sexta-feira, 16 de setembro de 2011

Conto - Bella Natura

Olá a todos!
Trago hoje um conto não ambientado em Elhanor, na verdade sem um cenário específico. Antigo, consta na antologia Além da Terra dos Uivos, do Clube de Autores, e no site RPG Vale, na área Canções da Meia-Noite (Veja aqui). É uma história sobre um grupo de aventureiros bem exótico, mas incrível.
Desejo-lhe uma boa aventura, e espero que retornem gloriosos!



Corri, mas minhas pernas já tremiam exaustas, pois a distância era longa. A floresta ficava mais densa a cada passo, e escurecia minha visão, dificultando a fuga. Ah, sim, eu fugia. Fugia deles.
Minhas roupas eram pouco mais que trapos surrados e rasgados agora, pois tentei confrontá-los uma vez. Não achei que seriam fortes, e talvez pudesse, com minha feitiçaria bem treinada, enfrentar dois ou três daquelas criaturas. Mas eram muitas, incontáveis, e nada pude fazer. O vestido verde que cobria meu corpo fora rasgado pelas garras afiadas daquelas patas animalescas, e agora cobria pouco de minha pele morena. A coroa de espinhos dada por meu pai fora estraçalhada pela pressão de um só golpe daqueles monstros, e minha testa ganhara uma cicatriz pequena, que sangrava bastante, atrapalhando meus olhos. Tentei confrontar, usar da magia que podia, mas meus ataques não tiveram o efeito que pensei. O fogo não os feria, a água não os molhava, o relâmpago não era suficiente para derrubar apenas um deles, ou então, eu era fraca com isso tudo. Talvez fosse, já que desde a infância meu talento sempre fora a cura e a defesa, e não a mágica ofensiva tão admirada pelos leigos. E, com ela, nada poderia fazer a não ser curar as minhas próprias feridas com agilidade, levantar-me e fugir veloz por entre as árvores.
Corria, e pisava em galhos secos e folhas mortas, por um caminho que nunca vira antes. As orelhas pontudas me diziam a proximidade do meu medo, e isso me fazia correr mais, mesmo que meu corpo implorasse por descanso. A pele bronzeada refletiu os últimos raios de sol que passaram por entre as árvores, que se fechavam num cerco cada vez mais assustador e silencioso. Ouvia bem minha respiração, e meu pavor era sentido com o bater do meu coração, acelerado pela adrenalina da fuga e da batalha que antes tivera. Os longos fios de cabelo cinzentos de Elfa do Sol que era chacoalhavam pelo ar enquanto me movimentava, confundindo meus perseguidores, e os atraíam, provocantes, assim como talvez as curvas de meu corpo o fizessem, apesar de eu apostar que minha carne seria aproveitada de outra maneira por aquelas bocas salivantes e esfomeadas.
Eu só entrara na floresta para explorar, conhecer. Curiosa, característica da raça, devo admitir, e improvada pela família Berhagne, da qual vim, senti vontade de conhecer o interior daquele lugar, mas não esperava cruzar com deformidades em meu caminho. Tudo bem, perigos existem em todo lugar, mas nunca tive problemas quanto a isso. Tirando o Dragão Vermelho que encontrei em uma caverna, o Beholder no pântano e a Lagosta Gigante do deserto, nunca tive problema algum. Tá, eu tive alguns outros sim, mas não vem ao caso.
Juro que seria apenas mais uma exploração, mas meu cheiro atraiu os monstros. Estava lá, perdida entre as flores de coral, coloridas e alegres, quando eles me encontraram. Talvez aquele jardim natural tenha sido destruído por eles, por minha culpa. Não pude ficar para ter certeza. Toscos, era como os chamavam. Criaturas criadas pela feitiçaria de magos negros, magia das trevas, que usa humanos como cobaias para experimentos macabros, como os de necromantes. Toscos, criaturas incompletas, deformadas, mas que um dia foram, ou seriam, pessoas. Terríveis, repletos de sentimentos indescritíveis que, unidos como massa disformes, viravam raiva, ódio, fúria. E força. Muita força.
