quarta-feira, 27 de março de 2013

Conto - Fada do Dente



Aquela coisinha me irritava profundamente.
Antes, doía. Agora, depois de tanto tempo (um tempo que eu sequer sabia contar, na verdade, pois poderiam ser dias, semanas, meses, mas eu acreditava que eram muitos e muitos anos), eu já estava acostumada. A dor não era mais um problema, não mesmo. O problema era aquele barulho, aquele ruído miúdo e trágico, capaz de me recordar, a todo momento, o quão fraca eu era para sofrer horrores nas mãos de uma criaturinha tão ridícula.
Amarrada como eu me encontrava, acorrentada pelas mãos e pelas pernas num cômodo escuro, como o quarto de um sequestrador, eu sentia meus músculos palpitarem. Às vezes, no silêncio musical da minha loucura, podia acreditar que ainda havia esperanças. Era um pensamento frágil, delicado e tolo, mas às vezes ele surgia e, por trás de meus olhos já acostumados à escuridão, eu via a luz do sol, aquela luz que entra pelas frestas das janelas e portas abertas, a luz que eu já não via há semanas.
Então as grades se abriam, e ela chegava.
Era tão pequena que eu me sentia insignificante. Pequena em proporções, sim, possivelmente menor do que meu antebraço, mas dotada de uma força colossal. Se eu contasse, ririam de mim na escola, em casa e em qualquer outro lugar, então eu jamais contaria. Não teria oportunidade, de qualquer maneira. Não mais. Mas eu não contaria, mesmo que pudesse. Seria humilhante para mim, para todos. Humilhante demais.
Ela me parecia um pássaro com pernas e braços, azul, ou verde, ou de ambas as cores e muitas outras. Com o tempo, na escuridão, perdi a noção de como diferenciar as cores. Era tudo preto, e o resto, não preto. Tinha outra cor, mas para mim era somente o escuro e o claro. Ela era clara, não preta, mas poderia ser das cores do arco-íris. Tanto faz. Com suas asas de penas e membranas, ela voejava, sempre risonha, como uma hiena do tamanho de uma mão, talvez menor. Seus olhos, tão pequenos que eu mal os via, fixavam meu rosto com uma feitiçaria macabra e apavorante, e ela ria, sem dente algum, e eu também ria, com os dentes que me restavam.
E aí ela arrancava mais um deles com as suas mãozinhas, e eu sangrava mais uma vez, mais um dia, e meu corpo todo latejava na amargura de existir. Depois ela ia embora, sem falar nada. Antes de sair, no entanto, jogava uma moeda, e ela se empilhava nas centenas que jaziam no canto de minha prisão.
Eu me arrependi de escutá-los. Acho que todo mundo se arrepende um dia de ter escutado alguém, alguém que disse alguma coisa que, naquele instante, pareceu vantajosa, mas logo depois se mostrou a pior das situações. E, como todo mundo, eu me arrependi também. Eles me disseram que ela traria uma moeda, e eu acreditei. Quando o primeiro de meus dentes caiu, eu o coloquei sob o travesseiro, como disse minha família. É só um dente, pensei. Por só uma moeda.
Vale a pena, não vale?
Desde então, sou alimento, sou presa, sou um depósito que mata a fome a qualquer hora. Não sou a única, eu acho. Tem dias que eu escuto alguns gritos, gritos agudos, como os meus um dia foram. Sei que aquelas pessoas vão sofrer o que eu sofri, e depois se acostumar. Em tempos, vão parar de gritar, mas não de sofrer. E vão se arrepender, como eu me arrependi.
Elas, assim como eu, nunca mais vão desejar receber uma moeda da fada dos dentes.

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