Magistra é uma novela que concluí recentemente, no início de 2012. Tem cerca de 40000 palavras, mas seu gênero é diferente do que costumava escrever, uma fantasia urbana e obscura, em termos. Ela nos conta a história de Owen e Ingrid, dois órfãos que partem numa aventura muito perigosa em busca da professora desaparecida, mas acabam por descobrir que há muito mais por trás desse outro mundo. Fiquem agora com um pequeno trecho de Magistra.
I
O crepúsculo se desfez, deixando que a noite
tomasse o céu por inteiro, como o abraço delicado de uma mãe atenciosa. O véu
enluarado estava mais claro do que de costume, com estrelas dedilhadas por
todos os cantos, rodeando com louvor o satélite natural e brilhoso que era a
Lua, curvilínea em seu esplendor crescente, ostentando toda a luxúria de sua
existência de modo a evitar que a escuridão assustasse criança alguma.
Ah, mas é claro, havia crianças! Dezenas delas
estavam espalhadas nos terraços de suas casas, assistindo à raridade daquela
bela penumbra, contando estrelas, fazendo pedidos, cada qual com seus
genitores. Abraçadas às pernas de pais e mães graciosos, sorriam pela
felicidade do momento, de poder estar ao lado de quem amavam numa cena tão bela
como aquela. Abraçavam irmãos, dividiam alegrias, corriam com seus brinquedos
em devaneios extrovertidos, banhados por criatividade e diversão. Crianças e
pais, como há de ser.
Havia outras crianças, contudo, e estas não
abraçavam seus pais. Muitas delas não tinham irmãos, primos, algumas nem mesmo
brinquedos. Abandonadas às portas de residências desconhecidas, vivendo ao lado
de moradores de rua ou sob os viadutos trabalhados daquela cidadela, órfãos
predominavam naquela região. A taxa de nascimento aumentara gradativamente nos
últimos anos, ao mesmo tempo em que muitos filhos tornavam-se indigentes,
largados em orfanatos e deixados em hospitais na tutela de falsos registros.
Grande parte destes órfãos sequer teria a oportunidade de conhecer os pais,
muitos dos quais já estavam mortos, ou há muito tinham escapado da coleira de uma prole. Sem escolha, eram
forçados a tornar-se pedintes, trabalhar de maneira escrava ou, na melhor das
hipóteses, encontrar uma vaga disputada num orfanato público.
TulTul Highway era um orfanato pequeno, mas
feliz, na medida do possível. Em suas paredes tingidas por um castanho de
alegorias, instrutores ensinavam o que podiam para suas crianças, muitas delas
vivendo no interior daqueles portões durante toda a vida. Contabilizando suas
dezoito vagas, TulTul já abrigava mais de trinta crianças, eternizando o
sentimento do coração de mãe. Ali os filhos de todos e de ninguém aprendiam a
ler, escrever, falar e cantar, contando com voluntários sorridentes e dispostos
a dar tudo de si por cada uma daquelas crianças.
Owen Bartholomeu era um dos filhos sem pais.
Tido como inteligente, destacava-se entre as crianças de TulTul por sua memória
incomparável, qualidade que facilitava seus estudos em comparação com os demais
alunos de doze anos. Vestindo-se nos trapos doados pelas crianças mais ricas,
Owen estava sempre de bem com a vida, alegre nos piores momentos, quando a fome
importunava o Highway. Abraçava seus amigos, cantarolava, espantava qualquer
desânimo passageiro, e logo a situação retornava ao normal, motivo para que ele
ostentasse um sorriso largo e contagiante de Eu não disse que iria melhorar!
Naquela noite, Owen havia escalado as paredes do
orfanato, algo que frequentemente irritava suas professoras-mães, para
sentar-se próximo à chaminé, de onde poderia assistir àquele belo fenômeno.
