Continuando a postagem dos trechos, trago agora um pequeno pedaço do primeiro capítulo de Elo de Chamas Negras, um romance ambientado em Elhanor, com uma fantasia medieval mais "suja", próxima do dark-fantasy. Elo também foi concluído ano passado (2011) e conta com aproximadamente 85000 palavras. Sem mais demoras, vamos à pequena introdução do texto.
I.
Mente e Alma
Doze pernas aceleravam, ritmadas sobre
rochas disformes e calorosas. Quatro delas terminavam em cascos de cavalos, mas
não eram de um animal.
Eram cinco. Valentes, pela eternidade,
unidos.
Fugitivos, agora.
Corriam de algo maior, incapazes de
afrontar. Erraram, a bravura os convencendo a tentar o absurdo, a insolência
obrigando-os a desbravar terras desconhecidas. Por fim, notaram o erro, mas já
era tarde. Fugiam feito crianças temerosas, braços de sombra os cercavam, almas
em dor infinita voejando pelos arredores. Um deles foi ferido pela magia, o
corpo castigado. Outro, amaldiçoado pela vida, pelo sempre.
Escaparam, ainda assim.
Não sozinhos.
Havia fogo, e fogo negro. A fogueira
incendiava uma pilha de corpos, e muitos deles gritavam, sem abrir os olhos ou
as bocas. Gritavam, mesmo que mortos, as peles destruídas pelas chamas, a
fumaça desenhando horrores sem nome no que seria o céu. Mas não havia céu.
Havia um teto, de nuvens empoeiradas e
cinzentas, uma pintura sofrível e tenebrosa, o anil bruxuleante mudando de tom
e forma, em violeta, azul-marinho, verde-musgo, laranja. Girava, e tudo parecia
girar junto do que se postava no lugar do céu, as falsas nuvens riscando a
imensidão inacabável, a superfície acima do solo manchada por um sangue inumano.
Dez braços, todos suados pelo esforço,
alguns deles frágeis, despreparados para a batalha. Portavam armas, mas elas
não eram o suficiente. Lâminas cintilavam, o ferro e os demais tipos de metal
banhados pelo brilho da lua inexistente naquela noite sem fim. O cheiro de
enxofre tinha forma, uma névoa sinistra e venenosa, que impregnava as vestes e
os cabelos, incomodava as narinas.
Cinco aventureiros, sem medo,
perseguidores de sonhos e realidades. Agora perseguidos, a liberdade tão
próxima, a morte entrelaçando os dedos em suas mãos destemidas.
Atrás deles havia olhos e garras e
chamas.
E o fogo negro guinchava.
O pistoleiro abriu os olhos, o sono
frágil incomodado pelo farfalhar das folhas escuras, murchas e sem vida, somado
aos murmúrios sonolentos daquela que o acompanhava. Ainda dormia, agarrada aos
joelhos, os lábios molhados pela saliva do cansaço, a pele perdendo a pouca cor
que tinha, pálida pela fome e pela falta da água saudável. Os cabelos sacudiam
pela brisa leve, o acampamento simplório incapaz de protegê-los do frio,
tampouco da chuva que viria a seguir.
O vento soprou diferente, o cheiro
mudou.
Estavam próximos.
Uma das mãos buscou a jovem, que se
esgueirou do toque, recusando-se a levantar. Insistiu, ela praguejou. A mão
livre buscou um cigarro, trouxe-o à boca, o acendeu. A fumaça das ervas
cheirava forte, ainda que menos do que o odor carregado pelo vento.
A garota abriu os olhos, delicados e
sinceros, as íris peculiares, uma verde, uma azul, ambas tão claras quanto as
águas de um rio límpido. Não que houvesse algo assim por perto.
—O que aconteceu? —perguntou ela,
vagarosa nas palavras e nas ações. Levantou-se, apoiou os braços nas pernas,
espreguiçou.
—Faça silêncio —murmurou o pistoleiro,
a voz como um sopro, áspera e cortante. —Não estamos sozinhos.
