terça-feira, 18 de outubro de 2011

Conto - Espetáculo do Fim

Olá, companheiros!
Venho por meio desta postagem trazer até vocês o último dos três contos escolhidos pela Antologia Dias Contados - Volume 2, da Editora Andross, que infelizmente não farão parte do livro. Este é o meu favorito, dentre os três, e se chama Espetáculo do Fim, uma dramatização do momento final. Espero que apreciem a leitura, e não deixem de comentar!
Até a próxima!


—Estás a desafiar-me para uma peleja? —ironizou o homem de lata, os braços cruzados sobre o peitoral amassado de um barril de alumínio, o rosto do garoto ruivo que o interpretava aparecendo entre as lacunas de um elmo improvisado de madeira e tinta prateada, a garganta tremulando pelo trabalho na voz.

—Não me venha com bravatas, latão! —bramiu o miúdo gnomo, papel dado a um jovem do primário, que mesmo assim era forçado a se ajoelhar. —Está se atirando num abismo sem volta, seu pobre coitado! O que pretende fazer se ela aceitar seu desafio?

—Derrotá-la, é claro! —exclamou, indignado.

O público assistia, em lágrimas, a última peça de nossa escola, de nome sem importância. Mulheres abraçavam seus pares, perdendo-se em beijos apaixonados, os últimos. Pais acariciavam seus filhos, acolhendo os derradeiros risos inocentes das crianças, que sequer entendiam o que estava para acontecer. Viúvas choravam nas fotos de seus maridos, ou mesmo em seus testamentos, vagos e pobretões. E o que mais me impressionava era que nossa peça não era um drama. Muito pelo contrário. O teatro era feliz, contente, um poço de alegria contagiante e calorosa.

Triste era aceitar o nosso fim.

As vozes, mesmo altas, eram abafadas pelos gritos histéricos das ruas, do povo em desespero, soltos em faniquitos pela cidade aberta, as luzes oscilantes, os carros desgovernados. Era o caos, e não havia lua ou sol para oferecer proteção às almas insanas daqueles que deixaram a noção junto das esperanças de viver. Pouco antes, a mídia, sempre delicada como um rinoceronte com as notícias pesadas, anunciou o fim da era do planeta Terra: estávamos na mira de um meteoro há anos, e tentamos de tudo, em vão. Era uma força suprema, acima de nossas armas e tecnologias, acima de nossa vontade de viver. A natureza nos virou as costas, como muito fizemos a ela quando tivemos oportunidade. O mundo se atirou num abismo de pânico e catástrofe, e os homens revoltaram-se, agindo feito animais nas ruas, abusando de mulheres e vandalizando o que foram ruas pacíficas.

—Não seja tolo —falei, a pele corando com a interpretação, a voz engrossando sobre a máscara de borboleta violeta, que contrasteava com os fios castanhos e cacheados dos meus cabelos. —Acreditas que é capaz de me derrotar, mortal? —Ergui-me em posição de luta, empurrando o nariz e os seios ainda miúdos para frente. Corei, tímida. Sempre fui um pouco complexada com eles, e nunca seria uma adulta para vê-los no limite do crescimento.

—A resposta vem da pergunta —provocou o homem-lata, e suas sardas cintilaram pela fraca iluminação, as lâmpadas vez ou outra fraquejando acima de nossos rostos. —O vencedor vem do duelo.

Quase sentia aquela presença acima de nós. Em 2012, a poluição judiava da Terra, e o céu era tão escuro quanto um vulto num dia claro. Olhando as nuvens, mal conseguíamos ver a lua ou o sol, por mais límpido que fossem os dias. Agora, mesmo a mais escura das noites não escondia a esfera flamejante que, às 23h48min, deixava todos os corpos transpirando à mercê dos mais de quarenta graus. Lá fora, o desespero se alastrava conforme a bola de fogo que nos destruiria surgia entre no topo, e era a prova definitiva de que não tínhamos chance de sobreviver.

Hesitei, e por pouco não me esqueci das falas. Via na plateia os rostos cultos escondendo a preocupação, aproveitando dos últimos momentos de suas vidas ao lado daqueles que amavam, ou sozinhos, e isso me doía. No meio da multidão de cadeiras, enxerguei os rostos serenos dos meus pais, e eles sorriam, mesmo entre as lágrimas. Minha irmã, muito mais jovem, dormia tranquila nos braços de nossa genitora, e seu rosto infantil e ingênuo me trouxe uma ardência tenebrosa no coração, e cheguei a pensar que aquele seria meu final precoce, antes de todos os outros, mas não foi.

