sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 6 / Ato XIV


XIV


Cigano entregara sua vida por Decrépita, e não só isso. Entregara sua forma, sua verdadeira faceta, sua existência.
Por ela, Cigano era agora um monstro caótico e grotesco.
Ele morrera uma vez antes, nas mãos incontestáveis do Sr. Sete Horas, e eu presenciei tal fato. Aquilo em nossa frente não o era, em realidade, e eu não compreendia como ele poderia ali estar. Mas logo algo em mim mudou. Parte pelas emoções exacerbadas que tive até então, parte pela sensibilidade que ganhara devido ao sobrenatural que me acolheu há algum tempo, mas agora eu sabia mais, entendia mais, via além.
E sabia que aquilo em nossa frente não era nada além dos sentimentos comprimidos numa carga catastrófica de vontade e frenesi.
—Victor Fulcanelli.
A voz do Sr. Sete Horas e o uso de meu nome completo fizeram com que minha atenção fosse utilizada por inteiro.
—Estou bem.
Não era essa a pergunta, mas enfim.
—Vou precisar de você. Eu cuidarei dela, Victor. A Decrépita é minha, como tem de ser. Mas você precisa impedir o Umbra de ocorrer. Você sabe o que tem de ser feito.
E eu sabia.
Fitava ali a ingenuidade da Cega, indefesa e inocente, e também a incapacidade de Sofia, abandonada como um sacrifício, uma contraparte que sequer sabia o destino terrível que a aguardava.
Era simples demais, em termos.
Eu só precisava matá-las.
—Sim, eu sei.
—Você não parece confiante.
—E não estou.
—Então esteja. Não sou eu quem depende de você. É o seu mundo.
Mas eu não era um herói, muito menos um daqueles que carregam o peso de um mundo nas costas.
O Cigano urrou.
—Este é meu amado, e olhe quanto amor há dentro de sua existência!
A Decrépita era asquerosa, falando entre mesuras e gargalhadas, zombando daquele tolo que lhe oferecera a vida, os sentimentos, tudo o que tinha. Ela não era assim, não desde sempre, mas sua simples presença me era repugnante, criando uma náusea que aturdia quaisquer boas sensações possibilitadas pelo rosto familiar carregado em sua máscara.
E o Cigano urrava, como besta, pairado à frente da construção com uso de suas asas mórbidas, grunhindo e ganindo numa mistura de dor e paixão, de tristeza e prazer.
—Victor, vá!
O Sr. Sete Horas gritou, e pela primeira vez eu vi em sua voz uma alteração digna, imposta pelo momento abusivo em que nos encontrávamos. Ele gritou, e seu grito me fez despertar, me fez entender que estava cercado por atrocidades que fariam louco o mais sensato dos homens, rodeado por coisas impossíveis e inacreditáveis, coisas que deixariam um cético perdido nos limites do que existe e inexiste.
Ao acordar, vi que tinha uma missão, um dever, um ato que somente um herói poderia fazer.
Mas eu não era um herói. Não mesmo.
E, não sendo um herói, mantive-me ali, inerte, enquanto o Sr. Sete Horas avançou sobre a Decrépita, e ela não se defendeu, mas foi defendida, e as garras e o corpanzil da bestialidade de Cigano se impuseram à frente da ofensiva de Sete Horas, e os ponteiros em seus olhos vibraram na pancada que a sua própria mágica causou, devolvida às origens por um escudo invisível que circundava a monstruosidade daquele ser.
Recuando do inevitável, o Sr. Sete Horas explodiu em cores e formas, em ventos e trovões, e sua mágica era imensa, sua vontade era indescritível, e ele abraçou a Decrépita e a besta que era Cigano num único embate, guardando para si o conflito final, o verdadeiro motivo de sua criação, da crença que o fez real, que o trouxe de volta como simbolismo da vingança de todo um povo.
—Victor, vá! Já é hora!
Eu ainda estava ali, parado, enquanto Sofia gania, enquanto a Cega desenhava, enquanto a chave para o fim do mundo era riscada por uma criança. Acordado, preparado, mas não destemido, mas não aceitando o fardo que me impuseram.
Decidi agir mesmo sem aceitar.
Olhei nos olhos daquele homem, daquela entidade que lutava por um universo, por milhares ou milhões de inocentes privados de suas vidas pela fome desleixada de uma única criatura, e vi os ponteiros marcarem o que sempre marcavam.
