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MAURO
VIU OS POLICIAIS CHEGAREM. Eram muitos soldados, todos vestindo o mesmo
uniforme e o mesmo semblante. No chão, mutilado pelo ódio de um homem que
representava o povo, o assassino das meninas sangrava, mas ninguém sentia peno.
Os direitos humanos não funcionavam. Ele era um criminoso, dos piores. Suas
atitudes eram hediondas, seus crimes eram absurdos. Ele tinha que pagar, e o
preço era caro demais.
—Se
afaste —mandou um dos policiais, e Felipe obedeceu, mas não sem antes debochar
com seu maior sorriso da incapacidade de Mauro. O policial se voltou para
Mauro, que ainda estava ali, jogado ao solo. —Você tem o direito de permanecer
calado, e qualquer coisa que disser poderá ser utilizada contra você no
tribunal. Entendeu?
Tinha
entendido. A justiça não o entenderia, por sua vez. Ninguém acreditaria em suas
palavras. Sentiu falta de Luciana. Ela era cega para o mundo. Gostava dele, de
ouvi-lo, de acreditar em suas palavras. Apoiava-a. Ali, ninguém o apoiava. Sua
vida estava condenada, seu futuro era um fiasco. Mauro não tinha escolhas.
Dobrou
os joelhos e começou a se levantar.
—É
melhor que não se levante, ou vamos disparar!
Felipe
o fitava, ainda sorrindo.
—Esse
homem é louco —dizia ele, perverso. —Não deixem que ele se levante. Olhem o que
fez àquela garotinha!
Mauro
agiu no instinto. Por um momento, era animal, não homem. Louco e faminto como
um leão, forte e raivoso como um urso. Jogou-se, a faca em mãos, derrubou
Felipe com um golpe certeiro no peito, uma perfuração que o livrou do coração e
da capacidade de amar.
Mauro
não gritou, não se alterou, mas a faca rugiu dezenas de vezes antes que os
policiais tivessem coragem de atirar. Um deles iniciou a execução, abismado por
se deslumbrar com aquela visão animalesca que via. O tiro acertou a perna de
Mauro. Outro disparo feriu seu braço, um terceiro atingiu seu torso. Vieram
outros cinco, então mais dez. O corpo perfurado continuava a esfaquear, Felipe
agonizava, espumando. Já estava morto, mas Mauro continuava. Morreria em breve,
também.
Sua
vida precisava valer a pena.
Tiros
e mais tiros, e demorou para que a faca quedasse ao solo, tilintando como um
sino que alerta os religiosos o fim de uma cerimônia. Felipe não se mostrava
completo, nada além de uma poça de sangue, de um resto de carne disforme. Mauro
estava perfurado em lugares distintos, sangrava mais do que um ser humano
parece ser capaz de sangrar.
Ficou
em pé.
—Por
que você não morre?! —gritou um dos policiais. —Depois de tudo, depois de todas
as garotas, por que você simplesmente não morre?!
Mauro
abriu a boca, queria responder. O sangue vazou por entre seus lábios, escorreu
em suas roupas. A boca se fechou, fraca. Curvou-se: era um sorriso. Sorriu,
satisfeito. Morreria como culpado, mas era inocente. Morreria como derrotado,
mas era um vencedor.
Dobrou-se
nos joelhos e, por fim, tombou, e seus olhos se fecharam na queda, de uma vez
por todas.
OS
TELEJORNAIS NOTICIARIAM A MORTE DO MANÍACO DO CIRCO. As crianças estavam a
salvo, os pais se tranquilizariam. Outros homens de sanidade duvidosa veriam
naquele caso um exemplo, mas é isso o que os homens sempre fazem: imitam.
Idolatram, repetem as loucuras, refazem os mesmos erros. Sempre começa da mesma
forma.
Sempre
termina igual.
Rubens
assistira ao enterro de três de seus funcionários em pouco tempo, e aquilo não
seria agradável a nenhuma pessoa. Estava ali, encostado a uma árvore, escapando
da chuva. Sempre chove nos enterros. Para Rubens, chovia do céu, não dos olhos.
Ele não tinha motivo para chorar. Três pessoas fariam falta por alguns dias,
mas eram somente isso: três pessoas.
Ninguém
é insubstituível.
Outros
funcionários viriam. Outras mulheres interessadas em outros homens, outros
candidatos a vagas ambiciosas, outros loucos com dificuldades para se acostumar
com a rotina diária do escritório. No fim, todos eles aprendem. Dão seu jeito.
Antes deles, alguém fez, e os homens sempre refazem, sempre copiam. Serão sempre
homens.
Encostado
àquela árvore distante, Rubens ignorava as palavras proferidas em homenagem a
Felipe. Um homem de respeito, de atitude, com ideias revolucionárias e uma
cabeça bastante adiante de seu tempo, blábláblá. O outro túmulo, de Mauro,
estava silencioso. Ninguém falava sobre suas atitudes e seu respeito. Ninguém o
venerava. Ninguém sequer se lembrava dele como Mauro. Era um assassino, e só.
—Boa
tarde —alguém falou, e Rubens demorou a perceber que a voz se dirigia a ele.
—Ah,
oi, me desculpa —falou, enfim, alisando seus bigodes. —Posso ajudar?
—Acho
que é meio tarde pra ajudar —disse a mulher. —Você os conhecia?
—Sim.
Eram meus funcionários. Difícil de acreditar, não é?
—É
sim. Preciso superar essa perda. Queria uma companhia, um ombro amigo para me
ajudar. Depois dessa história toda, é muito fácil enlouquecer.
—Nem
me fale. Aceita me acompanhar para um café?
—Não
sei. Café não deve ajudar muito. Ele tira o sono, e eu preciso dormir. Mas acho
que um vinho seria uma boa ideia. Sua casa fica longe daqui?
Rubens
sorriu. Por dentro, instintos masculinos apodrecidos despertavam.
—Na
verdade, não —respondeu ele. —Considere isso um convite. Talvez eu também
precise de um ombro amigo, ou de outras coisas, se é que me entende.
A
mulher sorriu.
—Pode
ser de grande ajuda.
—É
sim. Só não me lembro de seu nome, mocinha, ainda que seu rosto me pareça
bastante familiar.
—Familiar?
Não acho que nos conhecemos, mas essa é uma boa hora pra consertar isso. Você
parece meio abalado, então eu posso te ajudar a esquecer as coisas. Esquecer é
sempre bom. Sempre funciona. E meu nome é um tanto que grande demais, então vou
simplificar: pode me chamar de Daiana.
—Daiana
é um nome bonito. Eu gosto. Não parece tão grande quanto você disse.
—Quem
sabe?
Rubens
olhou ao redor. O cemitério parecia frio e grotesco, desnecessário.
—Não
gosto desse lugar. O que acha de sairmos daqui?
—Era
a ideia, não?
Ele
deu de ombros.
—Pra
falar a verdade, eu nem me lembro do que estava fazendo aqui. Vamos?
Estendendo as mãos para o
vento, Rubens caminhou, conversando e rindo com ninguém, enquanto se
distanciava do cemitério e da sanidade.