quinta-feira, 29 de setembro de 2011

Conto - Um Passo da Loucura

One Step To Madness é um conto que foi escrito para o Concurso Rastros de Cthulhu, do site Rede RPG, mas infelizmente não venceu. Não é meu gênero favorito, apesar de vez ou outra recorrer ao terror ou suspense nas histórias. De qualquer forma, aqui está ele, para que possam ler e deixar suas opiniões.
Boa leitura!



Ofegou, o peito dolorido, o corpo falhando em responder. Suor escorria por sua face, os olhos insanos, perdidos num mundo que nunca acreditaria existir. O sangue frio ferveu com a descoberta de verdades que deveriam permanecer escondidas, com a visão monstruosa do absurdo. Vira muito em sua vida, mas nada como aquilo e, agora, preferia morrer a acreditar. Fez então sua escolha.

Escritório Markinstar, 7 de fevereiro, 08hrs 15min.

—Qual o seu problema? —perguntou o detetive.

Eric Markinstar, nada menos que um profissional, e apenas isso. Cabelos castanhos desarrumados, coisa com a qual não se preocupava. Trajes sociais, elegantes, da época, transformavam um simples homem num poderoso investigador, famoso entre as mulheres, de sangue frio e costumes estranhos. Os olhos eram pequenos, simplórios e de grande intimidação, capazes de deduções velozes e perspicazes. Rosto fino, magro, traços herdados da mãe, que morrera doente, anêmica. Personalidade forte, determinada, herança essa do pai, policial das antigas, o qual deixou este mundo enquanto perseguia um grupo de assaltantes de banco.

O escritório de Eric era um lugar simples, nada mais que uma sala pequena, desorganizada, o suficiente para que sentasse e, em silêncio, estudasse o próximo caso. Um ventilador barulhento refrescava o ambiente, lamparinas velhas cuidavam da fraca iluminação, pilhas e pilhas de papéis guardavam os registros de casos antigos, informações úteis e manhas da profissão, que aprendera com o tempo. No centro, um suporte de madeira, onde um chapéu velho e um smoking surrado aguardavam o chamado do dono, e uma mesa de alumínio espaçosa, com documentos e registros espalhados por todos os cantos, um peso de papel em formato de diamante, uma vela para emergências, fósforos e cigarros para o sustento do vício, entre outras tranqueiras.

De um lado da mesa, Eric, sentado, os pés batendo ao chão com impaciência, a caneta nas mãos rodopiando pelo ar, vez ou outra usada para alguma anotação. Do outro, sentada sem tanto conforto, uma mulher, maltratada pela idade e por preocupações, em prantos. O rosto choroso, olhos inchados e lábios ressecados por desidratação, olheiras e sinais de ossos no rosto magro, sem saúde, provas de que algo a abalava por tempos. Falava devagar, com dificuldade, engolindo a tristeza e o medo, a insegurança.

—Ela era uma boa garota —contou a mulher, soluçando. —Nunca me decepcionou, nunca mesmo! —Limpou o rosto, encharcando as bochechas pálidas, as rugas de desespero marcadas na testa. —Não sei explicar o motivo.

—Tinha algum inimigo, alguém que poderia desejar mal à senhora, ou à sua filha? —perguntou, ríspido.

—Não! Nunca me envolvi em confusões nem nada do tipo.

Anotou.

—Quantos anos ela tem?

—Oito anos, faria nove em abril.

—Sua filha não está morta, minha cara. Ela fará nove anos em abril.

—Eles a levaram, levaram minha Belle, coitadinha. —Chorou muito, quase se afogando nas lágrimas de uma depressão incontrolável. —O senhor precisa encontrá-la, pelo amor de Deus!

—Deus não vai me ajudar nessas horas, dona Lespaul —cortou o homem, sem piedade. —Você pode me ajudar.

—Como?

—Onde foi a última vez que a viu?

—Em casa. Ela saiu para buscar um brinquedo na rua, e não voltou.

—Que horas eram?

—Nove e vinte, mais ou menos. Eu avisei a polícia logo que dei por falta, mas eles não conseguiram nada até agora, por isso resolvi contratar alguém especializado.

—Certo, Cindy. Com esses dados, posso começar uma investigação. Vou pedir para que a senhora aguarde em casa, e tome cuidado. Me avise sobre qualquer novidade que conseguir.

