quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Nas Cordas do Desespero - Capítulo 18 [Web Novela]

18

MAURO VIU OS POLICIAIS CHEGAREM. Eram muitos soldados, todos vestindo o mesmo uniforme e o mesmo semblante. No chão, mutilado pelo ódio de um homem que representava o povo, o assassino das meninas sangrava, mas ninguém sentia peno. Os direitos humanos não funcionavam. Ele era um criminoso, dos piores. Suas atitudes eram hediondas, seus crimes eram absurdos. Ele tinha que pagar, e o preço era caro demais.
—Se afaste —mandou um dos policiais, e Felipe obedeceu, mas não sem antes debochar com seu maior sorriso da incapacidade de Mauro. O policial se voltou para Mauro, que ainda estava ali, jogado ao solo. —Você tem o direito de permanecer calado, e qualquer coisa que disser poderá ser utilizada contra você no tribunal. Entendeu?
Tinha entendido. A justiça não o entenderia, por sua vez. Ninguém acreditaria em suas palavras. Sentiu falta de Luciana. Ela era cega para o mundo. Gostava dele, de ouvi-lo, de acreditar em suas palavras. Apoiava-a. Ali, ninguém o apoiava. Sua vida estava condenada, seu futuro era um fiasco. Mauro não tinha escolhas.
Dobrou os joelhos e começou a se levantar.
—É melhor que não se levante, ou vamos disparar!
Felipe o fitava, ainda sorrindo.
—Esse homem é louco —dizia ele, perverso. —Não deixem que ele se levante. Olhem o que fez àquela garotinha!
Mauro agiu no instinto. Por um momento, era animal, não homem. Louco e faminto como um leão, forte e raivoso como um urso. Jogou-se, a faca em mãos, derrubou Felipe com um golpe certeiro no peito, uma perfuração que o livrou do coração e da capacidade de amar.
Mauro não gritou, não se alterou, mas a faca rugiu dezenas de vezes antes que os policiais tivessem coragem de atirar. Um deles iniciou a execução, abismado por se deslumbrar com aquela visão animalesca que via. O tiro acertou a perna de Mauro. Outro disparo feriu seu braço, um terceiro atingiu seu torso. Vieram outros cinco, então mais dez. O corpo perfurado continuava a esfaquear, Felipe agonizava, espumando. Já estava morto, mas Mauro continuava. Morreria em breve, também.
Sua vida precisava valer a pena.
Tiros e mais tiros, e demorou para que a faca quedasse ao solo, tilintando como um sino que alerta os religiosos o fim de uma cerimônia. Felipe não se mostrava completo, nada além de uma poça de sangue, de um resto de carne disforme. Mauro estava perfurado em lugares distintos, sangrava mais do que um ser humano parece ser capaz de sangrar.
Ficou em pé.
—Por que você não morre?! —gritou um dos policiais. —Depois de tudo, depois de todas as garotas, por que você simplesmente não morre?!
Mauro abriu a boca, queria responder. O sangue vazou por entre seus lábios, escorreu em suas roupas. A boca se fechou, fraca. Curvou-se: era um sorriso. Sorriu, satisfeito. Morreria como culpado, mas era inocente. Morreria como derrotado, mas era um vencedor.
Dobrou-se nos joelhos e, por fim, tombou, e seus olhos se fecharam na queda, de uma vez por todas.