Como todas as outras crianças, e também a maior parte dos adultos da cidade,
estava ansioso para admirar uma combinação fabulosa do clima nevoado, o eclipse
prometido durante tantas semanas nos noticiários e a Aurora Boreal que já
começava a se formar no breu. Tantos fatos incomuns chamaram a atenção de
cientistas de todas as partes do mundo, mas nenhuma explicação racional impediu
o povo de parar tudo o que fazia para esperar aquele momento único. Enquanto
ouvia passos raspando a neve dos telhados, Owen aplaudiu os primeiros
movimentos eclipsais, tímidos e vagarosos.
—Eu sabia que te encontraria aqui!
A voz era familiar, sequer precisou se virar
para ter certeza de quem era. A garota escalou com dificuldade, diferente da
agilidade atlética de seu companheiro. Seguiu com cautela, evitando possíveis
escorregões nas telhas congeladas do orfanato, e sentou-se ao lado de Owen,
sorrindo apenas com os olhos. Olhos lindos, por sinal, safiras incrustadas nas
órbitas alvas de uma pequena donzela, vestida com um saiote de bordados e
cheirando a maquiagem de adultos, roubada das professoras mais vaidosas. Ingrid
Strawberry era a melhor amiga de Owen, ou o mais próximo disso. Ambos viveram
no TulTul Highway durante todos os anos de suas vidas, aguardando o processo de
adoção que nunca chegou. Não mais esperavam por novos pais, pois encontraram
nos instrutores a felicidade de uma família mais unida do que qualquer outra.
Eles mesmos eram o complemento que faltava, exibindo uma afeição que irmão
algum seria capaz de demonstrar, e isso os contentava na maior parte do tempo.
Obviamente passavam por maus momentos, mas sempre estavam lado a lado, bem como
recepcionando o sofrimento de todas as demais crianças com os peitos calejados
por um pranto que nunca os deixaria. Não eram os mais velhos, mas eram
respeitados como tal, pois estavam sempre unidos, sempre alegres, como pai e
mãe.
Como um casal, o que sempre garantia zombarias imperdíveis,
o que não os deixava muito felizes.
—E o que é que você não sabe sobre mim? —riu com
prazer, afastando-se para que Ingrid pudesse se acomodar ao seu lado. —Tome
cuidado para não fazer barulho! Logo eles vão sentir nossa falta, portanto,
vamos aproveitar o momento.
—Como se eu pretendesse fazer barulho!
—Vai saber, você é menina! As meninas são
complicadas, ninguém entende.
—Fácil é entender alguém que convida os outros
para assistir a um fenômeno e depois sobe no telhado sem esperar!
—Está começando!
Uniram as mãos delicadas, apontando com alegria
para a lua, agora uma esfera enegrecida no céu. A claridade da noite se
dispersou, restando apenas o pontilhado das estrelas, incontáveis e radiantes.
A escuridão durou pouco, pois logo o vento soprou um véu mágico, uma cortina de
cores e formas que tremulou na noite como a magnificência de um teatro
profissional, coisa que nenhuma daquelas crianças teve a chance de ver na vida.
—Que lindo!
—Fique quieta.
—Mal educado!
—Escute.
Ingrid não sabia o que escutar, mas logo
percebeu que algo curioso acontecia. Uma estrela cadente riscou o céu,
cantarolando uma melodia harmoniosa, mas sem significado. Fecharam os olhos, as
mãos cerradas numa carícia fraterna, fizeram seus pedidos secretos que mais
tarde seriam contados para todos. Abriram os olhos, a música continuou, outra
estrela despencou do céu. Atrás dela, uma terceira, e mais outra, e então
outras dez.
—Uau! Hoje temos pedidos infinitos para fazer!
—Vou pedir batons novos, nunca ganho o kit de
maquiagem que aparece na televisão.
—Você só pensa em maquiagem.
—É porque eu sou menina, Owen! Do mesmo jeito
que você só pensa em carrinhos e bonecos de plástico!
—Não foi esse o meu pedido!
—Ah é? Então qual foi?
Engoliu em seco.
Queria uma família para ele e para Ingrid, mas
tinha vergonha de contar.
Uma madeira rangeu nas proximidades.
—O que foi isso? —Ingrid.
—Tem mais alguém subindo! Você contou para mais
alguém?