—És deveras irracional, asno metálico —improvisei, sem fugir do contexto. Torci para que o público não notasse meu nervosismo. Mal sabia eu que eles estavam preocupados demais com os deles, e sequer se importariam se eu gaguejasse por toda a peça. —Puxei da bainha malfeita uma espada de papelão, e a sacudi no ar, pronta para o combate. —Em guarda!

—Pois venha! —sorriu ele, partindo para cima de mim, desajeitado, usando dos braços e da armadura frágil.

—Pelos deuses! —exclamava o gnomo, e o garoto parecia tão perdido quanto formigas no oceano.

A espada de lâmina mole e amassada se chocou contra a armadura de alumínio, mas os efeitos sonoros não contribuíram. Acima dos ruídos de pancadas e cortes, oriundos de um computador portátil carregado por nosso professor de teatro, estavam os gritos apavorados das pessoas. Sem deixar a cena, olhei um relógio afastado, e enxerguei 23h57min. Três minutos, de acordo com as previsões. Seja o meteoro que nos alcançaria, seja o final do calendário Maia, aquele era o fim. Três minutos.

Chorei.

Meus olhos lacrimejavam, e a maquiagem escorreu por meu rosto, manchando minha pele clara. O homem de lata se inundou de lágrimas, e o elmo encharcado começou a se rasgar, pedaços caindo pelo palco enquanto eu fingia golpeá-lo com a arma de mentira. Na plateia, todos se emocionavam, desconhecidos se cumprimentando com apertos de mão ou abraços apertados, parentes agarrados, trocando as lágrimas como quem troca figurinhas num domingo de sol. Chorei, e lá estavam meus pais, chorando feito crianças, soluçando pelos sentimentos, pela saudade, pelo desespero.

O primeiro estrondo veio de longe, e os gritos aumentaram ao redor do teatro, mas ninguém saiu. O espetáculo não chegara ao fim, e ninguém abandona a última cena. Afastei-me do homem-lata, e empunhei a espada, mas, na verdade, desejava apenas me despedir de meus pais. Meus olhos marejavam, vermelhos, mas eu acenei para eles, que retribuíram com um tchau doloroso. Procurei pelos pais do garoto ruivo, mas eles não pareciam estar ali, e ele me olhou com estranheza, me invejando por ter alguém de quem se despedir.

Os professores se levantaram quando eu avancei, e aquele seria o fim. 23h59min, segundos tensos correndo nos relógios, o céu desabando sobre nós, vermelho feito magma. Chorava, um choro pesado e alto, e logo todo o teatro era um coro de pranto e pavor. Então veio o segundo estrondo, e o mundo tremeu. Até então, fingia ser mentira. Tentava colocar em minha mente que todas aquelas notícias eram falsas, brincadeiras de mau gosto para com o mundo. Aquele tremor acabou com as minhas esperanças.

—Esse será o fim —balbuciei, os braços tentando firmar a espada, mesmo tão leve, as pernas tremendo.

—O seu fim! —disse o homem de lata, e engoliu o choro.

Mas seria o nosso.

O teto desabou, e um bando de pessoas foi soterrado pelos destroços. O ar incinerou as poltronas, e a temperatura era absurda, encharcando minhas roupas em segundos. Corri, e meu oponente fez o mesmo, e precisamos nos equilibrar para não cair durante o terremoto que se seguiu. Outra parte do teto desabou, e vi meus pais sob as pedras, minha irmãzinha chorando, desesperada, sozinha, em seus últimos instantes.

Ataquei, e ele desviou, e suas garras de metal pintado me derrubaram, como era planejado. Deitei-me, os olhos fixos no ar, as lacunas no teto revelando a força avassaladora que descia sobre nosso mundo na forma de um globo de caos e morte. O céu estava vermelho, sem sol, sem lua. A Terra estava negra, sem chances, sem vida.

Latão caiu de joelhos.

—Eu venci... —murmurou, mas já não havia plateia.

Nossos professores aplaudiram, mas das palmas restaram apenas os ecos quando o teatro tombou. Entre a nuvem de poeira, ainda deitada, gritei, apavorada. Queria que tudo aquilo fosse um pesadelo. Queria acordar e beijar minha mãe, abraçar meu pai, acariciar minha irmã. Queria me levantar, abrir os olhos, viver.

Senti o mundo sobre mim, e meu corpo derretia vagarosamente. Despedi-me da personagem, do palco, dos amigos, dos parentes.

Fechei os olhos, e aceitei, me despedindo da vida.

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