Disseram-me que aquela escola, ao anoitecer,
recebia a visita de uma antiga aluna amaldiçoada.
Discordei.
Como todos eram covardes, resolvi que era necessária
uma visita, uma comprovação. Alguém tinha de se aventurar, de desbravar aquele
mito, saltar os muros da velha escola abandonada e mostrar para a cidade toda
que eles viviam numa mentira tola e indiscreta. Este alguém era eu, obviamente.
O único com um pingo de consciência, capaz de distinguir a realidade de uma
lenda barata e boba.
Com uma lanterna em mãos, esgueirei-me nos
portões para alcançar o pátio principal.
Havia muitos destroços espalhados, marcas de
uma reforma antepassada que nunca chegou a ser concluída. Os vestiários foram
derrubados e largados como estavam, o refeitório era nada além de uma pilha de
tralhas e canos rompidos. Passei por tudo aquilo sem me importar, conhecia a
história.
O alvo era a biblioteca.
Os medrosos contavam sobre uma aluna que sofria
nas mãos dos valentões. Ela era estudiosa, gostava de se dedicar, de mostrar
sua inteligência. Eles a odiavam. Desprezavam sua dedicação, seu carinho para
com os professores. Na verdade, mesmo os professores não a admiravam. Sabe como
é, ninguém gosta de quem se destaca demais. Os homens são invejosos, sempre
são. Ali, todos eram iguais, ela era a diferente.
Ela precisava sumir.
Sofrendo na zombaria de seus colegas de classe,
a aluna enlouqueceu. Recusou-se a frequentar as aulas por duas semanas, os pais
insistiam em vão. Conversaram na diretoria, falaram pessoalmente com cada um
dos professores. Eles prometeram ajudar, incentivá-la. Tudo parecia bem. A
garota aceitou voltar às aulas, respirou fundo, caminhou com dificuldade pelo
mesmo trajeto que eu fazia naquele instante. Entrou em sua sala, sentou-se,
despejou o material na carteira.
Foi aí que a surpreenderam com uma brincadeira
que ela jamais esqueceria.
Cobriram seus olhos com uma venda, amarraram-na
com um saco escuro e a arrastaram até a biblioteca. Ela se debatia, derrubava
livros e estantes, tentava gritar, forçar sua voz através das mãos que a
impediam de urrar em pavor. Professores assistiram, coordenadores viraram as
costas àquela desavença. Era o preço a ser pago por quem se destacava. A
diretora, a única pessoa que poderia protegê-la daquele povo maligno, não
estava presente.
Ela foi espancada. Abaixo da sacola que
extinguia seu oxigênio, a garota sangrava, sentia-se fraca, zonza. De súbito,
parou de se mover. Livraram-na da brincadeira, disseram que ela podia ir embora
se quisesse. Ela não foi. Não se moveu. Não mais podia.
Estava morta.
É claro que discordo de grande parte dessa
lenda. Nenhum corpo docente permitiria que uma aluna fosse violentada daquele
modo, acredito eu. Mas é essa a graça das lendas urbanas: elas não passam de
mentiras. Mentiras grandes, mentiras que pioram ainda mais quando começam a
falar sobre a garota que voltou, que buscou cada um de seus agressores, que os
matou dentro da escola. Quem acreditaria nessa história? Eu não sou uma
criança, não sou um bebê que se amedronta com contos de terror. Fantasmas não
existem, mortos não voltam, e eu seria a prova viva de que aquilo tudo não
passava de mentira.
Passei à frente da diretoria, espiei pelo vidro
quebrado. Tudo estava em ruínas. Virei ao fim do corredor, segui o mapa
desenhado na parede por outras duas quadras de salas, atravessei um pavilhão e
então a encontrei: a biblioteca. Lá estava ela, a lendária localidade onde eu
seria capaz de encontrar o espírito da garota
Abri a porta com as mãos, apontei a lanterna
para a escuridão daquele local. Nada. Silêncio e escuridão, nada além disso.
Sorri sozinho. Povo idiota, pensava. Crianças de ensino médio, medrosos.
Sentei-me numa estante caída, acendi um cigarro. A fumaça desafiou o breu,
desenhou formas horrendas. Soprei o vício para o ar enquanto brincava com o
cone de luz que tinha em mãos.
Foi quando ouvi um murmúrio.
Quem está
aí?,
perguntei, mas não tive resposta.
Um livro caiu, ao longe.
Levantei-me, iluminei os cantos da sala.
Nada.
Uma risada.
Quem está
aí?,
repeti.
Seja quem for, me ignorava. Alguém estava
pregando uma peça em mim. Alguém estava tentando me assustar. Não permitiria que
isso acontecesse, no entanto.
Uma estante rangeu ao ser arrastada no piso
empoeirado.
Apontei a luz, não havia ninguém.
Percebi que suava frio; achei-me um tolo.
Você acha
que pode me assustar, é?, provoquei.
Um vidro estourou em algum lugar, num baque
surdo. O estrondo ecoou nos corredores. Uma outra estante rangeu, um novo livro
caiu.
Apareça,
seu idiota,
desafiei, mas falava sozinho.
Foi quando eu a vi.
Estava ali, como se sempre estivesse, à minha
frente, bem próxima. Tinha um sorriso no rosto, a pele tão clara quanto uma
boneca. O cabelo estava umedecido; não era água. Ela sangrava, sua testa ferida
por marcas miúdas.
Você está
bem?,
perguntei.
Ela riu de mim. Riu enquanto caminhava, as
pernas tortas, os braços em ângulos indescritíveis. Eu era incapaz de me mover.
Ela ria, ria cada vez mais, mais alto, macabra e assustadora.
Quem é
você?
Mas eu sabia quem era ela. Ela que estava ali,
raivosa, que sempre sofrera. Ela que voltara para se vingar, e que a vingança
não mais permitiu que partisse. Ela que, agora, só queria descansar, deitar-se
para sempre, repousar para esquecer a vida curta que tivera.
Eu nunca acreditei em fantasmas, nunca
acreditaria.
No fundo, sabia que aquela garota só poderia
deixar aquele lugar quando outro alguém se entregasse a ela.
No fundo, sabia que ela estaria feliz, em algum
outro lugar, enquanto outro ficaria ali, para sempre, esperando a sua vez de
partir.
Sentei-me sobre uma estante, joguei os cigarros
fora. Não tinha vontade fumar. Joguei a lanterna também; não precisava mais de
luzes. A escuridão era boa, agradável. Me permitia pensar, e teria um tempo
incontável para pensar.
Queria voltar para casa, mas esqueci onde
morava, com quem morava e até mesmo meu nome, portanto decidi ficar ali.
Um dia seria eu a receber uma visita.
Um dia seria outro a se prender em meu lugar.
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