quarta-feira, 21 de março de 2012

Crônica - Última Gota

Olá, companheiros.
A segunda crônica do blog já é ficção, hehe. Sem mais demoras, vamos à leitura!

Última Gota

A armadura de placas era pesada demais, como nunca antes fora. O ferimento era um abismo de vermelhidão, criando um sofrimento vagaroso, a pressa como inimiga da perfeição desde os primórdios. Sobre os joelhos de guerreiro, arranhados e desprotegidos, pairavam sua honra e sua espada, e nada mais seria necessário.

Enquanto sangrava à frente de seu carrasco, pensava no que se passara há tempos.

Quando criança, tinha o pincel nas mãos. Assim há de ser, pois aquele que domina o pincel há de se acostumar com a espada, simplória e fatal. Rabiscando ideogramas nas paredes de seu templo, era um garoto, um aprendiz no meio de tantos outros samurais. Usando de um controle técnico, escrevia as mensagens indicadas por seu mestre, seu genitor, errava por vezes; achou impossível de início, mas agora se acostumava com a tinta e os fios negros de seu instrumento.

O pai lhe dizia que, caso desejasse ser um samurai, precisava ter o pincel como uma extensão de seus próprios dedos, pois sua espada seria o restante de seu braço. Não se sentia bem com aquela ideia. O pincel parecia tão longínquo, tão incapaz. Uma tremenda tolice, pode-se dizer. Nada disso fora proferido, no entanto; os pensamentos eram como esconderijo para suas vontades ternas.

Agora, era mestre do pincel, mas fraco na espada, e morria.

Não desejo alguém que hesite, bramia o pai, os olhos marejados num sofrimento caótico e inoportuno. Se não há honra, não há vida; o lema ecoava em sua mente, ricocheteando nos confins de seu cérebro. A espada cambaleou, tilintou contra o solo de madeira. Sangue, muito sangue, choroso e jorrado, resquícios de uma vida não digna, tampouco indigna.

Erguendo-se, disse que lutaria até a última gota, e assim o fez. Sem armas, sem vontade, sem pudor, atirou-se contra o mestre; esperou pelo abraço paterno, mas ele não veio. Veio a lâmina como um trovão, ríspida e tenebrosa, grunhiu como fera animalesca em seu anseio faminto. Há piedade nas famílias, mas não há famílias nos impérios; o militarismo samurai está sempre em primeiro lugar. Sempre soube disso, mas que diferença faria? Que filho não esperaria o entendimento do próprio pai?

As placas lhe abandonaram o corpo, deixaram-no nu para agonizar. Sangrava em borbotões, tossia em febre. O pai chorou sobre seu corpo, fervente pelo conflito, gélido pela desesperança. Não pai: mestre. E, como mestre, deixou-o para trás, para morrer.

Se não há honra, não há vida.

E a vida lhe passou ante os olhos; não fora uma boa vida. Não seria herói de livros, não seria rei de um império. Seria um corpo, um cadáver pútrido na imensidão de um cemitério. Seria terra e pó, sem honra.

Mas não se arrependia. Morria sem tirar o sorriso dos lábios.

Não queria uma segunda chance.

Faria tudo do mesmo modo, se houvesse.



Até a próxima!

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