O
MAIS CEGO DOS ORÁCULOS
XI
Agora,
algumas coisas começavam a fazer sentido.
O
Cigano estava ali, sorridente. Feliz, é óbvio. Sua amada, a maior candidata a
vilã de toda esta confusão, alcançaria seu objetivo, e que homem não ficaria
feliz ao garantir ao amor de sua vida o direito de realizar suas vontades?
Sofia
era a Decrépita, e isso sim era surpreendente. Mais perigoso do que isso: ainda
que eu desconfiasse de que tal entidade desconhecesse o paradeiro de sua
contraparte, não demoraria para que ela a encontrasse. Sofia, a verdadeira, se
é que verdadeira seria um nome correto para lhe garantir, estava ali, tão perto
da maldade, tão perto daquela que a desejava para um mal sem tamanho.
E
a Cega era a chave para tudo aquilo.
—Agradeço
por tudo o que fizeram por mim e por ela.
Não sei exemplificar o que seria de nossos planos sem tamanha tolice para que
os anseios fossem atingidos. No fundo, por mais que a Cega fosse outra, são
vocês os que menos eram capazes de enxergar, não concordam?
Sr.
Sete Horas se postou à nossa frente, impassível.
—Maldito
seja, Cigano. Você sabe o que ela vai fazer! Sabe o que vai acontecer com todo
esse povo se o Umbra for realizado!
—Eu
quero que se foda todo esse povo, Sete Horas. Você é a vingança de um mundo. Eu
não sou nada. Eu sou um homem, um só homem. Um homem que amou, e que ainda ama.
Suzan
ainda me parecia chocada demais para que as palavras deixassem sua boca.
Imaginei que, em sua mente, circulassem as imagens da outra Sofia, aquela que
fora vista acompanhada de uma parceira lésbica, como se apenas um reflexo
fosse.
Ela
era a Decrépita, desde o início.
—Por
que está fazendo isso, Cigano?
A
voz de Lucius me surpreendeu. Às vezes eu me esquecia que, mesmo na presença de
tamanhas forças, nós também éramos capazes de falar.
—Eu
já disse, meu amigo: por amor. Aqueles que nunca amaram jamais serão capazes de
sentir algo assim.
Foi
a brecha que encontrei para ferir de uma maneira que poder algum é capaz de
evitar.
Com
palavras.
—E
acha que isso vai adiantar? Acha mesmo que, sendo ela uma entidade colossal,
vai recordar-se de sua insignificância, Cigano? Você não é nada. Você está
mimando uma semideusa com sua impotência. Quando abrir os olhos, todo o seu
sonho será uma ruína, e você perceberá o quanto foi usado por esta —
—Eu
sou usado por assim desejar, pobre Victor. É esta a diferença entre a minha
pessoa e vocês. Entendam que as dores marcam por muito tempo, mas elas se vão
um dia. As cicatrizes ficam.
Sete
Horas incendiou os braços, e seu fogo era maior que o sol de Hector seria capaz
de ser.
E
eu tive certeza de que ele zombaria de sua própria fraqueza caso estivesse ali,
presente em nosso conflito, mas ele não estava.
Estava
morto.
Por
minha culpa.
—Você
não vai nos atrasar mais, Cigano. Se é isso o que deseja, farei com que se
estire no solo e nos sirva de tapete.
As
palavras de Cigano surgiram em meio a um riso de deboche, e elas eram facas
atiradas contra Sete Horas:
—Veja
bem, não devemos ameaçar aquele que não podemos afrontar de outra maneira.
Provocações não são nada além disso: provocações. Eu não caio nelas, Sete. Não
caio mais.
Os
ponteiros nos olhos de Sete Horas alcançaram o sete e o doze, e o fogo irradiou
junto das badaladas de um sino que inexistia.
Os
olhos do Cigano se abriram numa loucura perversa, e neles eu vi um filme, um
filme que, tenho certeza, muitos outros de mesma atenção puderam deslumbrar.
Existiu
uma terra milagrosa, um dia.