Os olhos de duas cores ficaram foscos,
dilataram. Ela se agachou, buscou esconderijo, mas não havia. Havia apenas as
montanhas, o céu negro e soturno ao redor, o solo distante, muito abaixo dos
pés. Os Montes do Arcanjo foram um
lar durante diversos dias. Contavam quinze luas, mas talvez fossem mais, pois
não havia sóis, e o tempo era tão inimigo quanto aqueles que os perseguiam. A
comida era mínima, nada mais que feras caçadas, fervidas no fogo rústico, na
madeira improvisada pelo corte de árvores magras. A bebida era racionada, e
restavam poucos cantis, o líquido sacudindo, preso ao cinturão do pistoleiro,
junto de suas amigas inseparáveis.
Eram duas, uma metálica e prateada,
outra pintada e sombria, os canos largos, fora do comum, tiras de cobre
circundando o ferro. Mente e Alma, seus nomes, caracterizando-as como
especiais, acompanhantes de uma vida toda, e além. As armas de fogo tinham
outro traço diferente dos convencionais: seus tambores e carregadores não
possuíam munições. Não havia pólvora, e os canos não se manchavam pela imundice
negra que ardia após o tiro. O disparo era ocasionado pela junção de duas
coisas, uma habilidade, um talento, um dom.
Mente e alma.
O pistoleiro era tão incomum quanto as
armas que portava. Sua habilidade era peculiar, rara em Elhanor, submersa num mar de intrigas e preconceitos. Dominava o
espírito e seus caminhos, a mente, o controle psíquico. A vontade lhe garantia
uma munição infinita, tão forte quanto seus pensamentos, capaz de violar metal,
entortar escudos e armaduras, desviar-se de um alvo indesejado. O psiquismo era
uma benção, mas também um empecilho. Complexo, custando o sofrimento para que
se desenvolvesse, trouxe ao àquele homem tomado por cicatrizes olhares de
desprezo, maltrato e uma fama aterrorizante. Chamaram-no de louco, atiraram
pedras, ofenderam. Esse era o povo, sempre discreto e respeitoso quanto às
diferenças, desde as épocas mais remotas de Elhanor.
Ainda assim, Julius seguia.
Estava acostumado ao preconceito, às
dificuldades, à vida árdua que lhe atordoava. Acima de tudo, tinha uma missão,
por mais que a memória lhe privasse de muito de seu passado. Restavam as
lembranças ruins, da infância, da adolescência, dos pais que muito lhe
torturaram. Havia uma lacuna, e ela lhe intrigava.
Após seu lapso, havia Brenda, e ele sabia que deveria guiá-la,
impedir que algo acontecesse a ela, que a garota sofresse.
Sabia o que deveria ser feito.
—Como eles nos encontraram? —a voz
trêmula, agarrando os braços de Julius conforme seu medo se ampliava.
Tragou, de olhos fechados, fumegou.
—Você cheira bem —respondeu.
—Mas eu —
—E o mundo cheira mal. Chama atenção,
no fim. Ninguém engana aqueles farejadores.
O teto negro que era o céu rutilou, o
lampejo de um trovão irradiando, seguido de perto por um estrondo. Uma árvore
distante incendiou, os galhos retorcidos na função de membros, sacolejando pela
dor de queimar. O fogo rubro se erguia, iluminando a noite silenciosa, o
crepitar das chamas como uma melodia de incontáveis bardos, uma banda de
estalos e ruídos estridentes. A fumaça subiu em espirais, e o cheiro logo
alcançou o pistoleiro e a jovem, somados ao turbilhão de outros odores que os
circundava.
—O mundo realmente cheira mal
—completou ele.
E então, o raspar do solo, garras
riscando a terra das montanhas. O cume estava distante, mas mais distante era a
planície, e o som estava perto. Muito perto, praguejou o pistoleiro em seu
monólogo mental, as armas deslizaram para as mãos. Concentrou-se, seguiu o som,
os olhos se fecharam numa atenção diferenciada. A garota correu para trás do
muro que era Julius, fez de seu corpo um escudo.