Despediram-se, e ela se foi. Sozinho, Eric tomou nota de todas as informações ditas pela senhora. Guardou a ficha consigo, fez uma outra cópia simplória, a qual arquivou na pasta Desaparecimentos, e saiu, não antes de pegar seu smoking, chapéu e cigarros.

Conferiu em suas roupas se a pistola, já gasta, estava pronta para uso. Constatando que sim, partiu, confiante. Afinal, nunca se sabe o que pode acontecer.

Caso - Belle Lespaul

Pedinte: Cindy Lespaul

Grau de Parentesco: Mãe

Data do Desaparecimento: 5 de fevereiro

Envolvimento de polícia: Sim

Idade da vítima: 8

Local vista pela última vez: Casa

Horário: 09hrs 20min

Investigação iniciada: 7 de fevereiro

Investigação concluída: Em breve

Rua da Residência Lespaul, 7 de fevereiro, 08hrs 42min.

Eric era discreto, mas extremamente detalhista.

Cindy era mãe solteira, a falta de uma aliança em sua mão era a prova. Não se incomodava pela aparência, suas roupas não estavam passadas e o perfume era tão velho que sequer cheirava algo. A casa, apenas pela entrada, provava ser desarrumada, tanto quanto o escritório do detetive. Isso não era algo incomum, absurdo, mas eram características de alguém despreocupado, e isso não é algo que se encontre em mães. Exceto naquelas que sofreram algum trauma durante a vida, emocional ou amoroso.

A rua era um lugar movimentado, próxima do centro. Havia comércio, trânsito de veículos, bancos. Difícil que alguém não notasse o sumiço de uma garotinha de oito anos. Uma observação cuidadosa mostrou vizinhos curiosos nas janelas, tentando entender o que Eric fazia parado em frente à casa de Cindy, talvez um preparativo para uma fofoca sobre um possível novo caso da solteirona. Esse fato foi desagradável para Eric, mas, ainda assim, de grande ajuda: vizinhos curiosos nunca deixariam que a filha pequena da mulher saísse sozinha, ou fosse levada por um estranho. Estavam na lista de interrogatórios.

De qualquer modo, o primeiro local a se procurar informações era um bar miúdo, camuflado entre construções do outro lado da rua. Bebidas e desaparecimentos combinavam, Eric sabia. Quantos homens não passavam horas do dia se embriagando naquele local? Quantos deles poderiam ser suspeitos pelo sequestro de uma garotinha de oito anos?

Destino decidido, Eric se preparou para atravessar a rua, mas algo tomou sua visão. Um homem alto, de pele negra e rosto agressivo, queixo fino e olhos assustadores, o observava, imóvel. Notou que Eric o vira, mas não fez questão de disfarçar. Encarou o detetive por algum tempo, o que o distraiu. Assustou-se com um automóvel, escapando por pouco de um acidente. Enquanto escutava ofensas por desatenção, Eric procurou novamente pelo estranho, mas ele já não estava lá.

Elektra Pub, 7 de fevereiro, 08hrs 56min.

Um lugar fedorento, a primeira impressão. Em seguida, quando o cheiro podre de cerveja com vômito cedia aos esforços das narinas de suportar tamanha atrocidade, o visual surgia para afastar os mais espertos. Não seria um local frequentado por crianças, nem por adultos com alguma coisa na cabeça. Mas, do mesmo modo, tinha seus fregueses, alguns mais comprometidos, presentes mesmo àquela hora da manhã, já com seus copos trêmulos de bebida, afogando as mágoas, ou os fígados.

Eric passou, alvo dos olhares de todos, inclusive da proprietária. A mulher não era alguém de família, dona de um negócio de sucesso, pelo contrário: parecia mais alguém presente ao bar, bebendo juntos dos homens, rindo alto, arrotando como tais. Com a entrada do detetive, ela se levantou de sua mesa e caminhou com dificuldade para trás de um balcão rústico de cimento, onde colocou um copo pequeno e uma garrafa de conhaque.

—Conhaque é a sua favorita, estou certa? —perguntou ela.

—Na verdade, prefiro garotinhas de oito anos —zombou Eric. —Sabe algo sobre alguma?

—Gosta de crianças?

—Investigação. Sou o detetive Eric Markinstar, profissional em resolução de casos pessoais, a mando da senhora Cindy Lespaul, moradora dessa rua. O caso é o desaparecimento da filha dela, de oito anos, Belle Lespaul.