Eram apenas dois quando me atacaram, e não tinha pra que temer. Já ouvira histórias dos toscos, e não me pareciam fortes como deuses. Dois deles não e fariam fugir. Meu orgulho não me deixaria fugir sem tentar, mais certo dizer. Ergui-me em posição de luta de clériga, brandi minha espada longa e preparei alguns feitiços em minha mente. Primeiro, avancei como guerreira, a lâmina pronta para ferir a pele asquerosa daquele ser, mas a arma recuou ao toque, e o corte era muito superficial. Talvez me faltara força, ou talvez o aço não era suficiente para com eles, e isso me assustou. Assim, pude perceber melhor com o que lutava.
Um tosco tinha quase dois metros e cinquenta centímetros de altura, mas andavam curvados, e isso os deixava mais baixos, mas ainda assim terrivelmente parecidos com torres prontas para matar. A pele era de um cinza pálido, esticado com veias estouradas e sangue preso, em manchas roxas pelo corpo todo. Não tinha cabelos, nem nariz, apenas duas fendas como as de cobras no centro do rosto, abaixo de dois olhos largos e ovais, sem órbitas, apenas vermelhos, horríveis. A boca era imensa, e engoliria facilmente a minha cabeça toda com apenas uma mordida, sem nem deixar minhas orelhas para fora, repleta de dentes em quatro camadas de gengivas podres, avermelhadas pelo sangue que se acumulara, ou, pensei eu, pelo sangue de presas anteriores. Seus braços eram longos, e chegavam a arrastar no chão, como de macacos, instintos de fera. As pernas eram como de humanos, exceto os pés, que eram peludos e grandes, estufados como com inchaço, com apenas quatro dedos idênticos. No estômago, havia sempre alguns orifícios maiores, pelos quais podia se ver órgãos funcionando, mesmo que parecesse impossível, e o sangue passando por inúmeras veias rugosas e enegrecidas. Isso era um tosco.
Ah, claro, sem esquecer das garras, longas como as de lobos, talvez maiores ainda, pontiagudas, afiadas, prontas para matar. E para desarmar, e foi o que ele fez.
Quanto tentei golpear novamente, a espada encravou-se entre duas das garras, que mostraram-se extremamente eficientes e resistentes, pois giraram ao redor de minha lâmina e a tiraram de mim, lançando-a a metros. A garra então veio como trovão sobre meu corpo, e rasgou parte de minhas vestes, deixando um corte simples em minha coxa. O segundo ataque veio em meu torso, e novamente deixou parte de meu corpo a mostra, e mais um corte superficial na altura do baço. O terceiro ataque foi mais alto, e rasgou uma parte do vestido que cobria meu ombro, o que baixou pouco a peça de roupa, quase mostrando meu seio, e senti minha clavícula deslocar com a pancada. O quarto golpe viria em minha cabeça, mas desse eu pude me esquivar, rolando para trás, mas de susto do que com intenção de me salvar. Isso tudo, em questão de segundos.
Me recompus e notei que apenas o primeiro dos toscos me atacava. O outro, um pouco afastado, urrava como se uivasse, como se dissesse alguma coisa, mas eu nunca entenderia. Foquei em meu oponente, e precisava da mágica, minha única esperança.
É, eu nunca fora muito boa de ataques com feitiços, mas precisava tentar. Primeiro, usei do fogo, e a esfera de chamas queimou árvores, mas o corpo do tosco apenas a engoliu, sem queimar, sem efeito aparente. Em seguida, usei da água, e lancei um jato preciso em seu rosto, não o suficiente para afogá-lo ou sequer jogá-lo no chão. Por último, dancei no lugar para invocar a fúria dos céus e trazer um relâmpago das mãos, que atingiu o peito da fera, e foi o mais produtivo dos ataques. Mesmo assim, fez com que ele recuasse dois passos, e só. Pouco atordoado, atacou minha face novamente, e dessa vez não pude me esquivar, ganhando uma cicatriz na testa e perdendo a coroa de espinhos floridos que meu pai me dera, destruída pelo golpe.
