sábado, 29 de junho de 2013

Nas Cordas do Desespero - Capítulo 7 [ Web Novela]

7

A CABEÇA DE MAURO PARECIA UMA BOMBA PRESTES A EXPLODIR. Em alguns momentos, parecia que já tinha explodido dias atrás. Ele abriu os olhos com dificuldade, sonolento e atordoado pela noite anterior. Tentava se lembrar, em vão. Lembrava-se de um sonho ruim, uma ligação, um drinque sem nome e só.
Olhando ao redor, Mauro não reconheceu o ambiente. Estava ao lado de uma cama de solteiro desarrumada, deitado num travesseiro atirado num canto qualquer do quarto. Era um cômodo pequeno, abafado e claustrofóbico, com livros demais e conforto de menos, mas ainda assim agradável.
Alguém dormia sobre a cama, com os braços e as pernas à mostra, em posições nada atraentes. Luciana vestia uma camisola translúcida, e seus cabelos estavam desajeitados. Mauro percebeu que nunca a vira daquela maneira antes. Olhando assim, ela parecia bonita. Bonita demais, até. Mais do que as roupas do cotidiano empresarial permitiam que ela parecesse.
Nada explicava aquela situação, no entanto.
—Luciana —chamou ele, tocando nos braços da companheira com certo receio. —Luciana, acorde.
Ela deixou escapar um grunhido preguiçoso, revirando-se na cama.
—Que horas são? —perguntou, zonza e sem abrir os olhos.
Mauro procurou o celular nas calças. Surpreendeu-se ao ver que não as vestia. Demorou alguns segundos para visualizar suas roupas no chão, e tirou de lá o aparelho que mostrava um relógio digital na tela.
—São quase uma da tarde —respondeu ele. —Você tá bem?
Só então Luciana entendeu que havia alguém em seu quarto. Um homem, para ser mais exato. Um homem que ela conhecia.
—Mauro! —ela se sentou na cama, puxando as cobertas para sobre o corpo com um movimento ríspido. —Como —
—Eu também não sei —interveio ele. —Acho que bebemos demais ontem. Me desculpe por isso.
—Não, não precisa. Tá tudo bem. Eu também bebi. Sou grandinha pra saber que tenho que arcar com as responsabilidades do que fiz.
—Mesmo quando a gente nem sabe o que fez.
Luciana riu, mas Mauro não tinha feito uma piada.
—Você... se arrepende?
A pergunta feita pela secretária soou estranha para Mauro.
—Como assim?
—Não sei. Você só não parece feliz, como os homens geralmente ficam depois... disso, sabe? Você me entende. Tá arrependido ou algo assim?
Mauro poderia responder qualquer coisa, mas o ímpeto fez com que sua escolha de palavras fosse a pior possível.
—Eu sequer me recordo do que fiz ontem. Não posso me arrepender por algo assim, nem me apaixonar. Me desculpa, sério mesmo. Preciso ir embora.
—Me deixa te fazer um café, eu juro que —
—Eu estou bem —interrompeu ele, levantando-se e vestindo suas calças. —Posso me virar sozinho. Você devia aproveitar pra descansar também. Logo  mais terá que trabalhar.
—Mas e você?
—Eu não vou. Não hoje, talvez nunca mais. Não estou me sentindo bem. Até logo, Luciana.
Pegando seus pertences, Mauro deixou o quarto de Luciana para trás e sentiu a luz do dia queimar sua vista quando seus pés tocaram a calçada. As ruas estavam movimentadas, mas não para ele. Tudo era silencioso, vazio, irreal. Mauro vivia sozinho num mundo que não fazia sentido. Pior ainda: vivia na solidão de um mundo que, se fizesse sentido, o mataria.
Caminhou até sua casa com uma sensação estranha. Por várias vezes pegou-se olhando para trás e para os lados, como se alguém o perseguisse, mas não havia ninguém ali. Ninguém além daquelas pessoas que não o notavam, além daqueles rostos que ele não sabia nomear. Ninguém.
Entrou em sua casa e, pela primeira vez desde que deixara a casa de Luciana, viu um rosto que o fez prender a respiração.
Daiana.