O primeiro dos monstros saltou, a
rajada de Mente o encontrou ainda no ar, fez seu corpo tombar inerte, as seis
patas apontando o céu. Havia outros quatro farejadores,
todos igualmente carnudos e de pelugem grossa, os focinhos vermelhos em
destaque no corpo escuro. Eram sombras, cães com vultos de corpos, as costas
largas e truculentas, maiores do que de cavalos. As bocarras mostravam-se
encharcadas pela saliva, os olhos de um rubro sanguinolento. Pisavam nas
montanhas com pancadas firmes, alguns corriam. Cinco, um sem vida, quatro sem
medo.
Atacaram.
Oito patas deslizaram pelas montanhas,
lançando areia conforme avançavam, Julius empurrou sua protegida para trás,
deixando-a cair sentada. Girou o corpo, atirou duas vezes, um farejador caiu.
Os disparos mentais escapavam pelos canos metálicos, os tambores rodopiando,
buscando as munições inexistentes. Um farejador grunhiu, mirou a perna do
pistoleiro, abocanhou o ar. Julius se moveu veloz, pisou forte, ganhou os ares
com três disparos certeiros, outro dos farejadores tombou. O quarto lambia os
lábios, os olhos fixos no pistoleiro, mas sua agilidade era inacreditável.
Mesmo os selvagens eram enganados por sua precisão, os movimentos inesperados,
as pernas o levando às costas da criatura, montou-a. Guiou, bateu com as botas
para controlar a direção, usou de seu oponente para extinguir a vida da última
das feras. Por fim, escorregou por seu corpo, agarrando a pelugem escura com os
braços preparados, e a mão livre disparou com Alma, perfurando o corpo pesado
do monstro, que derrapou, caindo pela encosta até o sopé, enquanto Julius
saltava para longe do perigo.
—Elas não vão parar, não é? —perguntou
a garota.
Queria dizer que sim, mas não mentia
para crianças.
Ao longe, outros dez farejadores
avançavam, uivando para a noite.
—Quem dera.
Correram.
Julius puxava Brenda pelo braço, as
mãos unidas, como pai e filha, mas não o eram. O pistoleiro nunca teve filhos.
Sequer uma esposa. Achava que Brenda era o mais próximo de uma prole que
poderia ter em sua vida, e estava feliz assim.
Encontrou-a logo nos primeiros dias de
sua estadia naquela paisagem sombria. Eterno
Circo era infernal, mas talvez toda aquela ilha o fosse. A cidadela
maltratava seus moradores, em suma escravos das criaturas abissais, dos
meio-demônios, dos circenses obscuros. Havia muita maldade, e pouco espaço para
uma criança como Brenda. Julius a encontrou. Não encontrava um espaço para si
mesmo.
Decidiu partir, e a levou consigo.
Sacudiu a cabeça, ignorou as
lembranças. Precisava focar-se apenas em sua missão, protegê-la, levá-la até o
fim daquela jornada. Precisava alcançar a Fenda
dos Espíritos, o local que via em seus sonhos, que Brenda via em seus
vislumbres. Lá, sua missão teria um fim, e ela poderia se guiar sozinha.
Lá, Brenda seria uma deusa.
Mas a torre estava distante, e os
farejadores estavam cada vez mais perto.
Brenda corria, o esforço lhe custando
o ar, as pernas curtas dificultando a movimentação. O braço estava seguro nas
mãos de Julius, que avançava à frente, guiando por entre as curvas das trilhas
montanhosas. Um pedaço de terra se desfez, os passos se tornaram vagarosos,
criaturas caíram quando os caminhos se estreitaram. Brenda escorregou, mas
Julius a ergueu em um dos braços, os músculos implorando pelo descanso que
nunca vinha.
Havia vinte farejadores, talvez mais.
Atrás da dupla, os corpos se chocavam, a saliva manchava o terreno, os olhos
como lanternas de vermelhidão brilhosa. As patas marcavam o solo em que pisavam,
a marcha desenfreada acelerando, e os próprios monstros se derrubavam,
grunhindo pela queda, pela morte inevitável.
À frente, Julius e Brenda ofegavam.
Uma curva os fez deslizar, o peso do cansaço num esforço para levá-los à morte
iminente, o pistoleiro os salvou, segurando-se numa rocha. Subiram, a garota
empurrada à frente, uma garra cortou as costas do velho, o sangue manchou suas
vestes. Chutou, derrubou um farejador, subiu com o impulso de seu corpo.
