios de uma esperança tola.
—Fui eu.
—O que?
—Fui eu quem a matou, Victor. O espelho me mostrou. Eu não sou inocente.
—Mas que —
—Eu não quero voltar e encarar isso. Ver o caixão dela e ter de assumir que fui eu o responsável por sua morte não é algo que vá me fazer feliz. Eu sinto muito se vocês contavam comigo. Eu só quero —
Antes que ele terminasse sua frase, eu o soquei, e o supercílio sangrou de imediato.
—O que você fez não é importante, Hector! Você tem uma vida toda para se arrepender e fazer por merecer! Vai deixar toda essa oportunidade passar em branco?
Hector se levantou, sem pressa.
Então ele me socou, e eu senti um peso extremo naquele soco, um peso de quem carrega um fardo que poucas pessoas seriam capazes de carregar, de quem sustenta uma vontade que já não mais existe.
—Eu matei a mulher que eu amava, cara. Eu sou um tremendo filho da puta. Mas se você ficar aqui e morrer comigo, vou te achar ainda mais escroto do que eu. Você tem uma família lá em cima, uma esposa gentil e uma filha linda! Ninguém vai sentir a minha falta, merda! Elas vão sentir a sua! Vão chorar no seu enterro, e a porra do seu caixão não vai ter nem mesmo um corpo para velar! É isso o que você quer?!
O silêncio foi tudo o que me restou.
—Então vá embora daqui, seu merda.
Deixei uma lágrima escapar.
—Você é foda, Hector.
Ele sorriu uma última vez.
—Eu sei. Você não é. Mas quem sabe chega lá um dia.
Eu me virei e, sem olhar para trás (parte para evitar o arrependimento, parte para impedir que ele me visse chorar), corri, deixando a Casa de Espelhos para trás.
—Onde está Hector?
Lucius foi o primeiro a perguntar, e Suzan se aproximou, indagando-me com os olhos. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, Sete Horas interveio.
—Morto, como todos vocês estarão caso percam mais tempo nesse lugar.
—Morto?! Como assim morto?!
—Ele escolheu isso, Suzan. Ele viu a verdade sobre a morte da esposa. Ele... Ele é o culpado.
Suzan cobriu a boca com as mãos, surpresa.
Lucius se sentou, chocado.
—Sofia estava naquele espelho, Victor. Ela não pode ser —
O Sr. Sete Horas admirou enquanto todo o lugar desmoronava atrás de nós.
—Sofia é seu nome, então? A amiga de vocês é a contraparte da Decrépita. A outra dela é a verdadeira, a nossa adversária, aquela que devemos exterminar.
—E a garota?
—Ela foi levada. A Cega é a chave e, nas mãos da Decrépita, juntamente de sua contraparte, é o necessário para que o Umbra se realize. Temos que impedir que ela chegue à Torre dos Murmúrios ou tudo vai estar perdido.
—E onde fica essa torre?!
—Ela pode estar em qualquer lugar desse universo.
—Merda... Espere!
Em minha mente confusa, a imagem de Pesadelo, o bar da Atendente sem rosto, girava sem parar, e ao fundo, num horizonte negro e perverso, uma torre que me parecia infinita se estendia.
—O que?
—Eu vi essa torre no Pesadelo! Tem que ser ela!
—É impossível alcançar algum lugar pelo Pesadelo!
Aplausos.
As palmas esgotaram nosso raciocínio. Surgiram estrondosas, e então diminuíram até que se esgotassem.
—Há somente uma entrada para o que procuram, meus caros: Paradiso. Uma entrada que, por sorte, vocês ensinaram à chave necessária para que a Decrépita pudesse concluir sua alimentação.
Aquela era uma voz familiar e, antes mesmo que eu me virasse para encarar aquele rosto que então se tornara odiável, pude definir quem era.
Cigano.

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