OS TELEJORNAIS NOTICIARIAM A MORTE DO MANÍACO DO CIRCO. As crianças estavam a salvo, os pais se tranquilizariam. Outros homens de sanidade duvidosa veriam naquele caso um exemplo, mas é isso o que os homens sempre fazem: imitam. Idolatram, repetem as loucuras, refazem os mesmos erros. Sempre começa da mesma forma.
Sempre termina igual.
Rubens assistira ao enterro de três de seus funcionários em pouco tempo, e aquilo não seria agradável a nenhuma pessoa. Estava ali, encostado a uma árvore, escapando da chuva. Sempre chove nos enterros. Para Rubens, chovia do céu, não dos olhos. Ele não tinha motivo para chorar. Três pessoas fariam falta por alguns dias, mas eram somente isso: três pessoas.
Ninguém é insubstituível.
Outros funcionários viriam. Outras mulheres interessadas em outros homens, outros candidatos a vagas ambiciosas, outros loucos com dificuldades para se acostumar com a rotina diária do escritório. No fim, todos eles aprendem. Dão seu jeito. Antes deles, alguém fez, e os homens sempre refazem, sempre copiam. Serão sempre homens.
Encostado àquela árvore distante, Rubens ignorava as palavras proferidas em homenagem a Felipe. Um homem de respeito, de atitude, com ideias revolucionárias e uma cabeça bastante adiante de seu tempo, blábláblá. O outro túmulo, de Mauro, estava silencioso. Ninguém falava sobre suas atitudes e seu respeito. Ninguém o venerava. Ninguém sequer se lembrava dele como Mauro. Era um assassino, e só.
—Boa tarde —alguém falou, e Rubens demorou a perceber que a voz se dirigia a ele.
—Ah, oi, me desculpa —falou, enfim, alisando seus bigodes. —Posso ajudar?
—Acho que é meio tarde pra ajudar —disse a mulher. —Você os conhecia?
—Sim. Eram meus funcionários. Difícil de acreditar, não é?
—É sim. Preciso superar essa perda. Queria uma companhia, um ombro amigo para me ajudar. Depois dessa história toda, é muito fácil enlouquecer.
—Nem me fale. Aceita me acompanhar para um café?
—Não sei. Café não deve ajudar muito. Ele tira o sono, e eu preciso dormir. Mas acho que um vinho seria uma boa ideia. Sua casa fica longe daqui?
Rubens sorriu. Por dentro, instintos masculinos apodrecidos despertavam.
—Na verdade, não —respondeu ele. —Considere isso um convite. Talvez eu também precise de um ombro amigo, ou de outras coisas, se é que me entende.
A mulher sorriu.
—Pode ser de grande ajuda.
—É sim. Só não me lembro de seu nome, mocinha, ainda que seu rosto me pareça bastante familiar.
—Familiar? Não acho que nos conhecemos, mas essa é uma boa hora pra consertar isso. Você parece meio abalado, então eu posso te ajudar a esquecer as coisas. Esquecer é sempre bom. Sempre funciona. E meu nome é um tanto que grande demais, então vou simplificar: pode me chamar de Daiana.
—Daiana é um nome bonito. Eu gosto. Não parece tão grande quanto você disse.
—Quem sabe?
Rubens olhou ao redor. O cemitério parecia frio e grotesco, desnecessário.
—Não gosto desse lugar. O que acha de sairmos daqui?
—Era a ideia, não?
Ele deu de ombros.
—Pra falar a verdade, eu nem me lembro do que estava fazendo aqui. Vamos?
Estendendo as mãos para o vento, Rubens caminhou, conversando e rindo com ninguém, enquanto se distanciava do cemitério e da sanidade.

Nas Cordas do Desespero - Capítulo 17 [Web Novela]