—Ah, sim, a pequena Belle! —exclamou a mulher, um pouco assustada com a identificação de Eric. —Fiquei sabendo, sempre existem os murmúrios nas ruas, sabe? Ouvi falar que ela sumiu antes de ontem, mas não a via há muito tempo.

—Mas você a conhecia?

—Sim, ela sempre estava brincando na rua, lavando a calçada com sua mãe.

—E quanto tempo faz que ela não aparecia?

—Umas três semanas. Pensei até que ela estivesse doente.

—Entendo. E como é a sua relação com a senhora Lespaul?

—Comum, de cliente para vendedora.

—Cliente?

—Claro, Cindy sempre aparecia por aqui, comprava alguma coisa para beber.

—Alcoólatra? —Eric tomava nota de algumas coisas em seus papéis amassados.

—Já vi piores, não vou mentir. Mas ela gostava muito, pra aliviar a pressão, sabe como é. Perdeu o marido, mãe solteira, mal sucedida no trabalho e na família. Deve ser difícil sem algo para tirar sua atenção. O senhor vai querer beber?

—Não bebo em serviço, fica para a próxima. —Ela guardou a garrafa de conhaque, mas não sem antes colocar um pouco no copo limpo e beber. —Você já viu a senhora Cindy ficar alcoolizada, a ponto de maltratar a própria filha?

—Ela batia muito em Belle, coitada —contou a vendedora. —Alguns dias, já anoitecendo, ouvíamos gritos de dentro da casa delas, e choro alto. Mas Belle era uma boa garota, forte. Talvez ela saiba que a mãe sofre com vários problemas.

—O que não justifica maltrato. Quando foi a última vez que viu a garota?

—Como disse, umas três semanas atrás. Ela atravessou a rua, falou com alguém e voltou para casa, sorrindo. Depois, não a vi mais.

—Não reparou na pessoa que falou com ela?

—Não, infelizmente. Acha que pode ser algum suspeito?

—Na minha profissão, todos são suspeitos. Inclusive a senhora.

Ela riu, com poucos dentes em bom estado.

Rua da Residência Lespaul, 7 de fevereiro, 09hrs 24min.

O próximo passo seria investigar a vizinhança, mas, antes, Eric parou um pouco para uma segunda observação cuidadosa, um cigarro aceso de auxílio. Não havia mais nenhum outro lugar naquela rua onde poderia adquirir alguma informação válida, de acordo com suas deduções. A aposta da vez era a casa da vizinha fofoqueira, que o observou pela janela quando chegara. Depois disso, aproveitaria a noite para tentar entender alguns hábitos de sua cliente. Alcoolismo não é uma coisa boa para mães, e possíveis agressões poderiam colaborar para que a garota fugisse de casa, se envolvendo com outros problemas.

Sem mais, bateu palmas na casa da vizinha, e esperou até ser atendido.

Era uma mulher negra, de cabelos presos e avental de trabalho, ferramentas de limpeza nas mãos, manchas de produtos nas roupas, provavelmente alguém trabalhando naquela casa.

—Bom dia —disse ele, e a senhora sorriu por obrigação. —Sou o detetive Eric, envolvido no desaparecimento de Belle, filha de Cindy Lespaul, sua vizinha. A senhora é a proprietária da casa?

—Não, não, eu trabalho aqui —respondeu a mulher, sem educação alguma. —A senhora Lucille só volta ao final da tarde, está resolvendo alguns problemas pessoais.

—Certo, eu volto mais tarde, agradeço.

E partiu.

Rua da Residência Lespaul, 7 de fevereiro, 17hrs 20min.

Eric não conseguia deixar um caso de lado quando começava a investigar. Sabia que cada segundo que ele perdia era um segundo a mais que Belle sofreria nas mãos dos sequestradores, e não era uma coisa legal para se pensar. Investigou o bairro, as redondezas, perguntou no comércio, em outras casas, para moradores ou visitantes, e nada. A família Lespaul não era famosa naquele lugar, pois alguns moradores sequer sabiam quem eram as duas. Os que sabiam, sempre citavam as mesmas coisas, como Cindy bebendo, Belle sofrendo maltrato nas noites em sua casa, etc.

