13
ÀS
VEZES IMAGINAMOS A NOSSA VIDA NA BEIRA DE UM ABISMO. É a nossa chance de fazer
algo para mudar tudo, para tirá-la dali, da beira do fim. É a nossa chance de
evitar que toda a vida desabe de uma só vez, cedendo a todas as fraquezas.
Naquelas
palavras de Luciana, Mauro viu sua vida mergulhar na escuridão.
—Como
é que é?
—É
isso mesmo que você ouviu —continuou Luciana. —A gente... aquela noite. Eu tô
grávida. O exame não mente. Estou esperando um filho seu.
Mauro
desligou o telefone.
Podia
parecer frieza da parte dele, mas não era. Ele só não estava preparado para
aquilo, não mesmo. Não conseguia cuidar de si mesmo, não conseguiria cuidar de
Luciana, muito menos de uma criança recém-nascida.
Pensava
no que Daiana faria quando soubesse...
—Não
acredito nisso —dizia para si mesmo. —Eu não acredito que isso tá acontecendo,
não consigo acreditar. Mauro, seu merda, o que você fez?
Deitou-se,
tentou descansar, dormiu e acordou sem saber quantas horas se passaram.
Revirou-se na cama, tentou fechar os olhos outra vez, os sonhos não lhe
permitiram descansar. Bebeu água, tomou um banho, percebeu que não fazia isso
há algum tempo. Comeu uma fruta, vomitou mais uma vez, o estômago incapaz de
preservar qualquer alimento em seu interior. Deitou outra vez, fechou os olhos,
viu demônios e fantasmas, teve que abri-los novamente para evitar os gritos de
suas alucinações.
Inquieto
como estava, Mauro precisava sair. Sua casa era pequena demais para sua
angústia. Ajeitou suas coisas, vestiu a primeira roupa que encontrou, sequer se
perfumou. Amarrou os cadarços, tirou os sofás e os armários da porta de entrada
e saiu, deixando para trás o confinamento que lhe fazia se sentir protegido.
O
ar das ruas parecia agradável, diferente dos outros dias. O céu estava limpo,
as nuvens claras, o mundo, mundano. Nada parecia diferente, mas nada estava
completamente igual.
Mauro
andou, sem rumo, sem destino. Percebeu-se em frente à casa de Felipe. Decidiu
chamá-lo.
Era
um domingo, e o escritório não funcionava aos domingos. Logo Felipe estava ali,
vestindo um pijama maltrapilho, com cabelos desajeitados e olhos fundos. Ele
tinha esparadrapos no ombro esquerdo, como se protegesse um ferimento pequeno.
—Olha
só quem resolveu aparecer —zombou ele. —Tá vivo ainda, Maurão?
—Posso
entrar?
Mauro
olhava para os lados às vezes, como se esperasse que a qualquer momento um
monstro pudesse saltar da parede e engoli-lo.
—Claro,
entra aí.
Ele
entrou, com passos rápidos.
—O
que aconteceu? —perguntou Mauro, apontando para o ombro de Felipe.
—Ah,
isso? Eu me machuquei esses dias. Tenho estado muito distraído, sei lá. Acho
que não sei lidar com amigos loucos, não mesmo.
—Tem
acontecido muita coisa, Felipe, eu nem sei por onde começar.
—Então
nem começa, cara. Deixa eu te perguntar uma coisa antes: tem visto a Luciana?
Ela não apareceu no trabalho nesses últimos dias. O Rubens tentou ligar, mas
ela não atendeu.
—Não
tenho. Na verdade, nem sei se quero vê-la tão cedo, ou se posso vê-la. Eu não
sei o que fazer.
—Fica
calmo. Vou te ajudar a respirar.
Felipe
abriu uma garrafa de vinho tinto, oferecendo uma taça para degustação de Mauro,
mas ele acabou com a bebida de uma só vez.
—Não
é assim que se toma vinho, você devia —
Mauro
se sentou, e Felipe desistiu de ser amigável e risonho.
—Tá
legal, conta aí.
—Ela
tá grávida.
O
vinho no copo e na boca de Felipe conheceu o toque do solo.
—Como
é?
—Ela
tá grávida, Felipe! A Luciana tá esperando um filho meu!