Esta
terra não recebeu um nome, mas o povo que nela residia foi chamado de Povo dos
Oráculos. Eles nasciam para as previsões, depressivos por conhecer o futuro,
por zombar do passado e sapatear no presente. Eles estavam além dos homens, mas
homem algum existia naquela terra sem nome, pois a terra sem nome era lar dos
Oráculos, e eles eram iguais entre si, igualmente além, igualmente delimitados.
Nesta
terra sem nome, nasceu um oráculo sem nome, como todos os outros.
Eles
não se nomeavam, a menos que o futuro lhes dissesse o contrário, e o futuro
nada disse àquele rapaz, e talvez nada dissesse até o fim de seus dias. Era o
que as previsões indicavam, ao menos, e elas nunca erravam. Eram vislumbres,
não eram? Sempre certos, sempre pontuais. Assim sendo, não recebendo um nome,
ele era apenas mais um, e viveu como mais um por tempo, por anos que não se
contaram, por vidas que se perderam no passar dos dias.
E
o oráculo sem nome via um futuro tedioso, sem mudanças, e isso não o deixava
feliz. Feliz ficou, no entanto, ao encontrar em sua glamorosa estadia com o
Povo dos Oráculos um sorriso diferenciado, nascido na glória de uma profecia,
marcado no rosto de uma bela mulher.
Ela
era comum, não oráculo, não imortal. Uma humana de um mundo próximo, talvez
algo similar a isso, talvez nada parecida. Comum, essa era a certeza, e ele viu
seus olhos comuns, seus lábios comuns, sua vida comum. E quando a viu,
diferente de si, ele a viu importante, uma cicatriz para os universos, um marco
na existência de todas as existências.
Ela
nascera para superar o Deus que criara todos os outros deuses.
Porque,
sendo Deus uma existência, tem de ser superada, pois essa é a lei das coisas:
tudo o que existe um dia há de ficar para trás. E Deus não era diferente. Deus
logo seria deus, e logo mais seria nada, como um mero mortal, como um lutador
sem forças, um pescador sem oceano. Deus ainda era Deus quando o oráculo viu
isso tudo e, sendo Deus, também o viu.
E,
sendo Deus, nada satisfeito ficou ao ver que, no meio de tanta gente comum,
nascera uma mulher destinada a superá-lo.
Mas
o oráculo sem nome não viu apenas isso. Ele viu a garota comum, e viu nela uma
esperança doentia, uma simpatia sem tamanho, um amor incontestável. Viu nela o
que jamais esperou encontrar, e assim sentiu o sentimento mais poderoso de
todos os cantos dos universos, e se apaixonou perdidamente pela mulher que
jamais vira na vida.
Quando
isso aconteceu, o futuro todo mudou.
O
oráculo recebeu um nome: Cigano.
Sem
explicações, sem nada. Apenas um nome.
Ele
decidiu que tinha de encontrá-la. Decidiu abandonar tudo, deixar todas as
escolhas para trás, seu povo, sua honra, suas virtudes, tudo. Somente ela
importava, somente seus olhos comuns, sua missão divina escondida num sorriso
simplório. Somente ela e Deus, pois Deus, que logo mais seria somente deus,
agora era um degrau almejado por ela, sua amada, que fora tanto antes destinada
à grandeza.
Cigano
respirava aquela mulher. Seus sonhos eram a imagem dela, sua realidade era a
existência daquela emoção. Tudo era ela.
E
o Povo dos Oráculos não aceitou tal fato.
Era
contra Deus, e Deus era tudo. Conforme Deus arquitetava sua vingança contra
aquela que lhe trespassaria, o Povo dos Oráculos capturou Cigano, encurralando-o
durante uma fuga tola, desconexa e desmedida, uma corrida que o deixou
aprisionado contra as próprias vontades. Cigano se viu cercado, preso diante do
povo que o criou como o quê era, que o ensinou a ser quem era. Eram os mesmos
rostos que sorriram para ele durante tanto tempo, que o acolheram, abraçaram,
beijaram, ensinaram.
Agora,
todos aqueles rostos o fulminavam com um desprezo sem tamanho, e mais: o
desprezo era intenso, imenso, irracional.
Assim,
o povo que o acolheu, que o ensinou, que o abraçou, agora o alvejava com pedras
e socos e chutes.