Sete Horas.
—Sim. Já é hora.
Eu me virei para as duas. Elas foram minhas companheiras, ainda que por pouco tempo. Elas foram minhas conhecidas. Sofia tinha sua família na Terra de Cima, tinha alguém para voltar. Mas ela não voltaria de modo algum. Não fosse pela morte para impedir o ritual, seria pela morte para que ele se concluísse. Não havia salvação para aquela mulher.
Mas e para a Cega?
Aquela garota riscava o solo numa inocência desastrosa. Sempre desenhava, sempre via mais do que todos nós. Criada para aquilo, cultivada pelo próprio Cigano para que crescesse e se tornasse a chave que a Decrépita precisava, ela era aquilo, nada mais. Talvez um dia houve um passado, uma história, pais e irmãos, mas não agora, não mais. Ela era um objeto, um utensílio para um plano maior.
Ainda assim, era só uma garota.
—Você é teimoso, como eu.
Eu reconheci a voz de imediato.
Lucius.
Ele estava sob alguns destroços, e metade do seu corpo jazia soterrada. Não mais existiam as pernas, esmagadas pela pressão de um rochedo de peso surreal, mas seu torso e sua cabeça ainda se mostrava, choroso e riscado por ferimentos doentios. Ele estava calmo, mesmo após tal acidente. Calmo por não haver opção, calmo por confiar em Sete Horas.
Calmo por confiar em mim.
—Lucius!
Corri até ele, tentando almejar um meio de salvá-lo.
—Não há salvação. Deixe-me aqui, faça o que tem de fazer.
—Eu não sei se consigo.
—Você é teimoso, seu merda. Deixou Hector morrer. Deixou Suzan morrer. E agora vai me deixar morrer também.
—Não, Lucius, eu não —
—E sabe por que você vai fazer isso?
Engoli em seco.
—Eu não vou —
—Sabe o por quê, Victor?
Silêncio.
—Eu sou teimoso.
—Sim, você é teimoso. Todos nós somos. Mas não é por isso. Você deixou que eles morressem, e vai me deixar morrer também, para que todo mundo possa viver.
—Lucius...
—A sua família tá lá em cima, cara. A minha também, e a de Sofia, e muito mais gente que nem sabe que isso aqui tá acontecendo. Você tem que dar a eles uma chance de continuar. Tem que passar por cima do que for preciso para que as coisas tenham um destino, um meio, e só. Nada precisa ter um fim.
Ele tossiu, e sua tosse era sangue.
—Você podia ter sobrevivido, cara.
—Sim, eu podia.
Ele agarrou a minha roupa, puxando-me para perto do seu rosto. Eu senti a sua respiração pesada na minha pele.
—Mas eu também sou teimoso. Agora vai, seu bancário de merda.
Eu me levantei, escondendo o choro, e tentei disfarçar um sorriso, mas não me achei bem sucedido. Apertei o Outono e a Primavera nas mãos e, voltando-me para as inocentes que aguardavam por um ceifador, corri.
Ao meu lado, Hector e Suzan deslizavam, translúcidos, intangíveis, espectrais. Eles dançavam distantes, dispersos, dançavam velozes e silvando, mas eu tentei não dar atenção a nenhum deles.
Até que ouvi suas vozes:
—Você é nossa única esperança, Victor.
Suzan falava de uma terra ventosa, não morta, não destinada ao fim. Ela perdera a liberdade, a sanidade, mas ainda estava ali, na Trilha de Espinhos, local que habitaria até a eternidade.
—Eu não quero ser esperança pra ninguém.
—Mas você é, caralho! Será que dá pra se tocar que tem a porra de um mundo dependendo de você?
A voz de Hector vinha de um lugar muito pior, onde o vento era gélido e cantarolava dores e lamúrias. Um lugar onde jaziam os mortos, imaginei.
Não pude esconder um sorriso breve e ríspido.
—Valeu, Hector.
—Valeu? Não é valeu o que você tem que falar, seu merda! Você tem é que me idolatrar e continuar nessa coisa de salvar o mundo! Vai que você vira um herói, mesmo sendo um bosta a vida toda? Você pode ser como eu, tá vendo? Eu era foda, cara, você sabe. Você mesmo disse isso!