—Então
tem um doidinho pra nascer? Caraca, pensei que você nem tinha executado o
serviço direito, mas pelo jeito —
—Não
tem graça, cara, presta atenção! —Mauro se exaltou. —Isso não podia acontecer,
não mesmo! Como é que eu vou lidar com isso tudo? Como é que eu vou contar isso
para...
Mauro
parou, engoliu em seco.
—Contar
para quem? —perguntou Felipe.
Respirando
fundo com uma calma que não possuía, Felipe respondeu.
—Para
Daiana.
Silêncio.
Os olhos de Felipe demonstravam incerteza, receio ou desprezo, tudo misturado,
como uma mistura asquerosa feita num liquidificador.
—Eu
sei que não devo explicações a ela, eu sei que ela é a minha ex-mulher, eu sei!
Mas cara, ela tá me perseguindo, seja lá qual for o motivo! Ela tem invadido
minha casa, tem me observado, isso tá me deixando louco.
Felipe
deixou a taça manchada pelo vinho sobre uma mesa no centro da sala e revirou
algumas gavetas da cômoda próxima ao televisor.
—Juro
que tentei fazê-la ir embora, eu juro mesmo —continuou Mauro, —mas ela insiste
em ficar! Eu não aguento mais, não sei o que fazer! E se ela descobrir que
Luciana tá grávida, ela... Não sei o que pode acontecer. Não faço ideia.
Sem
dizer nada, Felipe se sentou ao lado de Mauro, cabisbaixo. Como um amigo, como
um companheiro de horas boas e horas ruins, postou a mão sobre a perna de
Mauro, como se conhecesse toda a dor da loucura que o atingia.
—Você
não se lembra mesmo, não é? —disse ele. —O trauma deve ser grande demais.
Parece que sumiu da sua cabeça, e eu não imagino como isso seja possível.
—Do
que você tá falando?
Felipe
abriu as mãos e mostrou a Mauro uma foto surrada. Ela tinha um carro em
destroços, queimado por um acidente terrível.
—O
que é isso? —perguntou Mauro.
—Olhe
com atenção. Não acredito que você não se lembre.
Mauro
se concentrou, caçou em suas lembranças por algum significado para aquela cena.
Em sua mente, alguém dirigia. Uma mulher. Ela estava rápida demais, acelerando
para tentar afugentar os seus problemas. O ronco do motor impediam-na de se
recordar de seus erros, de suas escolhas, do caos de sua vida. Ela corria
demais, pisava no limite da aceleração, via o mundo nas janelas como um borrão.
O motor respondia, obedecia como um capacho suicida. Mas o motor não estava
bem. Ele estava fraco. Desajeitado, perversamente desalinhado para que o
desfecho não fosse outro além do planejado. Ela não sabia disso. Nunca soube.
Correu, acelerou, viu o mundo deslizar como uma figura rabiscada na sulfite amarelada.
A
memória se confundia. Um estrondo, uma pancada, um final infeliz ou feliz, aos
pontos de vista que não se encontravam. Sangue jorrou, o fogo fez a carne
cheirar a churrasco sem tempero. Ao fim, restou nada além da morte. Ela correu
para a própria morte, sem saber. Mas ele sabia. Ele escolheu assim. Ele a
desejava. Ele a queria para si, e ela não o aceitou. Um dia, fora dele, mas não
mais. Ele não sabia perdoar. Não sabia enxergar aquilo como uma alternativa.
Podia vê-la triste, mas não distante. Podia vê-la chorar, morrer, mas ainda
assim ali, ao seu lado.
—Eu...
me lembro agora.
Lágrimas
correram pelos olhos de Mauro.
—Você
me contou, um dia —disse Felipe, desanimado. —Eu não queria ter que conversar
com você sobre isso, mas... você não tá bem. Não é o mesmo cara que eu conheci
um dia. Sua memória tem falhado, você tá enlouquecendo.
—Fui
eu —Mauro balbuciou. —Fui eu o responsável.
—Nós
erramos, Mauro. Todos nós erramos um dia.
—Eu a matei! —Mauro explodiu,
derrubando sua taça vazia e virando a mesa de Felipe contra o chão. —Eu... eu
matei Daiana.
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