Comeu alguma coisa na hora do almoço e voltou a investigar. Tentou reunir pistas, mas até agora não tinha nada concreto. Pensou em visitar Cindy, mas resolveu deixar isso para noite. Era algo comum em sua profissão: antes de resolver um problema do cliente, estudar sua natureza, seus hábitos. Faria isso mais tarde. Enrolou pela tarde e, passando cinco horas, voltou à casa de Lucile.

Bateu, e agora foi atendido por outra mulher. Ela era estranha, sombria. Velha, ainda mais do que Cindy, coberta por vestes de velório, trajes escuros e finos, com pouco mais de um metro e meio, cabelos grisalhos tenebrosos e rosto enrugado pelas décadas de vida. O nariz torto a deixava com aparência das bruxas das histórias, e as unhas cumpridas somadas ao andar vagaroso e macabro aumentavam essa impressão.

—Posso ajudar? —perguntou, e até mesmo sua voz parecia enfeitiçada, uma vó que criança alguma desejaria ter.

—A senhora é Lucille? —perguntou Eric.

—Sou sim. É o detetive, que veio mais cedo, certo?

—Sim.

—Não tenho nada para te ajudar. Vá embora.

E começou a voltar para dentro de casa.

—Espere. Você me viu chegar hoje de manhã, não viu.

—Sim.

—Pensei que pudesse ter visto Belle uma última vez, talvez até mesmo depois de Cindy.

—É, mas pensou errado. A garota sumiu, e ninguém sabe nada sobre isso. Se quiser mais detalhes, pergunte à própria Cindy. Quem melhor para te dar informações do que a própria mãe?

—Ela já me disse tudo o que sabia.

—Engano seu. Cindy nunca diz tudo o que sabe.

Um comentário peculiar, mas Eric ignorou.

—Não viu nada de diferente pelo bairro nos últimos dias?

—Só você, detetive —retrucou ela. —As coisas aqui não costumam mudar. Somos sorteados, mas podemos ter azar de vez em quando.

Não entendeu.

—Comece procurando por ela, detetive —disse Lucille, antes que Eric pudesse perguntar novamente. —Investigue a mãe, e vai encontrar as respostas que precisa. Eu realmente não posso te ajudar agora, mesmo que quisesse. Sinto pena da garota, mas é só o que posso fazer no momento. Passar bem.

E foi embora.

Rua da Residência Lespaul, 7 de fevereiro, 22hrs 38min.

Enquanto comia algo na rua, em frente à casa de sua cliente, Eric bambeou no lugar, sonolento graças ao silêncio e à falta de pistas. Enquanto esperava a chegada da noite, sentado num canto de penumbra, do outro lado da rua, cochilou, o rosto encostado na parede de cimento. Sonhou, e viu um morcego miúdo que saiu da terra, cavando como um cachorro. Ele levantou voo, arqueou no ar, e então explodiu em tentáculos disformes banhados por sangue. Depois disso, Eric acordou, assustado.

Já eram bem mais de dez horas da noite, e nada. Pensou em voltar para o escritório, descansar para outro dia de trabalho, mas foi surpreendido quando três pessoas surgiram na rua, virando da esquina mais próxima. Todas se vestiam de preto, com chapéus e luvas, acessórios desnecessários para o tempo atual. Entre o trio, havia uma mulher, que caminhava com elegância sobre um sapato fino, de saia longa. Os homens eram de porte grande, um a cada lado, como se a escoltassem. Bateram na casa de Lucille, e ela os recebeu, com educação. Antes de entrarem, Eric teve a impressão de que a velha o apontou para os três, mas era impossível vê-lo naquele lugar, então nada fez.

A segunda surpresa da noite veio logo a seguir.

Escondido nas sombras, tinha uma visão privilegiada de tudo o que acontecia. De lá, viu quando um homem alto surgiu, caminhando com passos duros, como se desacostumado àquelas pernas. Bateu na porta de Cindy, e ela o atendeu de prontidão, o rosto sonolento, mas as roupas novas, arrumada para sair. Falou alguma coisa com ele, e pareceu se assustar com a resposta. Ela disse algo, mas o homem não a escutou, e se virou para trás. Nesse momento, Eric reparou que era o mesmo homem que vira mais cedo, negro e alto, e seu rosto, mesmo no escuro da noite, ainda trazia a mesma agressividade de sempre. Ele disse mais alguma coisa para Cindy, que chorou no lugar, e depois foi embora.

Eric pensou em seguir o estranho, mas Cindy logo saiu de sua casa e trancou a porta, seguindo por outro caminho. Esperou até que ela ganhasse distância e a seguiu, furtivo.

Cemitério Angellus, 7 de fevereiro, 23hrs 15min.

Acreditou que chegaria a qualquer lugar, menos ao cemitério.

Enquanto seguia sua cliente, que cada vez mais se tornava motivo de curiosidade por parte do detetive, percebera que ela estava tonta, talvez um pouco bêbada. Se estivesse fora de si, tudo bem, mas onze da noite não é um horário comum para se visitar um cemitério. De qualquer modo, ela olhou para os lados, insegura, e só então entrou. Não notara o detetive, que a seguiu de perto.

O cheiro fétido incomodou Eric, cheiro de tumba, de terra molhada, de morte. Túmulos e mais túmulos espalhados por um solo irregular e acidentado, pedras soltas e mausoléus em decoração daquele local tenebroso, silencioso, exceto pelos passos nada calmos de Cindy. Eric se escondeu na penumbra e manteve sua cliente no campo de visão, mesmo que desfavorecido pela escuridão. Andava confusa, sempre olhando para os lados, temerosa.

Parou em frente a um túmulo, pouco diferente dos demais. Verificou novamente se estava sendo seguida e, sem notar a presença do homem nas sombras, agachou-se e mexeu em algo na pedra. Para surpresa do detetive, uma passagem se abriu atrás do túmulo, algo simples, mas bem escondido na paisagem. Cindy desceu, e a passagem então se fechou.

Eric correu até o tumulo e estudou a peça. Era uma rocha simples, com as seguintes palavras: Aqui jaz Cthulhu. Abaixo das três palavras sem sentido para o detetive, uma figura macabra de um monstro disforme com centenas de tentáculos e asas assombrava a tumba, e seus olhos eram pedras diferenciadas, tanto na cor quanto nas texturas. Eric os observou por algum tempo, e se sentiu incomodado, perturbado. A imagem era simples, antiga, mas um tormento sem igual. Piscou forte, procurando esquecer a visão, e só então abriu a passagem, da mesma maneira que Cindy fizera.

Encontrou abaixo do solo uma escadaria apertada, de degraus miúdos e oscilantes, espiralados. Desceu com cuidado, usando os braços para garantir o que o corpo masculino dificultava. Um a um, os degraus o guiavam para a escuridão, para o desconhecido, e o silêncio reinava em absoluto, deixando a respiração e os batimentos cardíacos como música no ambiente. Ofegante, chegou ao último degrau e sentiu o solo firme, enfim, nas sombras de um corredor obscuro.

Ao longe, avistou uma pequena fonte de iluminação, provavelmente candelabros. Guiou-se até ele, apoiando-se nas paredes rústicas para evitar quedas. Passou por uma porta entreaberta, próxima das velas, e encontrou um segundo corredor, dessa vez iluminado por inúmeras tochas de aparência medieval, com chamas vibrantes e suportes em ouro. Cauteloso, encostou a porta atrás de si, evitando suspeitas, e então estudou minuciosamente a nova localidade.

Sombrio, o melhor adjetivo que encontrou para aquele corredor. Era longo, de teto alto, com inúmeras portas espalhadas pelas paredes, talhadas em mármore com figuras macabras. As paredes tinham um vermelho vivo, e desenhos, várias imagens pintadas com traços infantis, tortuosos. Eric caminhou devagar, observando cada uma das imagens e tentando entender seus significados. A primeira eram duas torres imensas, cinzentas, nuvens de fogo e fumaça no centro, como se estivessem sendo destruídas por explosões; ao lado, uma onda gigante descarregava a fúria dos mares contra uma cidade populosa, trazendo a desgraça e a morte; mais à frente, dois homens lutavam insanos por dinheiro, ambição estampada em seus olhares, sangue jorrando de seus corpos; a quarta imagem era o sol, bem próximo da Terra, o globo ardendo em chamas; por ultimo, uma criatura monstruosa se erguia dos oceanos, trazendo consigo o caos e a desordem, asas imensas e tentáculos do tamanho de torres, golpeando os mares e abalando tudo ao seu redor, a boca imensa aberta, como se pretendesse devorar o mundo em que pisava.

Atordoado pelas cenas estranhas que encontrou, Eric já não se sentia tão bem. Esquecera um pouco do motivo de estar naquele local, até mesmo de Cindy e Belle. Curiosidade cresceu por dentro de sua mente, juntamente de um medo inevitável do desconhecido, mas ele precisava ir mais fundo. O que Cindy fazia num lugar como aquele? O que eram aquelas imagens? O que estava acontecendo ali?

Movido por impulso, o detetive, já não tão frio quanto de costume, seguiu pelo corredor, passando por todas as imagens e estudando-as novamente, devagar, e pareciam cada vez mais perturbadoras, criadas para confundir e amedrontar as mentes mais fracas. Seguiu, passando pelas tochas, e se deparou com uma porta de cimento, talhada com cabeças de gárgulas de olhos finos e presas pontiagudas. Tocou a maçaneta com delicadeza, temeroso, e usou da força para empurrar a porta pesada.

A escuridão novamente tomou conta do local. Passada a porta, a mesma se fechou atrás do detetive, que se assustou com o barulho. No escuro, uma brisa suave incomodou a pele de Eric, arrepiando-o, um tremor suave subindo por seu corpo. Respirou com dificuldade, esperando por algo que talvez não viesse, procurando uma fonte de iluminação qualquer para sanar seu medo do desconhecido. Como detetive, gostava de ter tudo na sua linha de visão, e nunca ser surpreendido. Como homem, preferia fechar os olhos para muitas coisas, e a escuridão seria sua amiga, não fosse a fobia que demorou a se livrar. Naquele momento, preferia estar longe dali, mas o dever e a vontade de se perder nos mistérios o forçavam a continuar.

Usou de passos cuidadosos e lentos para se movimentar, um ranger tenebroso provava o solo de madeira, uma fina camada de pano entre as tábuas frias do chão e os pés hesitantes de Eric. Seguiu, as mãos estendidas á frente, procurando um caminho, uma salvação, uma luz no fim do túnel, e nada. De súbito, sentiu um tecido entre os dedos, um pano macio e frio que tremulava com um vento gélido e um cheiro de água salgada, de mar. Pensamentos se confundiram na mente do detetive: vento e cheiro de praia, no subterrâneo?

Arriscou um passo a mais, e suas mãos empurraram algo sólido, e então pode ver uma luz distante, ao fim de um oceano escuro e oscilante, o vento forte criando ondas enormes de um lado para o outro, as rochas imensas se esforçando para manterem-se fixas após cada pancada de água salgada. Abrira uma janela impossível de se acreditar, inexistente. Uma janela no subterrâneo, que lhe mostrara uma visão de torre. Algo estava muito errado.

Recuou trêmulo, e tropeçou nos próprios pés, caindo sentado na madeira, que fraquejou. Ouviu então um estalido, seguido de um ranger alto, e o solo tremeu. Eric não teve reação, ficou imóvel. Mesmo cego devido à escuridão, sabia que sua expressão era de pânico, seus olhos não eram tão frios quanto sempre foram. Nunca mais seriam.

Outro estalo, dessa vez mais grave. Uma sombra passou ao lado do detetive, e o susto o fez se exaltar, a madeira novamente oscilando. Parou, segurou o ar, evitou qualquer movimento. Outra sombra, dessa vez mais próxima, e um assovio ecoando pelo ar. Os braços tremiam, o medo corria em veias junto ao sangue, as sombras correndo rápidas ao seu redor. Fechou os olhos, mas sentia os movimentos, sentia o pavor de não estar sozinho. Grudou os lábios, com vontade de gritar, o sangue gelando. De súbito, sentiu um toque nas costas, e o grito de pânico escapou. Levantou-se veloz, mas o chão não suportou e cedeu, deixando o detetive cair no breu.

A queda brusca acabou com todas as chances de reação de Eric, que se chocou contra uma pequena cômoda de madeira, a qual se partiu de imediato. Girou no lugar e se levantou veloz, estudando o lugar onde estava: parecia um quarto, um lugar para se descansar. Paredes vermelhas e mal pintadas, tapetes surrados pelo chão e uma cama de estrado podre, com um colchão devorado por bichos. Eric procurou, mas não havia uma porta de saída, janela ou coisa parecida. Sentiu-se preso, e bateu contra uma das paredes, bruto, mas em vão. Em resposta, escutava apenas uma canção, de ritmo assustador e palavras desconhecidas, cantada por várias vozes unidas.

Socou novamente a parede, e chutou-a, procurando alguma brecha. Num golpe de sorte, escutou um ruído diferente, de parede oca. Bateu com força, e viu o disfarce rasgar. Recuou alguns passos e, sem hesitar, movido pelo poder da loucura, se atirou contra o bloqueio, rolando pelo chão com os ombros doloridos e um ferimento novo na pele.

Já confuso e sem rumo, Eric se pôs de pé, e era o centro das atenções do local. Diferente da solidão de pouco tempo atrás, aquela câmara estava repleta de pessoas, uma mais peculiar que a outra. Lá estava Cindy, a face endoidecida, um sorriso maléfico no rosto, uma expressão de horror no olhar. Ao seu lado, uma pequena garota, muito parecida com ela, que dançava pouco entendendo o que se passava no local. Mais próximo às duas estavam dois homens, gêmeos, de rostos idênticos e deformados. Uma garota loira com um olho a menos não tirava o detetive da vista, ao mesmo tempo em que uma velha de bengala e vestido longo parecia querer devorá-lo. Outros três homens de pele negra vestiam roupas claras, junto de duas mulheres ruivas, e um adolescente com cabelos longos e roupas escuras. Era um grupo de pessoas estranhas, num ato ainda mais estranho. Porém, alguma coisa chamou mais a atenção de Eric.

Mais distante, próximo a um altar, estava um homem, ou algo humanoide, sentado em um trono de pedras. Braços fortes, negros, asas de morcego dormentes por sobre suas costas, olhos amarelos e gigantes. O pouco que restara de sua face era familiar a Eric, que não soube dizer o porquê, mas o restante era apenas uma massa disforme banhada em sangue, que ainda escorria por feridas imensas por onde tentáculos grotescos deslizavam freneticamente, oscilando com movimentos bruscos e força anormal.

O olhar da criatura era uma loucura, e Eric não sabia como descrever, ninguém saberia. A simples visão daquele ser, daquele monstro obscuro e onipotente fez o detetive sentir vontade vomitar seus órgãos, cuspir seu próprio sangue e depois engolir tudo novamente. Era uma sensação tenebrosa, que fez os joelhos de Eric falharem e o derrubarem ao chão, seu corpo perder o controle e acelerar, urinar nas calças e chorar como uma garotinha que perdeu o doce. Tossiu de pavor, e tossiu sangue, mas até seu sangue escorreu fraco e sem cor, também temendo a simples existência daquilo, que era completamente indescritível.

—Esse é o homem —disse Cindy, apontando com o braço frágil, trêmulo, a voz de choro. —Ele é o sacrifício! Poupem minha pobre Belle!

—Tudo para Nyarlathotep! —bradou um dos negros, parecendo impaciente.

—O sacrifício deve ser feito, independente da oferenda —disse uma das ruivas.

— Nyarlathotep! Nyarlathotep! —urravam os demais, num coro insano para um deus-monstro.

—Sacrifício? —perguntou Eric. —Esse era seu plano, não era?

—Eu não tive escolha! —choramingou a mulher. —Era entre você e minha filha, minha amada Belle! —Abraçou a criança, que aparentava medo. —Não podia deixar que ela fosse morta.

—Então ela contratou um idiota com uma falsa história e os trouxe para nós —disse a velha de bengala, a voz lenta e gasta. —E, sendo você o sacrifício, a filha dela será poupada.

—Eu não vou ser o sacrifício para nenhum monstro! —bradou Eric. Usando das poucas forças que ainda tinha, levantou-se, as calças molhadas, pernas trêmulas, os braços hesitantes. Apoiou-se na parede mais próxima, puxou o revólver da cintura e apontou para a criatura. —É você quem será o jantar hoje.

O monstro sorriu, ou ao menos foi o que Eric assimilou daquela expressão tenebrosa e horripilante. Atirou uma, duas, sete vezes contra o rosto disforme daquele ser, que se despedaçou em carne e sangue verde e viscoso. Artérias esguichavam pelos buracos no pescoço, a língua dependurada no que restara do maxilar, os olhos caídos escorrendo junto do sangue pelo rosto.

—Morra, cria do inferno! —disse o detetive. Apertou o gatilho outras tantas vezes, sem noção de que suas munições já haviam se esgotado há tempos.

—Eu não posso morrer, mortal —falou o monstro e, quando falou, mesmo sem boca ou sem face, todos caíram de joelhos, inclusive o próprio detetive. A força na voz daquela criatura era a de um deus, maior do que qualquer coisa que Eric já sentira na vida. Deixou a pistola escorrer por seus dedos, viu suas unhas caírem uma a uma, seus braços formigarem e seus poros do corpo todo despejarem gotas de sangue.

—Honra a Nyarlathotep, o Caos Rastejante! —bradaram os cultistas, com exceção de Cindy e Belle, que choravam incontroladas.

—Aquela que não mais me honra deve ser punida —disse o monstro, e sua face se reconstruía enquanto falava, sangue retornando ao seu lugar, língua e olhos recolhendo-se abaixo da pele, que se formava por completo novamente. Apontou para Cindy e Belle. —Não deixaria que uma ovelha ficasse sem sua cria. Quero o sangue de ambas, para que não sintam falta ou fraqueza.

Cindy gritou, Belle chorou mais alto, mas não havia escapatória. Segundos foram o suficiente para que todos os demais cultistas se jogassem contra mãe e filha, e usassem das mãos e dos dentes para destruírem os corpos das duas. Eric assistiu tudo aquilo, viu os últimos suspiros e gritos de dor e pânico de sua cliente e da garotinha, viu o sangue jorrar e os órgãos atirados ao chão, a pele arrancada como adesivo, os cérebros mastigado por todos. Chorou, sem motivo, sem razão, sem sanidade alguma. Vomitou no lugar, enquanto tentava se levantar, apoiado nas paredes. Notou então que havia uma porta, e aquela seria sua saída, sua rota de fuga.

Jogou o corpo contra ela, sentiu o braço quebrar em dois lugares. Caiu fora do salão, e se viu livre. Correu.

Nyarlathotep apenas ergueu uma das mãos quando vários dos cultistas pensaram em correr atrás de Eric.

—Deixem que vá —disse o monstro. —Ele tem apenas duas escolhas. Sua vida acabou.

Eric correu o máximo que pode, subindo escadarias e passando por portas e mais portas sem sequer perceber aonde ia. Correu e, quando percebeu, já estava respirando o cheiro de morte do cemitério novamente. Tropeçou em vários túmulos, arranhou as bochechas nas pedras do solo quando caiu, sentiu pontadas no braço quebrado. Então largou seu corpo, abriu as pernas e deitou-se, olhos fixados no céu escuro da madrugada, na lua e nas estrelas.

Gargalhou. Aquilo tudo era um sonho, um sonho, só isso. Não podia ser verdade.

Gargalhou, insano. Temeu as sombras, e imaginou estar sendo perseguido. Levantou-se, correu para fora do cemitério. Esbarrou em um poste e praguejou, quebrou a vidraça de uma loja com os pés, vomitou sangue novamente. Correu, sem destino, e agora chegara a seu escritório. Quebrou a porta de entrada, derrubou tudo o que havia sobre a mesa, empurrou o que podia contra a entrada para se sentir seguro. Gargalhou, novamente, o cérebro agora apenas de enfeite em seu corpo. Deitou-se no chão, rasgou a cortina das janelas para se cobrir, fez de seus arquivos mais importantes o encosto para seu pescoço.

Ofegou, o peito dolorido, o corpo falhando em responder. Suor escorria por sua face, os olhos insanos, perdidos num mundo que nunca acreditaria existir. O sangue frio ferveu com a descoberta de verdades que deveriam permanecer escondidas, com a visão monstruosa do absurdo. Vira muito em sua vida, mas nada como aquilo e, agora, preferia morrer a acreditar. Fez então sua escolha.

—Eu só preciso descansar —disse ele. —Só preciso descansar, e esquecer. Isso tudo foi um sonho, um sonho. É tudo minha imaginação. Isso não existe, ele não existe, eu não existo. Durma, durma, durma, merda! —Sorriu. —Eu vou esquecer, eu vou esquecer. Eu quero... Eu quero morrer...

Não fechou os olhos, pois não podia. Ali ficou, por horas, por dias, e apodreceu insano, sem que mais ninguém ouvisse falar em seu nome.

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