17

HAVIA UM BAILE DE MEMÓRIAS, E ELAS DANÇAVAM UMA DANÇA PERVERSA. Mauro tentava organizar as peças, juntar o quebra-cabeça na intenção de enxergar mais do que aquele borrão de quem procura seu reflexo na água urinada de uma privada de boate.
Se viu deitado em sua cama, recebia uma ligação. Felipe o chamava. Era um convite para um lugar desconhecido, não um bar, não um restaurante. Um lugar abandonado. A promessa era a verdade, a realidade, o seu rosto real no espelho. Um reflexo palpável, o primeiro deles.
Viu-se caminhar pelas ruas, receber o vento frio no corpo, no rosto, nas roupas. Sentia o gelo da incerteza, o medo das descobertas, das revelações. Caminhava, passos rápidos, outros vagarosos, oscilantes, não sabia se queria ou deixava de querer. Seguia, sempre em frente. Não havia retorno, não havia mais volta. Se houvesse algo, estava à frente, na próxima esquina, na próxima porta. Se houvesse. Talvez não houvesse nada. Talvez ele não fosse nada nem ninguém. Talvez não houvesse talvez.
Piscou, viu-se nas ruas escuras, guiado pela brisa perfumada. Seguia um cheiro conhecido, uma mulher, uma desconhecida de perfume similar, o mesmo perfume de Luciana. O mesmo perfume de Daiana, inclusive. Ele nunca percebeu que ela o amava. Nunca percebeu que, mesmo antes, ela fora apaixonada por ele.
Quando Daiana foi embora, Luciana apareceu. Ofereceu oportunidades, uma mão amiga, um ombro pra chorar. Queria sua proximidade, sua presença, seu calor. Queria Mauro para si, queria uma nova vida, uma vida de felicidades. Queria tentar. O perfume era o mesmo, copiado descaradamente, imitado na tentativa de chamar atenção. Mauro amava aquele perfume. Não em Luciana, não naquela desconhecida. Amava-o em Daiana, mas ela não estava mais lá. Não estava mais viva. Não mais pertencia a ele, se um dia pertenceu.
Seguia a estranha, um estranho o seguia. Ele não o viu, não o notou. A mulher virou numa ruela qualquer, o escuro a engoliu, Mauro oscilou. Alguém o atingiu, o arrastou. Ao seu lado, algo miava. Sua cabeça doía. Levantou-se, olhou ao redor, não havia ninguém. Nas mãos, um saco de lixo, o corpo de três gatos começava a apodrecer em seu interior.
Voltava para casa, olhos atrás de si, nas sombras. Ele sabia que era seguido, mas não podia evitar. Estava louco. Tentou se esconder, se proteger, alguém o acompanhou. Fechado em sua casa, ouviu alguém bater. Resistiu, evitou escutar, abriu quando suas forças não eram suficientes para evitar a curiosidade. Queria que fosse Daiana, Luciana, uma prostituta qualquer, barata. Queria sexo pra esquecer, pra seguir em frente. Abriu a porta, encontrou olhos de desaprovação.
Viu Felipe, em frente à sua casa, naquela madrugada. Ele disse algo, Mauro não entendeu. Queria ajuda, um abraço. Recebeu um golpe. Nas mãos do amigo, uma faca. Mauro estava louco, descontrolado. Aquele era seu amigo de tempos. O que ele estava fazendo? O que ele faria em resposta? A faca cortou o ar, sibilou, traiçoeira. Mauro caiu, derrubou o agressor, tomou dele a arma e o feriu, na altura do ombro, um corte superficial. O agressor fugiu, ameaçando, urrando no caos. Mauro não entendia, mas esquecia.
Viu-se ainda mais longe, antes de tudo, antes de nada. Viu-se consertando um veículo, mas o reparo era a última de suas intenções. Queria destruí-lo. Aquele motor levaria para longe de si a mulher que amava. Levaria para outra cidade sua única esperança de felicidade no mundo todo. Tiraria Daiana de seus braços, do nome em sua aliança de casamento, da certidão de nascimento de Elizabeth. Acabaria com sua vida. Antes disso, acabou com aquele carro, mas Daiana nunca soube dessa sabotagem. Ela o dirigiu, acelerou, tentou fugir. A morte era iminente.
Numa das discussões, a loucura tomou conta de Mauro. Ele gritou, ofendeu. O novo homem de Daiana tomou a frente, postou-se em sua defesa, levantou a voz e a postura. Ele não era forte, não era valente, mas a amava. Ele não era conhecido, mas seria. Agora, nas lembranças, era familiar, e Mauro se perguntava como pudera esquecer de tudo aquilo. Felipe estava lá, ao lado de Daiana. Felipe era o outro homem, o amante apaixonado, aquele que a tirara do coração de Mauro.
Viu-se admirar o estrago da morte de Daiana. Ela não seria mais sua, e isso doía. Também não seria mais dele, de Felipe, daquele maldito outro. Não seria de ninguém. A culpa remoía, no entanto. Queimava por dentro, doía, ardia como brasa nos pés. Felipe jurou vingança. A polícia nunca comprovou a culpa de Mauro. Fora um acidente. Sabotagem, homicídio doloso, nada disso sequer foi cogitado. Um acidente. Mas Felipe sabia a verdade, e sabia que faria algo para mudar aquilo.
Mauro se viu retornar do trabalho, cumprimentar Felipe no caminho. Agora, seu amigo. Não se lembrava do passado, não se lembrava de sua própria história. A loucura o corrompia, destruía seus neurônios, seus pensamentos. Cumprimentou o companheiro de trabalho que, naquele dia, não trabalhou. Era estranho que ele estivesse ali, próximo de sua casa. Morava em outro lado, em outro bairro. Mas estava ali, por perto, e ele o cumprimentou, e isso era o suficiente. Depois, sangue. Sua filha ao chão, estripada, marcada por uma faca impiedosa. A primeira das vítimas.
Enlouquecer fazia com que Mauro se culpasse por algo que não fizera. Felipe se aproveitou disso. Tirou dele a filha, tirou a sanidade, tiraria ainda mais. Tirou a esperança, o amor, a vontade. Tirou depois a própria crença, e o homem de coragem que um dia fora Mauro não mais tinha certeza sobre sua inocência. Ele podia ser um assassino, podia ser coisa pior. Matou crianças, ou assim pensava. Enquanto isso, Felipe sorria, cruel. Matava, fazia sangrar.
Aquela era sua vingança.
Tudo agora se encaixava, tudo fazia sentido.
Mauro se lembrou de tudo, choroso. Felipe estava sobre seu corpo, os punhos desciam como trovões, vingativos e pesados. Alguns socos entortavam seus dentes e seu maxilar, outros abriam seu supercílio e cortavam seus lábios. A dor era passageira, distante. A dor maior estava ali, no peito de um homem que perdeu tudo para a loucura.
A sua loucura e a loucura do outro.
—Sabe o que acontece agora, Mauro? —perguntou Felipe. —Você perde. No fim, você perde. Um dia, tirou tudo o que eu queria de mim. Daiana. Você a tirou de mim, a tirou do mundo. Agora, vou tirar tudo de você.
—Eu já não tenho mais nada pra você tirar —Mauro agonizou, sem forças. O sangue inundava sua boca. Sentia o gosto metálico na língua, nauseado.
—Ah, tem sim. Tem uma coisa que eu sempre sonhei em tirar de você.
Mauro se perguntou o que era, mas sua voz não foi capaz de formular a indagação.
—Eu vou te contar o que é, cara. —Felipe se abaixou, o rosto colado ao rosto de Mauro, os lábios unidos ao ouvido do companheiro. —A liberdade —sussurrou ele, e sua palavra soprada feriu o peito do amigo enganado.
Felipe se levantou, deixou a faca quedar ao solo, a lâmina tilintou. Então, com todas as suas forças, gritou:
—Eu encontrei! —e havia um sorriso em seu rosto a cada palavra. —Eu encontrei o assassino! Eu encontrei esse maldito assassino!