O trecho de agora é especial, pois trata da obra que considero minha favorita até então: A Dança do Espectro. Com suas 50000 palavras, aproximadamente, essa novela foi o primeiro texto grande que escrevi com o gênero fantasia urbana, e gostei bastante do resultado. Trago agora as primeiras palavras do Ato I - Solidão, e espero que admirem a leitura.
Aquela
era uma garota alegre.
Todos
os dias, abria os olhos e os lábios, sorria ao despertar. Agradecia a apenas um
Deus, ao Criador, por sua vida, por sua família, por sua saúde. Por seu mundo.
Sentava-se à mesa com seus pais, unia suas mãos delicadas às deles, oravam
juntos para que os belos dias de primavera durassem uma eternidade. Conversavam
sobre a escola, sobre o trabalho, sobre os afazeres domésticos. Conversavam
sobre o irmão, que ainda descansava dentro da barriga inchada de sua mãe,
brincavam com a pele maltratada pela criança. Sorrindo, sempre, felizes.
Naquele
dia, foi diferente. Acordou, sentiu-se vazia, a solidão era quase palpável. O
cabelo cor-de-cobre estava despenteado, não se preocupou em ajeitá-lo. Lavou os
olhos de mel, enxugou o rosto macio na toalha esmeralda, caída ao chão, escovou
os dentes assim que encontrou o creme dental e sua escova. Desceu as escadas em
espiral, apoiando-se no encosto de madeira surrada, saltou os degraus que não
pareciam confiáveis, alcançou o térreo. Desviou-se dos móveis desorganizados,
empurrou as ruínas de um lustre para longe. Sentou-se à mesa, o café não estava
preparado. Puxou sua cadeira, era a única a ser ocupada, e assim seria para
sempre. Debruçou-se sobre a imundice no mármore, refletiu sobre o que acontecia,
nada lhe vinha à mente além da tristeza e do vazio.
Naquele
dia, a garota alegre, que sempre sorria, chorou.
Lydia
viu o mundo acabar. No escuro de seu quarto, um cômodo miúdo de segundo andar,
viu quando o céu negro foi envolto por um clarão escarlate. Naquele dia,
discutira com os pais sobre um possível namorado, por mais que seus quinze anos
já lhe permitissem certas regalias. Ofendera a mãe e sua proteção excessiva,
evitara as palavras do genitor. Sentia-se presa a uma família de tradições, de
costumes rígidos, de modos antepassados. Atirada em sua cama, escondida no
edredom bordado pela avó, que há muito já partira daquele mundo emporcalhado,
desejava ser livre.
Quando
acordou, tinha sua liberdade.
Escondeu-se
novamente nas cobertas, desejou que fosse tudo um pesadelo.
Não
era.
Esperou
que a porta fosse aberta, que a mãe lhe alertasse sobre o atraso para a escola,
que o pai gritasse que o café da manhã estava pronto. Aguardou por horas, não
comeu, recusou a água, o corpo praguejou por sua greve desnecessária, mas as
pernas não a obedeciam. Reuniu as forças que restavam, sentou-se no colchão de
molas, os pés descalços encontraram o chão. Desceu, temerosa, sentou-se à mesa.
Permitiu-se
chorar como criança, por mais que lutasse para crescer, para que a vissem como
adulta. Desabou num sofrimento tardio, chorou faminta, a garganta estava seca.
Depois da tristeza, a revolta. Levantou-se, derrubou a mesa, chutou o ar,
gritou. Arrancou cabelos, socou a geladeira, dois de seus dedos sangraram.
Berrava.
Caminhou
até a porta, os olhos já arroxeavam pelo pranto que a aturdia. As mãos se
uniram, trêmulas, alcançaram a maçaneta de alumínio, hesitou. Não sabia o que
encontraria no mundo, mas sabia que algo estava diferente. Sentira a mudança
que se sucedeu na noite, algo terrível acontecia. Acordara sozinha, sem uma
família para dividir os problemas. Largou a saída para trás, recuou, subiu
novamente as escadas. Não sabia o que acontecia, não sabia o que fazer. Tinha
medo das respostas, mas a curiosidade lhe obrigou a se aproximar do quarto dos pais.
Baixou os olhos, abriu a porta, o metal rangeu pelo movimento. Sentiu as
narinas coçarem pela poeira, tossiu quando se embrenhou no breu. Tateou as
paredes em busca do interruptor, mas não o encontrava. Seguiu, como cega, até
que alcançasse as janelas de presídio devidamente instaladas pelo pai, sempre
atento à segurança, por vezes um tanto fanático quanto ao assunto. Destravou o
lacre, empurrou as cortinas, abriu as vidraças e a madeira decorada, deixou que
o céu escarlate tocasse o cômodo.
Lydia
se orgulhava dos pais. Eram firmes nas decisões, certamente, o que sempre fora
um empecilho em suas passeatas de adolescente. Ainda assim, serviam-lhe de
apoio em todas as horas, seja para conversar sobre assuntos em particular, seja
para apoiar alguma decisão que os amigos zombariam. Estavam ao seu lado quando
era preciso, mesmo quando não era. Eram pais, talvez os melhores do mundo,
talvez como outros quaisquer. A grande diferença é que eram os seus pais, e de
mais ninguém. Seriam divididos com seu irmão, em alguns meses, mas isso não era
um problema. Lydia não era egoísta, por mais que admitisse gostar da bajulação
de filha única.
Não
teria que dividir os pais, de qualquer modo. Não mais os tinha. A cama de casal
abrigava dois corpos, unidos até o último dos momentos, envoltos num abraço
carinhoso e amável. Elena e Tales eram apaixonados, os álbuns de fotos antigas
eram prova concreta, mais de vinte anos de união e poucos problemas. Esbanjavam
beleza e afeto, jovens aprisionados nos semblantes cansados de seus trinta e
sete anos. Mesmo na morte, mantiveram-se juntos, os rostos colados. Lydia não
quis acreditar, mas os lábios próximos mostravam um beijo que nunca chegou a se
concretizar, por mais que o esforço de ambos tenha-os mantido unidos após o
terror que assolou a noite.
Lydia
alcançou os interruptores, tentou acender as luzes, a eletricidade não
respondeu. O mesmo acontecia com os abajures e com as televisões de toda a
casa. Tudo o que era eletrônico não respondia, mesmo o celular que guardava
consigo, abaixo do travesseiro, usado para trocar mensagens com suas amigas de
escola. Admirou o amor dos pais por mais alguns instantes, então desviou o
olhar, decidiu que teria de aceitar aquela tragédia. Nada traria seus genitores
de volta, mesmo a dor da perda seria inútil. Engoliu o choro, guardou o
sofrimento para si, mostrando-se forte. Era adulta, sempre desejou; agora,
tinha de ser, estava sozinha. Assombrada pelo pavor da solidão, Lydia reuniu
forças, respirou fundo, caminhou até a janela.
Olhou
o exterior de sua casa, e só então se deu conta de que o mundo havia acabado.
*-* Lindo Foldo!!
ResponderExcluirTesão, piá!
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