Ganharam altura, a trilha agora larga e disforme, voltaram a correr. Restavam
treze farejadores, sem obstáculos em sua perseguição, cumprindo seu papel de
caçadores.
—Eles vão nos alcançar —Brenda
murmurava, lágrimas no canto dos olhos.
—Não se correr mais e falar menos.
E o caminho desapareceu, restando
apenas uma parede de montanha, e uma plataforma miúda de rochas. Indicou para
Brenda, que seguiu vagarosa, Mente e Alma protegendo a jovem e o pistoleiro com
um escudo invisível.
Concentrou-se, mas a primeira das
pancadas fez o escudo oscilar, as mãos firmes nas pistolas. Brenda suspirou, o
medo torturando suas pernas, a rota esguia se tornando mais complexa. Um novo
corte foi feito, o escudo se rasgou como pele contra metal, a defesa ruiu.
Julius derrubou dois farejadores, outros onze saltaram, se esquivou.
Defendeu-se de uma mordida, dois cães caíram, outros cinco se puseram de pé.
Sem escolhas, correu na direção de
Brenda, abraçou-a com braços de seus pensamentos, e ambos caíram, rolando
dentro de uma esfera psíquica metros abaixo até que uma parede rochosa os
impedisse.
Brenda chorava, mas fingia estar bem,
como de costume. Os cabelos curtos voejavam, a brisa soprando com delicadeza a
pele alva da garota, os olhos multicoloridos demonstrando sua ingenuidade.
—Vamos ficar bem? —perguntou, trêmula.
—Como sempre ficamos.
—Nunca estamos bem.
—Estamos vivos, e isto basta.
—E quando vamos parar de fugir?
Ouviu-se o ruflar de asas, e um par
delas se ergueu, junto de um falcão de plumas de aço, os olhos enfeitiçados
pela existência da garota, que não conteve o grito. Julius se ergueu, postou-se
à frente da protegida, Mente e Alma carregadas por sua vontade, por seu
espírito.
—Que tal agora? —sorriu, ansioso. —Eu
odeio fugir.
E atirou. Enfrentou a ave de metal, os
disparos refletidos por seu corpo mágico, o psiquismo defendendo Brenda mais do
que o próprio pistoleiro.
O pássaro guinchou alto, pousou à
frente de Julius, mordiscou um de seus braços, fez sangue escorrer. As pistolas
despejavam o invisível, rajadas velozes pelo ar. O pistoleiro correu, saltou
sobre uma das patas, cravou as unhas para escalar, puxou as penas, pisou na
escadaria metálica improvisada e se atirou nas costas do falcão, erguendo-se de
imediato. As pistolas fincaram-se no metal, auxiliadas por chutes fervorosos. A
ave se debateu, tentou derrubar seu agressor, não conseguiu. Seis disparos, e o
peito se abriu, formando um túnel por onde passaram as rajadas.
O falcão cambaleou, gritou para os
céus, caiu sem vida.
Brenda correu até Julius.
—Eles nunca param! —assustada. —Faça
eles parar!
Julius sacudiu seus cabelos. Guardou
as pistolas, esmagou ervas nas mãos, preparou os papéis, acendeu novamente um cigarro.
—Tudo vai acabar, garota. Agora pare
de ser medrosa e se torne mulher de uma vez.
Esconderam-se nas montanhas, uma
pequena caverna lhes servindo de abrigo. A chuva chegou, primeiramente
tranquila, mas logo uma torrente que fez dos Montes do Arcanjo uma cachoeira
chorosa. Farejadores perseguiam, mas a água atrapalhava as buscas. Outras aves
rodeavam a caverna, mas a escuridão era um manto que os protegia. Brenda
adormeceu, jogada a um canto da gruta.
Julius desabou, exausto.
Todos os dias eram como aquele.
Perseguições, ataques de monstros, perigos assombrosos. Cada dia tornava mais
difícil acreditar que chegariam vivos ao destino. Cada instante tornava mais
impossível acreditar na sobrevivência da garota. Felizmente, o pistoleiro era
bom em uma coisa, acima de todas as outras.
Desacreditar.
Dormiram, sem palavras.
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