—Eu juro que não!
—Então fomos descobertos, se esconda!
Ambos correram para o outro lado do telhado,
abraçando-se às antenas televisivas e à chaminé, o que não era capaz de
escondê-los por completo. Assistiram enquanto mãos alcançavam as telhas com
suavidade, puxando um corpo esbelto de boneca para a superfície nevada e
escorregadia onde estavam sentados. Owen estranhou, mas logo reconheceu aquela
pele macia, similar ao tapete de flocos que escondia o telhado do casebre. Era
Cecília, ou simplesmente Ceci, a professora mais legal de todo o mundo!
Responsável pelo aconchego das manhãs, lecionava de maneira única e
extrovertida, ensinando com brincadeiras que deixavam qualquer matéria
aprisionava na mente de cada um dos órfãos com uma facilidade que somente ela
possuía. Ceci era a professora favorita de todos os alunos, e mesmo outros
instrutores aceitavam este fato sem ciúme algum, pois o carisma presente na
humildade daquela mulher era inacreditável. Era como um anjo, nascido com o dom
de animar as crianças; uma mãe para tudo e para todos.
—Achei vocês, danadinhos!
Ceci eram sempre brincalhona, e não conseguia
alterar seu comportamento nem mesmo na hora de castigar. Puxou suas longas
vestes para sobre as telhas e, com um sorriso, se aproximou das crianças, que
deixaram os esconderijos para correr até a amiga.
—Professora Ceci —em coro.
—Não corram, meus queridos —com alegria
contagiante. —É perigoso, não queremos ninguém machucado na semana que vem. O
que estão vendo aqui?
—Olhe aqui, professora —apontou Ingrid. —Olha
que coisa mais linda!
Era realmente magnífico, Cecília comprovou com
facilidade. Deixando-se sentar ao lado de seus alunos, a professora admirou o
eclipse, as estrelas, a Aurora Boreal, tudo aquilo reunido numa apresentação
divina. Fez sua prece, e não se conteve em fazer um pedido ao ver mais uma ou
duas estrelas cadentes desbravarem as galáxias.
—Que fantástico! —aplaudiu com vigor.
—É maravilhoso, não é?
—Realmente! Mas vocês não vão escapar da minha
bronca, tudo bem? Subir no telhado é perigoso, Ingrid.
—Mas foi o Owen quem me convidou!
Owen se espantou com a atuação convincente de
sua companheira.
—Ora, Owen, você deveria saber que não pode se
arriscar aqui, muito menos nessa época de neve! É fabuloso ver essa cena no
céu, mas podemos vê-la pela televisão ou nos portões de entrada. Vamos descer
agora, está bem?
—Sim, professora!
Ingrid foi a primeira a descer, usando de uma
cautela incomum, substituindo a destreza irregular de criança e garota. Owen a
acompanhou de perto, como um macaco de doze anos de idade, ágil e esperto nos
movimentos. Saltou para o solo com manha de alpinista, ilustrando sua
performance com agradecimentos a uma plateia imaginária, Ingrid sorriu.
—Professora, você já pode descer! —avisou ele.
—Meu fãs já escolheram que eu fui o melhor, mas você pode tentar ainda assim!
—Eu já estou indo —brincou Cecília.
Aquelas foram as últimas palavras que as
crianças escutaram da professora.
Tudo foi muito rápido.
Ceci gritou bem alto, como se escorregasse no
telhado, mas não caiu para lado algum. Ingrid circundou a casa, esperando do
outro lado por algum sinal da professora; Owen se preparou para escalar outra
vez, apoiando no pinheiro que alguns órfãos plantaram anos atrás. O céu
oscilou, as luzes ribombaram num clarão descomunal, cegando por instantes todos
aqueles que estavam fora de suas casas.
Crianças e adultos gritaram, assustados e maravilhados
com aquela fantasia. Quando a luz voltou, todos eles gargalhavam, saltitando
pela alegria de tal momento.
Cecília não gritou, não sorriu e não saltitou.
Ceci desaparecera.
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