—Tá legal, Hector, eu agradeço o incentivo.
—Então vai lá e fode com elas!
Não eram as melhores palavras de apoio que eu poderia esperar, mas serviriam ainda assim.
—Victor.
Suzan parecia tristonha.
—Sim?
—Pega leve com ela, tá bem? Ela é só uma criança.
A Cega.
Porque, dentre todos nós, Suzan fora aquela com maior contato com aquela criança indefesa, responsável pela chave que faria a fome da Decrépita se extinguir.
—Eu prometo tentar.
Suzan sorriu, linda e atraente, e então ambos os fantasmas se foram, e eu tive certeza de que nunca mais os veria na vida.
Aquilo me custou algumas lágrimas, mas eu não tinha tempo a perder com um pranto de duas vidas, quando tantas outras vidas estavam no tabuleiro.
Continuei a correr, e atrás de mim havia a guerra, o holocausto, a mágica mais tenebrosa que alguém poderia demonstrar. Era a magia do Sr. Sete Horas afrontando a ira do Cigano, ao mesmo tempo em que o diabólico poder da Decrépita envolvia-nos numa teia de caos e desordem, preenchendo o ar com urros de mortes distantes, de mundos distintos, de vidas alheias.
Na mágica do Cigano, o amor corrompido, dizimado, obscuro e imperfeito; na mágica da Decrépita, a fome, a vontade de se alimentar, as vozes de tantos inocentes, de tantas vidas perdidas.
Na mágica do Sr. Sete Horas, o grito de todo um mundo, de milhões de vidas, da vingança que todos estes esperaram com ansiedade.
Um manto de espectros englobava a besta que era o Cigano, e mesmo a Decrépita não conseguia se defender destes. Ela bem tentava, soprando-os em ciclones de berros de Banshee, mas os gritos estridentes eram música nos ouvidos daquele povo morto, dos homens e das mulheres que tiveram tudo retirado de suas mãos, tudo o que construíram, tudo o que um dia sonharam em ter.
Foi quando eu percebi que, por eles e por outros, pelos meus irmãos de mundo, eu tinha de fazer aquilo.
Uma explosão ocorreu, e parte do teto desabou sobre mim. Juro que, naquele instante, vi a morte de perto, e ela me sorriu em seu crânio esculpido, um sorriso de dentes imperfeitos, de olhos vazios, de brilho laminado na curvatura de uma foice que por si só gritaria, não fosse um objeto. Mas a morte não me alcançou, congelada por um banho de Inverno, por um gelo soprado por três damas, derretida pelas chamas mais perversas que o Verão poderia vomitar, dispersa nas mais belas flores de uma Primavera sombria e então, só então, engolida pela terra, que propiciaria o nascimento de uma nova planta de folhas em queda, uma prole do Outono.
Tudo isso sem que eu nada utilizasse da magia.
—Talvez fosse necessário o apoio prestado, talvez não. A vida é melhor para quem arrisca, não é?
As palavras se originavam num homem de manto de folhas secas. Outono caminho no campo de batalha, e ao seu lado o imponente Verão, a beldade da Primavera e a inocência e sabedoria das Damas do Inverno, todos acompanhados da magnificência dos Filhos da Floresta.
—Não há luz numa terra sem sol.
Era Verão, tendo como parceiro o sol nas mãos, o mesmo sol que um dia entregara a nós, que um dia fora ostentado por Hector.
As Damas do Inverno sopraram, em coro:
—E há solução para tal escuro, irmão?
—Sempre há.
O sol deixou suas mãos, dando de encontro ao corpanzil de Cigano, e a besta urrou, flamejante, conforme o calor trespassava seu corpo e irradiava no céu negro de Paradiso.
Primavera se aproximou de mim, tocando-me com sua beleza, com sua maravilha, e eu me apaixonei por ela por mais de cinco vezes num único segundo.
—Talvez fosse necessária a nossa intervenção, mas talvez não o fosse. Os grandes prazeres da vida são tirados daquele que se arriscam e falham, Victor. Então se arrisque e conquiste.
—Vocês não tinham que ajudar.
Eu não estava espantando-os: estava admirado. Aqueles seres eram muito mais do que qualquer homem, e homem algum deveria lhes importar, bem como não lhes importava o meu mundo.