O
oráculo que antes não tinha nome, mas que agora se chamava Cigano, chorou, e
chorou sangue. Escorreu por todo seu corpo o vermelho que ele nunca antes vira,
e o medo tomou conta de seu ser. Não o medo da morte, não o medo de deixar de
existir.
O
medo de se perder antes que a encontrasse.
Ele
então abriu os olhos, e era outro. Era mais forte, mais que todos, mais que
tudo. Era forte por lutar por si mesmo, mas acima de tudo, por lutar por
alguém, algo que nenhum dentre o Povo dos Oráculos fez durante toda a
existência. Lutando por si e por ela, Cigano se viu acima daqueles que o
subjugavam, se viu maior do que o mais velho dos seus.
Ao
fim, quando o silêncio voltou a reinar naquela terra sem nome, o Cigano era o
último habitante do Povo dos Oráculos, e ninguém mais seria capaz de deslumbrar
o futuro novamente.
Cigano
agora estava sozinho, mas não ficaria assim por muito tempo. Ele estava
sozinho, livre dos seus, mas livre também para perseguir quem amava, e foi o
que fez. Seguiu na trilha do desconhecido até que a encontrou, vendo seu rosto
de perto, tão mais lindo do que em suas visões, tão mais esplêndido do que em
seus deslumbres.
Tão
mais fraco.
Ela
era castigada no exato momento em que o Cigano a encontrou. Ele estava
apaixonado, ousou afrontar tal castigo, mas foi incapaz de proteger sua amada.
Fraquejou diante da ira do egoísmo que a mantinha curvada, do Deus que temia
perder seu posto, do Deus que não desejava ser deus ou ser nada. E ali, ao lado
de sua amada, Cigano viu-a ser moldada na deformidade, no caos, nas sombras,
até que restasse somente o confuso, e todos os sentimentos se misturassem numa
fome inexplicável e incrédula.
E
a mulher que fora somente uma mulher agora era mais, muito mais, mas não Deusa.
Não mais seria Deusa, nunca mais. Era entidade, um ser superior, mas não
divindade.
Era
a Decrépita.
Após
o seu castigo, Deus pôde descansar, sendo Deus, o que seria para sempre. A
Decrépita teve de se alimentar, e a fome a guiou por eras, por universos
diferentes, por tempos e espaços infindáveis. E o Cigano a acompanhou, sempre
de perto, sempre no auxílio, sabendo que ela não o via, não se importava, não o
conhecia, mas estava ali, perto, e isso era o suficiente, pois ele a amava em
segredo, nas sombras, no escuro.
O
Sr. Sete Horas queimava o mundo.
Eu
pisquei, e todo aquele filme se dispersou em minha mente, e também na mente
confusa de Suzan e Lucius. Enquanto assistíamos, aqueles dois lutavam, abusando
de uma mágica que éramos incapazes de entender, imitar ou sequer imaginar.
O
fogo crepitava.
Cigano
não parecia capaz de afrontar as chamas do Sr. Sete Horas. Os ponteiros tiquetaqueavam sempre o mesmo horário,
como um alarme do infinito, um relógio que indicava o tempo certeiro para o que
deveria ocorrer.
Aquele
era o horário da vitória e, nele, o Sr. Sete Horas era imbatível.
—Tombe
diante de sua imprudência, Cigano!
—Não
hoje!
—É
tempo de desistir. Não há mais espaço para suas tolices. Não ouse julgar
tamanha irresponsabilidade como amor, seu tolo! Você que tanto se engana fecha
os olhos para uma verdade muito mais importante!
—E
qual seria esta?
O
Cigano se deixou levar pelo ímpeto, e sua mágica falhou, dispersando-se num
vento incolor, perdendo-se no ar, no nada. O fogo ainda estava lá, brilhoso,
bruxuleante, real.
Mais
real e mais intenso do que o amor do Cigano por Decrépita.
—Mesmo
o que você julga queimar por dentro não resiste diante do fogo que queima por
um ideal justo. Você queima por aquele ser, Cigano. Eu incendeio por um mundo!
E o estrondo de um turbilhão
de chamas se misturou aos gritos de um homem que amava, que viu o futuro, que
viu nele aquilo que o levou ao fim, e no final restou apenas o silêncio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário