sábado, 9 de fevereiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 5 / Ato XI


O MAIS CEGO DOS ORÁCULOS


XI


Agora, algumas coisas começavam a fazer sentido.
O Cigano estava ali, sorridente. Feliz, é óbvio. Sua amada, a maior candidata a vilã de toda esta confusão, alcançaria seu objetivo, e que homem não ficaria feliz ao garantir ao amor de sua vida o direito de realizar suas vontades?
Sofia era a Decrépita, e isso sim era surpreendente. Mais perigoso do que isso: ainda que eu desconfiasse de que tal entidade desconhecesse o paradeiro de sua contraparte, não demoraria para que ela a encontrasse. Sofia, a verdadeira, se é que verdadeira seria um nome correto para lhe garantir, estava ali, tão perto da maldade, tão perto daquela que a desejava para um mal sem tamanho.
E a Cega era a chave para tudo aquilo.
—Agradeço por tudo o que fizeram por mim e por ela. Não sei exemplificar o que seria de nossos planos sem tamanha tolice para que os anseios fossem atingidos. No fundo, por mais que a Cega fosse outra, são vocês os que menos eram capazes de enxergar, não concordam?
Sr. Sete Horas se postou à nossa frente, impassível.
—Maldito seja, Cigano. Você sabe o que ela vai fazer! Sabe o que vai acontecer com todo esse povo se o Umbra for realizado!
—Eu quero que se foda todo esse povo, Sete Horas. Você é a vingança de um mundo. Eu não sou nada. Eu sou um homem, um só homem. Um homem que amou, e que ainda ama.
Suzan ainda me parecia chocada demais para que as palavras deixassem sua boca. Imaginei que, em sua mente, circulassem as imagens da outra Sofia, aquela que fora vista acompanhada de uma parceira lésbica, como se apenas um reflexo fosse.
Ela era a Decrépita, desde o início.
—Por que está fazendo isso, Cigano?
A voz de Lucius me surpreendeu. Às vezes eu me esquecia que, mesmo na presença de tamanhas forças, nós também éramos capazes de falar.
—Eu já disse, meu amigo: por amor. Aqueles que nunca amaram jamais serão capazes de sentir algo assim.
Foi a brecha que encontrei para ferir de uma maneira que poder algum é capaz de evitar.
Com palavras.
—E acha que isso vai adiantar? Acha mesmo que, sendo ela uma entidade colossal, vai recordar-se de sua insignificância, Cigano? Você não é nada. Você está mimando uma semideusa com sua impotência. Quando abrir os olhos, todo o seu sonho será uma ruína, e você perceberá o quanto foi usado por esta —
—Eu sou usado por assim desejar, pobre Victor. É esta a diferença entre a minha pessoa e vocês. Entendam que as dores marcam por muito tempo, mas elas se vão um dia. As cicatrizes ficam.
Sete Horas incendiou os braços, e seu fogo era maior que o sol de Hector seria capaz de ser.
E eu tive certeza de que ele zombaria de sua própria fraqueza caso estivesse ali, presente em nosso conflito, mas ele não estava.
Estava morto.
Por minha culpa.
—Você não vai nos atrasar mais, Cigano. Se é isso o que deseja, farei com que se estire no solo e nos sirva de tapete.
As palavras de Cigano surgiram em meio a um riso de deboche, e elas eram facas atiradas contra Sete Horas:
—Veja bem, não devemos ameaçar aquele que não podemos afrontar de outra maneira. Provocações não são nada além disso: provocações. Eu não caio nelas, Sete. Não caio mais.
Os ponteiros nos olhos de Sete Horas alcançaram o sete e o doze, e o fogo irradiou junto das badaladas de um sino que inexistia.
Os olhos do Cigano se abriram numa loucura perversa, e neles eu vi um filme, um filme que, tenho certeza, muitos outros de mesma atenção puderam deslumbrar.

Existiu uma terra milagrosa, um dia.
Esta terra não recebeu um nome, mas o povo que nela residia foi chamado de Povo dos Oráculos. Eles nasciam para as previsões, depressivos por conhecer o futuro, por zombar do passado e sapatear no presente. Eles estavam além dos homens, mas homem algum existia naquela terra sem nome, pois a terra sem nome era lar dos Oráculos, e eles eram iguais entre si, igualmente além, igualmente delimitados.
Nesta terra sem nome, nasceu um oráculo sem nome, como todos os outros.
Eles não se nomeavam, a menos que o futuro lhes dissesse o contrário, e o futuro nada disse àquele rapaz, e talvez nada dissesse até o fim de seus dias. Era o que as previsões indicavam, ao menos, e elas nunca erravam. Eram vislumbres, não eram? Sempre certos, sempre pontuais. Assim sendo, não recebendo um nome, ele era apenas mais um, e viveu como mais um por tempo, por anos que não se contaram, por vidas que se perderam no passar dos dias.
E o oráculo sem nome via um futuro tedioso, sem mudanças, e isso não o deixava feliz. Feliz ficou, no entanto, ao encontrar em sua glamorosa estadia com o Povo dos Oráculos um sorriso diferenciado, nascido na glória de uma profecia, marcado no rosto de uma bela mulher.
Ela era comum, não oráculo, não imortal. Uma humana de um mundo próximo, talvez algo similar a isso, talvez nada parecida. Comum, essa era a certeza, e ele viu seus olhos comuns, seus lábios comuns, sua vida comum. E quando a viu, diferente de si, ele a viu importante, uma cicatriz para os universos, um marco na existência de todas as existências.
Ela nascera para superar o Deus que criara todos os outros deuses.
Porque, sendo Deus uma existência, tem de ser superada, pois essa é a lei das coisas: tudo o que existe um dia há de ficar para trás. E Deus não era diferente. Deus logo seria deus, e logo mais seria nada, como um mero mortal, como um lutador sem forças, um pescador sem oceano. Deus ainda era Deus quando o oráculo viu isso tudo e, sendo Deus, também o viu.
E, sendo Deus, nada satisfeito ficou ao ver que, no meio de tanta gente comum, nascera uma mulher destinada a superá-lo.
Mas o oráculo sem nome não viu apenas isso. Ele viu a garota comum, e viu nela uma esperança doentia, uma simpatia sem tamanho, um amor incontestável. Viu nela o que jamais esperou encontrar, e assim sentiu o sentimento mais poderoso de todos os cantos dos universos, e se apaixonou perdidamente pela mulher que jamais vira na vida.
Quando isso aconteceu, o futuro todo mudou.
O oráculo recebeu um nome: Cigano.
Sem explicações, sem nada. Apenas um nome.
Ele decidiu que tinha de encontrá-la. Decidiu abandonar tudo, deixar todas as escolhas para trás, seu povo, sua honra, suas virtudes, tudo. Somente ela importava, somente seus olhos comuns, sua missão divina escondida num sorriso simplório. Somente ela e Deus, pois Deus, que logo mais seria somente deus, agora era um degrau almejado por ela, sua amada, que fora tanto antes destinada à grandeza.
Cigano respirava aquela mulher. Seus sonhos eram a imagem dela, sua realidade era a existência daquela emoção. Tudo era ela.
E o Povo dos Oráculos não aceitou tal fato.
Era contra Deus, e Deus era tudo. Conforme Deus arquitetava sua vingança contra aquela que lhe trespassaria, o Povo dos Oráculos capturou Cigano, encurralando-o durante uma fuga tola, desconexa e desmedida, uma corrida que o deixou aprisionado contra as próprias vontades. Cigano se viu cercado, preso diante do povo que o criou como o quê era, que o ensinou a ser quem era. Eram os mesmos rostos que sorriram para ele durante tanto tempo, que o acolheram, abraçaram, beijaram, ensinaram.
Agora, todos aqueles rostos o fulminavam com um desprezo sem tamanho, e mais: o desprezo era intenso, imenso, irracional.
Assim, o povo que o acolheu, que o ensinou, que o abraçou, agora o alvejava com pedras e socos e chutes.
O oráculo que antes não tinha nome, mas que agora se chamava Cigano, chorou, e chorou sangue. Escorreu por todo seu corpo o vermelho que ele nunca antes vira, e o medo tomou conta de seu ser. Não o medo da morte, não o medo de deixar de existir.
O medo de se perder antes que a encontrasse.
Ele então abriu os olhos, e era outro. Era mais forte, mais que todos, mais que tudo. Era forte por lutar por si mesmo, mas acima de tudo, por lutar por alguém, algo que nenhum dentre o Povo dos Oráculos fez durante toda a existência. Lutando por si e por ela, Cigano se viu acima daqueles que o subjugavam, se viu maior do que o mais velho dos seus.
Ao fim, quando o silêncio voltou a reinar naquela terra sem nome, o Cigano era o último habitante do Povo dos Oráculos, e ninguém mais seria capaz de deslumbrar o futuro novamente.
Cigano agora estava sozinho, mas não ficaria assim por muito tempo. Ele estava sozinho, livre dos seus, mas livre também para perseguir quem amava, e foi o que fez. Seguiu na trilha do desconhecido até que a encontrou, vendo seu rosto de perto, tão mais lindo do que em suas visões, tão mais esplêndido do que em seus deslumbres.
Tão mais fraco.
Ela era castigada no exato momento em que o Cigano a encontrou. Ele estava apaixonado, ousou afrontar tal castigo, mas foi incapaz de proteger sua amada. Fraquejou diante da ira do egoísmo que a mantinha curvada, do Deus que temia perder seu posto, do Deus que não desejava ser deus ou ser nada. E ali, ao lado de sua amada, Cigano viu-a ser moldada na deformidade, no caos, nas sombras, até que restasse somente o confuso, e todos os sentimentos se misturassem numa fome inexplicável e incrédula.
E a mulher que fora somente uma mulher agora era mais, muito mais, mas não Deusa. Não mais seria Deusa, nunca mais. Era entidade, um ser superior, mas não divindade.
Era a Decrépita.
Após o seu castigo, Deus pôde descansar, sendo Deus, o que seria para sempre. A Decrépita teve de se alimentar, e a fome a guiou por eras, por universos diferentes, por tempos e espaços infindáveis. E o Cigano a acompanhou, sempre de perto, sempre no auxílio, sabendo que ela não o via, não se importava, não o conhecia, mas estava ali, perto, e isso era o suficiente, pois ele a amava em segredo, nas sombras, no escuro.