Caí ao chão, mas levantei rápido, pronta para continuar a batalha incessante. Porém, um deles era o suficiente para me vencer, talvez, e o outro acabar de chamar a família toda. Quando percebi, havia pelo menos vinte toscos ao meu redor, famintos, salivando pelo carne de meu corpo, que talvez fosse boa, já que elfas são sempre alvo principal desses monstros. Decidi que agora usaria meu tempo para me curar, e fugir. Não tinha outra escolha. Acabei com os ferimentos e corri o máximo que pude, e era o que fazia até agora.
Já corria há quase quinze minutos, e minhas pernas tremiam pelo esforço. Em pouco tempo, não aguentaria mais. Minhas orelhas me diziam que eles estavam próximos demais. Conferi com os olhos, e vi que três dos toscos estavam quase me alcançando, mesmo com a corrida desajeitada que tinham. Alguns derrubavam árvores para me seguir, sem hesitar, sem dificuldade. Eu estava perdida, fato. Concentrei-me na fuga, e rezei.
Rezei para meus pais, por proteção, e ela veio num escudo de vento sobre meu corpo. Depois, rezei para os céus, por bravura, e ela veio, numa coragem incandescente em peito. Por último, rezei para minha deusa, por força, e ela cedeu chamas verdes em meus braços, num último esforço de feitiçaria. Virei-me, cessando a fuga, e ataquei, em um grito de esforço máximo, lançando as chamas cor-de-grama na direção dos monstros, e explodiram numa labareda de natureza, com cheiro de enxofre e flores e fumaça cinzenta.
Cheguei até a comemorar, pensando ter derrubado os mais próximos, ou ao menos atrapalhado em seus caminhos, mas nem isso consegui. Saltaram por entre a fumaça, dois deles, e um caiu com o corpo sobre o meu. As pernas pisaram em meu torso, e senti duas costelas trincarem como papel rasgando. Uma das garras segurou meu braço direito, que usava para me debater na tentativa de escapar. Não desistiria assim, não naquela hora. Usei do braço esquerdo para lançar chamas fortes na cara horrenda do monstro que me prendia, mas não o feri, e a outra garra dele golpeou meu braço ainda útil, quebrando-o com facilidade. Agora, estava lá, deitada, um tosco imenso sobre meu corpo, duas costelas trincadas, um braço quebrado, aprisionada pelas criaturas, que aos poucos chegavam e circundavam a cena.
Aquela sim era uma boa hora para desistir, tive de admitir.
Urraram, todos, talvez por comemoração. Mais uma presa, mais um alimento, que, imagino, era difícil encontrar naquela floresta. Seria comida de tosco, mastigada e devorada como carne de porco com batatas, meu futuro certo. Fechei os olhos, e apenas aceitei.
Ouvi então um zunido sônico no ar, barulho de carne rasgada e um grito de tosco, e todos os outros pararam de urrar. Tá, isso sim me surpreendeu.
Quando abri os olhos, vi o tosco que estava sobre mim imóvel, babando sangue, que se juntava com o vermelho quente que escorria do recente ferimento em sua testa, feito por uma flecha grandiosa de pura energia, de um azul brilhante composto por eletricidade e pureza. A criatura caiu de lado, e seu cérebro não podia mais lhe dar ordens, e ela morreu sem agonizar.
Eu queria me levantar, correr, fugir novamente de todos aqueles monstros. Estava com medo, queria chorar, queria sair dali, queria nunca ter entrado naquela floresta. Pensei que ia morrer. Mas, então, eles chegaram.
Outra flecha de energia, idêntica à anterior, cruzou o ar, e veio pelas árvores, de onde não se podia ver, atingindo certeira o peito de outro tosco, e este urrou alto, e bateu os braços no chão, furioso em busca do oponente. Surgiu por entre as folhagens, como se sempre estivesse ali, mas impossível de se ver. Tinha pele clara, de um branco pouco bronzeado pelo sol, e traços perfeitos, de recém nascido, num rosto fino e corado, jovial. Os olhos eram puxados e apertados, o nariz pontudo alguns milímetros acima da boca pequena e hesitante, que talvez pouco se abria. Orelhas imensas, como as minhas, mas um cabelo escuro como a noite, e olhos de órbitas brancas sobre um preto tão forte quanto o dos fios. Marcas da raça, de Elfo da Lua que era. Trajava uma armadura composta, detalhada em prata por sobre um metal azulado que não pude identificar, com escrituras e desenhos que não sei se poderia descrever. No peitoral, acima do metal azul e da prata, um símbolo de uma árvore dourada, reluzente e poderosa, que talvez significasse alguma coisa. Nas mãos, preparado para o ataque, havia um arco grandioso, cor de coral, com detalhes em bronze e outros materiais que talvez nem nome tivessem, sem corda e sem flechas, mas ele não precisava delas. O arqueiro surgiu das folhas, e sorriu para mim, como se quisesse dizer Está tudo bem agora. E realmente estava.
Vi outro tosco cair, mas agora perfurado por uma lança longa, incendiada por uma chama azulada e poderosa. Quando o monstro tombou, já morto, pude ver a dona. Uma garota linda, de cabelos azuis e curtos, pele macia e rosto suave, sereno. Seus olhos eram diferentes, um de cada cor, azul e verde, respectivamente. Trajava vestes de um vermelho sangue, compostas por detalhes em azul escuro, e tinha uma ombreira negra na forma da cabeça de um lobo. A lança em suas mãos era magnífica, e exalava magia grandiosa, perdida há séculos. Mas, dela, o que mais me chamou a atenção foi o companheiro: diferente do lobo da ombreira, o lobo que ela estava montando era bem real. Imenso, maior do que o maior urso que já vira na vida, com pelugem grossos e cinzentos, e desenhos vermelhos, como tatuagens, espalhados pelo corpo largo. Seus olhos demonstravam confiança, ao mesmo tempo em que provavam sua força, sua honra e sua glória lupina. Levantava o queixo para o alto, formoso e audaz, enquanto sua dona mostrava uma postura ainda mais intimidadora que a do animal, graças à arma em mãos e à tranquilidade no olhar.
Quando outro tosco caiu, perdeu ambos os braços antes que seu corpo tocasse o chão, arrancados pela força tremenda de um gorila imenso, com pele feita de cristais pontiagudos e brilhantes, finíssimos, como agulhas de costureiras. O gorila então bateu as mãos no peito, e um de seus braços tinha um bracelete especial. Vagarosamente voltou ao que antes era, menos assustador, mais homem. Pele morena, de braços treinados e musculosos, corpo de guerreiro. Cabelos curtos, quase brancos, e olhos finos como os de um felino, de um azul tão claro quanto o céu de uma tarde limpa. Trajava um sobretudo aberto na altura do peito, de mangas dobradas, e assim era mais fácil de reparar no bracelete que antes fora visto no braço do gorila de cristal: era um artefato raro, fácil de dizer, pois suas bordas eram feitas de ouro puro, cintilante, e em sua superfície haviam três joias, uma vermelha, uma azul e uma verde. A face não era tão jovial quanto os demais, mas dava um ar de experiência, e quase era possível afirmar que aquele homem sobreviver a uma guerra apenas por olhar em seus olhos puxados. Tomou posição de luta, desarmado, e o bracelete brilhou, provocando os toscos, que urraram.
Eu vi os três aparecerem do nada, e derrubaram os toscos com tanta facilidade que era quase difícil de acreditar. Tentei me mover, para poder ver melhor aqueles três, entender a situação, mas meu corpo já não respondia. O braço quebrado doía, as costelas trincadas me faziam chorar de dor, e apenas a humilhação daquela cena era suficiente para tirar minhas noites de descanso por pelo menos dois meses. Bufei no lugar, em esforço, mas nada do corpo reagir.
―Você não deveria se mover agora ―disse uma voz feminina, afastada, vinda do ar, e eu não sabia quem falava. ―Seu corpo parece estar muito ferido, deixe que eu cuide de você.
E só notei quem era dona da voz quando vi duas garotinhas, miúdas, com menos de vinte centímetros, voando com asas translúcidas para perto de mim. A primeira delas, ainda quieta, usava um vestido infantil, rosado, com pedaços de armadura cinzenta por sobre o tecido mágico. As asas, transparente com as de um inseto, balançavam freneticamente, ritmadas com o movimento do longo cabelo loiro, e os olhos brancos como globos de luz dançavam no ar quando ela flutuava veloz. Um cinturão de couro marrom apertava o vestido em seu tronco, e eu tinha certeza de que aquele cinto seria quase um anel para mim. Abaixo do vestido, duas meias cruzadas e escuras cobriam a perna da pixie, e duas botas roxas protegiam seus pés, traçadas por gravuras em um rosa tão claro quanto o das roupas.
A outra, dona da voz que me aconselhara a não se mover, parecia mais rústica, mais agressiva. Usou de um rasante para pairar sobre meu rosto, e me observou por algum tempo, pousando sobre meu peito logo a seguir. Era uma fada, assim como a outra, que presumi ser sua irmã, pois os rostos eram muito parecidos. Esta usava uma saia violeta, e um peitoral metálico coberto por raízes e folhas, como se árvore fosse. Seu cabelo era castanho claro, e sua pele um pouco mais escura que a da irmã. Tinha olhos verdes, brilhantes como os da outra pixie, e um par de botas brancas cuidava de seus pés e joelhos. Nas mãos, duas luvas do mesmo couro do cinturão da fada que a acompanhava deixavam um estilo diferente, contraste com as vestes de criança, e uma tiara dourada dava o toque final.
―Quem são vocês? ―perguntei, e cuspi sangue. Era difícil falar com ossos quebrados e costelas partidas. Mais fácil era chorar e aceitar a morte, mas agora tinha uma esperança. Estranha, mas ainda assim esperança.
A fada da saia violeta, apesar da aparência mais agressiva, era imensamente simpática. Sorriu, com uma expressão amigável que pouco se vê, e respondeu:
―Bella Natura, é o que somos! ―E dançou sobre meu corpo. ―E agora você, como uma das sortudas que nos encontrou, verá um show que não se encontra em capital alguma! O show da natureza!
E ela tocou as luvas de couro em meus seios, o que estranhei, mas ela sorriu, e comecei a me sentir melhor. Pouco a pouco, sentia os ossos se reconstituírem, os ferimentos fecharem, o sangue voltar a correr normalmente, e o corpo voltar a obedecer. Era simplesmente incrível.
Mas não tanto quanto o que vi.
Enquanto ela me curava, dois toscos saltaram por sobre nós, os menos preparados para receber uma ofensiva veloz como aquela. Seria um ataque fatal, tanto para mim quanto para a pixie maga, mas sua irmã se moveu com agilidade felina e, quando seus olhos brancos brilharam, seu punho atingiu o inimigo e, mesmo duvidando, tenho certeza de que o golpe daquela criaturinha fez com que aquele monstro voasse pelo menos duzentos metros para trás, arrancando árvores e destruindo vegetação local.
Impressionada, arregalei os olhos, para não perder nada daquilo que veria.
Havia no mínimo trinta toscos ao nosso redor, mas não pude contar ao certo. O arqueiro puxou a corda que seu arco não tinha, e três flechas multicoloridas surgiram, cortando o ar como uma explosão de fogos de artifício, deixando rastros de chamas verdes, azuis e violeta por entre a escuridão da floresta, e os alvos tombaram sem dificuldade. O tosco que se manteve em pé, com uma flecha atravessada no peito, foi abatido pela mordida do lobo atroz, agora fera, não montaria. A mulher que antes o domava lutava no chão, sozinha, e a lança em suas mãos desenhava no ar, rompendo barreiras da natureza e usando a força da mesma para se fortalecer, e seu ataque era inacreditável, explodindo em luzes e energia.
Quando os toscos perceberam o poder dos oponentes, avançaram todos de uma só vez, e se chocaram contra um morcego gigante que cintilava com uma asa de joias, e atacava com fúria. O morcego derrubou dois monstros e, ainda no ar, se tornou um demônio de chamas verdes, enormes, cujos braços eram lâminas, e essas foram suficiente para degolar os seres caídos. Se um tosco pensava em fazer um ataque surpresa, pelas costas do fogo-verde, era atingido por uma flecha coral precisa, e o arqueiro nunca errava.
A lança fazia seu trabalho e, quando a garota montou novamente no lobo, correu como se montasse um cavalo, veloz e resistente, e sua arma era destruidora naquela situação, servindo de defesa e ataque contra os braços longos e as garras afiadas dos toscos, que mal sabiam o que estava os ferindo, ou como. Se a lança não era suficiente, um soco da pixie do cinturão podia afundar as pernas e o tronco de um tosco no chão, que quase engolia aquela monstruosidade, tamanha força da pancada.
E Bella Natura, seja lá o que fosse isso, lutava muito bem. Eram guerreiros com poderes imensos, impossíveis de se contar. Ninguém acreditaria em mim se dissesse, mas aqueles cinco, seis se contasse a montaria da garota, lutavam em conjunto com a natureza, e ela os fortalecia, era fácil de ver. O arqueiro, a domadora e o lobo atroz, o metamorfo, a fada super-forte e sua irmã, uma maga de talentos enormes.
Acabaram com muitos toscos, mas cada vez apareciam mais, e estávamos cercados. Todos pararam de lutar, mas não por estarem cansados, nem nada do tipo. Apenas pensaram em outra coisa.
―Se derrotarmos um a um desses monstros, nunca vamos sair daqui ―falou o arqueiro, enquanto destruía o corpo de um tosco, transformando-o em uma peneira de carne disforme. ―Que tal espantá-los?
―Sei quem pode cuidar disso ―disse a domadora. A montaria lupina uivou, e suas garras cuidaram para que seu oponente nunca mais pudesse gritar. ―O que acha de um pequeno susto, Sinnrena?
―Vocês são mesmo fracos, nem para acabar com alguns monstrinhos ―falou a fada que me curava, e só então notei que ela já terminara seu trabalho. Já sentia meus ossos novamente, e sabia que poderia me mover, mas estava maravilhada, impressionada com aquelas pessoas, e não o faria. ―Posso cuidar disso.
A lança rodopiou nas mãos da garota, ainda sobre o lobo, e cuidou para que a maioria das árvores que bloqueavam a luz do dia fossem destruídas. Agora, já se podia ver o céu, claro, as nuvens, brancas e altas, e a fome na face dos toscos, que ainda atacavam sem medo.
―Boa, Jasmine ―elogiou o arqueiro, e aplaudiu, sem deixar o arco.
―Ela precisa de espaço, não precisa? ―sorriu a druida, e seu lobo afastou os toscos mais próximos de Sinnrena. ―Vamos cuidar dessa parte, e ela pode fazer o restante.
―Jasmine, use as garras de Labra para mantê-los distantes ―pediu a pixie, e levantou vôo, partindo do meu corpo. ―Kouu, você e suas flechas são nossas defesas, não percam uma sequer! Enquanto eu me preparo, Rastin usa suas transformações e Juudie os seus braços para encurralar o máximo de toscos possível, ok? O restante é comigo.
E assim foi. Jasmine e Labra correram, afastando os toscos de Sinnrena, enquanto Juudie e Rastin os cercavam e tentavam encurralar os oponentes. Um deles que escapava era um alvo para Kouu, que não deixava nada passar.
Juro que pensei que Sinnrena demoraria para se preparar, mas em alguns minutos ela já tinha os olhos brilhando num verde intenso. Abriu os braços, e seu corpo levitou sem que as asas se movessem. No ar, gradativamente aumentou seu tamanho, logo tendo pernas e braços de humana, com curvas salientadas nas roupas curtas, mas as curvas logo eram imensas, pois ela não parou de crescer. Nem de se transformar.
Conforme Sinnrena cresceu, sua pele se tornou escamas, escamas brancas e fortes, cobertas por asas lisas de coral, imensas. As pernas e os braços se tornaram patas, e deitaram o corpo imenso da fada, que agora era mais monstro do que os próprios toscos. A face bela da pixie deu lugar a um enorme rosto dracônico, e seu cabelo agora era um chifre longo e violeta, que cintilava no corpo enorme daquele ser. Ela urrou, um estrondo que quase derrubou os monstros. Nesse momento, todos os toscos olhavam para o que Sinnrena se tornara. Até mesmo eu tive vontade de fugir.
Ela agora era um dragão e, era fácil de dizer, uma de suas patas esmagaria pelo menos quatro toscos. Desesperados, entraram em pânico, e correram de um lado para o outro, sem reação. Fugiram feito doidos, e a fome não parecia o suficiente para os encorajar a enfrentar aquele ser imenso. Logo, restara apenas o dragão que era Sinreena, e os Bella Natura.
Só então ela voltou à sua forma natural, e gargalhou.
―Adoro ilusões ―disse ela, e todos riram. Menos eu, é claro. Ainda estava muito assustada para isso.
―Está tudo bem? ―perguntou Jasmine, a primeira a se aproximar de mim quando tudo se normalizou. Estendeu o braço para mim, e aceitei a ajuda. Fiquei de pé, como achei que nunca mais faria, e limpei as roupas.
―Sim, estou bem ―disse. ―Obrigado, eu acho. ―Meio tímida. ―Mas, erm... Quem são vocês?
―Já disse, Bella Natura! ―Sinnrena, se recuperando do feitiço grandioso que acabara de usar. ―Os salvadores!
―Bella Natura? ―Tentei perguntar, mas ninguém me respondeu.
―Somos amigos ―disse Kouu. ―Amigos seus, e amigos da natureza. Fazemos a nossa parte, quando fazem a de vocês.
―Ajudamos aqueles que precisam de ajuda ―Rastin, meio seco. ―Quando a natureza causa perigo, ou está em perigo.
―Onde é preciso, estaremos! ―Juudie, sorridente, estralando os dedos das mãos miúdas.
―Inclusive Labra ―sorriu Jasmine. ―Mas bem, gostou do show?
―Não tenho nem palavras! ―E não tinha mesmo. ―Foi tudo tão magnífico! Não sei como dizer, vocês são tão... Tão incríveis!
―Não elogia muito não, Kouu fica mimado ―brincou Sinnrena, e gargalhou. Kouu riu junto.
―Bom, temos que ir ―Rastin, que parecia realmente ser o mais sério dentre eles. ―O dever nos chama.
―Como podem dizer quando precisam de vocês? ―perguntei. ―Como podem chegar nos lugares onde são necessários?
―Isso é segredo nosso ―Juudie. ―Sinnrena, acho que nossa elfa está um pouco cansada. Ela precisa dormir um pouco, não acha?
―É, infelizmente. ―Sinnrena se virou para mim. ―Eu gostaria de ficar e conversar mais com você, mas não dá. E você também não pode ver como nós seguimos viagem, então...
―O que você...
―Boa noite!
E, depois disso, não vi mais nada.

Acordei horas depois, e o céu já estava escuro. Sejá qual for o motivo, nenhuma outra criatura daquela floresta se aproximou de mim, e me senti segura lá. Sabia sobre Bella Natura, mas não o suficiente. Queria conhecê-los, entendê-los. Queria me aproximar da natureza, me aproximar deles.
Levantei, arrumei minhas coisas, e parti. Daquele dia em diante, procuraria Bella Natura pelo mundo todo, até que pudesse me juntar àquele grupo tão maravilhoso. Seria eu, Lunara Berhagne, a mais nova integrante daquele grupo.
Um dia, claro. Até lá, seria novamente apenas uma curiosa.

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