Ainda assim, enquanto eu tinha de defender um universo e seus inocentes, eles lutavam, não por mim, não por eles.
Por honra.
—Não. Nós não tínhamos.
Ela sorriu, abrindo seu corpo num jardim de flores magníficas, colorindo aquele campo de batalha com uma beleza surreal, estupenda e espantosa, capaz de encantar o mais frio dos cavaleiros, de tingir o mais cinzento dos corações.
—Mas o faremos ainda assim.
E o fizeram com primor.
A besta oscilava diante de Sete Horas e dos Herdeiros, e os Filhos da Floresta auxiliavam aquele embate de forças que eu desacreditava. Poderia me manter ali, inerte, castigado pelo impressionismo do espetáculo que era o conflito daquelas entidades, mas eu tinha uma missão, um objetivo, algo que dizia respeito a todos os presentes.
Com um esforço sem tamanho, deixei para trás o teatro de uma guerra em holocausto, alvejando duas inocentes, duas indefesas.
Só então me dei conta de que não tinha uma arma. Nem mesmo a benção de Outono ou de Primavera estava ali, ao meu lado, nos bolsos ou em minhas mãos. Eu não tinha nada. Tinha apenas um objetivo, o de matar, e os alvos a serem mortos, mas nada que me permitisse concluir tal façanha.
—Victor.
Era a Cega.
Ela sorria de maneira agradável, cativando-me com seus olhos de vidro, sem cor ou brilho, sem vida. Cega, mas ainda assim sorridente, ainda assim feliz, mais do que muitos poderiam ser com as melhores condições físicas.
—O que você está fazendo, Cega?
—Eu sou a chave, se lembra? Encontrei meu verdadeiro objetivo, aquilo que eu nasci pra fazer. Não é maravilhoso, Victor? Eu finalmente posso ser útil!
Ela era ingênua, como as crianças deveriam ser, talvez mais. Enxergava mais do que eu, mais do que todos, mas ainda era cega e, como tal, nada enxergava.
—Você se lembra?
Fiz que sim, esquecendo-me de que ela não poderia me avistar.
—Sim. Eu me lembro.
—Eu me sinto bem, Victor! Me sinto viva, mais do que nunca!
—Sei como é a sensação.
—É ótima, não é?
—Sim. Sentir-se vivo, capaz de ajudar, de fazer algo pra você e para todos. Sentir-se bem.
Eu me aproximei, e ela voltou a riscar o chão.
A imagem da chave abaixo de seu corpo estava próxima de ser completa.
—Quando isso tudo terminar, podemos brincar outra vez, Victor! Hector e Lucius também, todos nós! E a Suzan, como eu me esqueceria dela! Vamos brincar mais vezes, viajar por Pesadelo, correr daqueles monstros horrendos até que eles não possam mais nos encontrar. O que acha?
Ela sorria, olhos indefesos, sorriso angelical. A Cega era uma criança, e eu, um louco prestes a se tornar assassino.
Passei por ela, incapaz.
Atrás de mim, o rugido da guerra estrondava.
—Sofia.
O nome escapou de meus lábios, e a mulher se debateu em sua prisão, sem ver, sem falar, sem mover-se como gostaria de fazer.
—Sim, Sofia! Ela é uma pessoa má, muito má! Imitou a verdadeira Sofia, aquela que está brincando com o Sr. Sete Horas! Eu não gosto dela! Eu gosto de vocês, mas não dela!
—Eu entendo.
Atrás de mim, a guerra.
À frente, o destino.
Sofia.
Inocente, com uma vida na Terra de Cima, com uma família preocupada esperando seu retorno, um marido e um filho, talvez irmãos e pais corujas, talvez avós e tios carentes. Uma vida, uma vida de verdade, esperando de braços abertos até que ela retornasse para seu aconchego, normalizando a situação, resolvendo todos aqueles problemas.
Por trás da venda que a cegava, Sofia sonhava ou alucinava, mas seus sonhos pareciam assustadores. Eu imaginava o que ela via, quais cenas aterradoras assolavam sua imaginação. Imaginava se ela via-se despedindo-se do passado, temendo o presente, desconhecendo o futuro. Em seus sonhos ou pesadelos, Sofia esperava que tudo aquilo acabasse, que tudo chegasse a um fim lógico e racional, que os dias voltassem a ser como eram antes, rotineiros e perfeitos.
Mas eu sabia que isso era impossível.
—O que você vai fazer com ela, Victor?
Eu olhei para minhas mãos.
Havia uma faca afiada em uma delas.
—Nós vamos brincar.
E, em nome de todos os inocentes que eu seria incapaz de nomear, eu a esfaqueei, perfurando sua garganta com uma curvatura mínima de lâmina, deixando que o corte quedasse até suas virilhas, abrindo o corpo e permitindo ao sangue jorrar descontrolado, encharcando minhas roupas e meu rosto enquanto Sofia urrava, sem entender.
A Cega parou seu desenho, assustada.
—Essa não parece uma boa brincadeira.
Minhas mãos tremiam. Meu corpo todo tremia, na verdade. Eu esperei até que ela cessasse os movimentos para respirar fundo, fechar os olhos e entender o que havia feito.
Eu matara uma mulher inocente.
Em lágrimas, com uma dor similar, senão maior, àquela sentida por Sofia, falei:
—Não, Cega. Essa não é uma boa brincadeira.
Então me virei em sua direção, com a faca suada no punho cerrado.
—Victor, o que você vai fazer?
Ela não parou de desenhar. Ela tinha medo, tinha sim, mas não parou de desenhar por um só minuto. Não me olhou, não chorou por sua vida, não implorou por piedade, pois confiava em mim, e aquilo era como uma estaca em meu peito, como um disparo em minha testa.
Caminhei até ela, sem pressa.
—Pare de desenhar.
Ela não parou.
—O que você vai fazer?
O sangue gotejava na faca, marcando o solo com respingos de uma vida que não deveria ser perdida.
—Pare de desenhar, por favor.
Ela não pararia.
—Eu não posso, Victor. Eu nasci para isso.
—Pare. Pelo amor de Deus, pare.
A Cega choramingou, ao mesmo tempo em que sorria e desenhava.
—Eu não posso. É mais forte do que eu.
—Eu sinto muito, Cega.
Parei ao seu lado, trêmulo, aos prantos. A dor de Sofia ainda me aturdia, e eu alucinava a cada vez que imaginava o urro histérico de sua morte, a cena de seu corpo aberto ao meio de maneira áspera e nauseante, por minhas próprias mãos.
Agora, mataria novamente.
Mataria uma criança.
—Eu não posso...
Ela chorava muito, mas eu chorava mais, por mim, por ela, por todos.
Atrás de mim, na guerra, Decrépita urrava, ousando irradiar todos os seus poderes na tentativa brusca de escapar daquele antro de entidades, carregada de volta ao combate pelas cores e dissabores dos poderes dos Herdeiros, dos Filhos, de Sete Horas.
Cigano, àquela hora, já era pouco mais do que cinzas.
—Eu sinto muito.
A faca em minhas mãos se ergueu, preparando um golpe que exterminaria uma vida, uma criança, uma maldição.
Mas ela não desceu.
Eu não era capaz de matá-la. Via seus olhos, sua vontade de viver, sua alegria por ter encontrado algo que somente ela poderia fazer. Via, em seus olhos, a inocência, a virtude dos mais jovens, a virtude que se perde com o envelhecer.
E ela chorava, chorava demais, mas ao encontrar meus olhos, a Cega sorriu, confiante.
—Está tudo bem, Victor. Talvez seja o melhor.
Eu vi toda sua vontade de viver, de continuar a existir, de manter-se ali, inerte, terminando a função que nascera para fazer. Vi além, no entanto, no fosco de seus olhos, no brilho de suas motivações.
Vi minha família.
Marrie e Madeleine brincavam, abraçadas, mas ambas estavam apreensivas. Esperavam pelo pai e pelo marido, esperavam por mim, numa terra que agora me parecia uma grande mentira. A Terra de Cima era distante demais, falsa demais, e eu chegava a esquecê-la em certos momentos, incerto de que seria capaz de retornar.
Enquanto isso, elas esperavam, confiantes.
Confiantes como a Cega, naquele momento, estava.
—Está tudo bem, Victor. Está tudo bem.
Não estava, mas logo ficaria.
Fechei os olhos, deixei-me gritar e, sem pensar ou respirar, baixei a faca com todas as minhas forças, e vi luzes, gritos, escuridão, silêncio, e então nada.

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