O Sr. Sete Horas queimava o mundo.
Eu pisquei, e todo aquele filme se dispersou em minha mente, e também na mente confusa de Suzan e Lucius. Enquanto assistíamos, aqueles dois lutavam, abusando de uma mágica que éramos incapazes de entender, imitar ou sequer imaginar.
O fogo crepitava.
Cigano não parecia capaz de afrontar as chamas do Sr. Sete Horas. Os ponteiros tiquetaqueavam sempre o mesmo horário, como um alarme do infinito, um relógio que indicava o tempo certeiro para o que deveria ocorrer.
Aquele era o horário da vitória e, nele, o Sr. Sete Horas era imbatível.
—Tombe diante de sua imprudência, Cigano!
—Não hoje!
—É tempo de desistir. Não há mais espaço para suas tolices. Não ouse julgar tamanha irresponsabilidade como amor, seu tolo! Você que tanto se engana fecha os olhos para uma verdade muito mais importante!
—E qual seria esta?
O Cigano se deixou levar pelo ímpeto, e sua mágica falhou, dispersando-se num vento incolor, perdendo-se no ar, no nada. O fogo ainda estava lá, brilhoso, bruxuleante, real.
Mais real e mais intenso do que o amor do Cigano por Decrépita.
—Mesmo o que você julga queimar por dentro não resiste diante do fogo que queima por um ideal justo. Você queima por aquele ser, Cigano. Eu incendeio por um mundo!
E o estrondo de um turbilhão de chamas se misturou aos gritos de um homem que amava, que viu o futuro, que viu nele aquilo que o levou ao fim, e no final restou apenas o silêncio.

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