—Divertindo-se nas noites, Mauro? —perguntou a mulher, que estava sentada no sofá de sua sala com as pernas cruzadas. Usava um jeans apertado e salto alto, um contraste desnecessário.
—Isso importa agora?
Ela deu de ombros.
—Nunca importou, na verdade. Você nunca foi disso.
—Talvez eu tenha mudado.
—Por mim?
—Por não ter você.
Num instante de respiração, Mauro notou suas próprias palavras e, aos gritos, corrigiu seus pensamentos: você odeia essa mulher, você odeia essa mulher, você odeia essa mulher...
—Eu sinto muito —Daiana balbuciou, hesitante. Mesmo ela não esperava por uma resposta como aquela. Feriu como faca, aparentemente. —Talvez a noite seja uma companhia melhor do que a minha.
—Não preciso de outras companhias, Daiana. A minha vida está um caos! Não vai ser a noite, uma companheira de trabalho ou uma ex-mulher invasora de residência que vão mudar isso!
Daiana suspirou, irritadiça.
—Eu sabia que havia outra mulher na história.
—E eu sabia que tinha que trocar a fechadura... Ei, espera! —Vasculhando suas memórias, Mauro se lembrou de que já havia trocado as chaves. Como era possível que ela estivesse ali, em sua sala? —Como foi que —
—Tenho meus segredos —cortou Daiana. —A questão aqui é outra.
—É melhor parar com seus segredos, ou vai ter que dividi-los com várias lésbicas numa cela fedorenta em breve.
—Você nunca me ameaçou assim antes, sabia?
—Sei bem. Às vezes fazemos algumas coisas pela primeira vez. Tipo ser abandonado.
Daiana baixou os olhos. Ela tentou se aproximar, mas Mauro a impediu.
—Eu não sei o que você quer aqui, Daiana. Não sei o que você quer comigo, não mesmo. Só acho que você deveria ir embora. E quando digo embora, quero dizer embora mesmo. Esquecer de mim, me abandonar de vez. Já fez isso uma vez, não deve ser difícil repetir a dose. Vai embora pra nunca mais voltar.
—Isso te faria feliz?
Mauro virou-se para a geladeira, pegou a margarina e o leite e começou a preparar seu café. Ele não podia responder àquela pergunta. Sabia qual seria sua resposta.
—Você tá estranho, Mauro —começou Daiana. —Não parece mais o homem que eu conheci. Você era carinhoso, atencioso, dedicado, inteligente. Olha pra você agora? Olhe no espelho, veja o que sobrou! Você parece um rabisco se comparado à obra de arte que era! Não consigo ver isso acontecer e fingir que tá tudo bem, não dá.
Mauro se sentou e tomou seu café da manhã, calado.
—Você não sabe mesmo o que tá acontecendo, não é? —Daiana tentou outra vez, mas o silêncio foi sua resposta. —Tá legal, Mauro. Eu já entendi. Você pode ter outra mulher, pode ter seus casos e curtir suas noites. Não me importo. A escolha foi minha. Mas, se prefere realmente agir assim, recusar a ajuda que precisa e... Ah, quer saber, azar o seu. Faz como quiser.
Exausta pela tentativa, Daiana se virou, caminhando com passos pesados na direção da porta de saída.
—Só uma coisa —disse ela, os olhos ainda fixos na porta de madeira. —Essas mortes não vão parar tão cedo. Outras garotas vão morrer, você sabe como funciona. Não se envolva, por favor. Você não é um super-herói, Mauro. Tem coisas que é melhor não se meter.
Mauro se levantou, cabisbaixo. Deu passo ante passo na direção de Daiana, esticou o braço e alcançou a maçaneta da porta.
—Vai me mandar embora assim? —perguntou ela.
Ele não respondeu. Trancou a porta, puxou-a para perto de si e a beijou, chorando.

terça-feira, 25 de junho de 2013

Fotografia - Mais vida

Sequenciando as fotografias, tive duas experiências gratificantes no final de semana que se passou.


No sábado, dia 24, visitei o Parque da Cidade, em São José dos Campos, muito maior do que o Parque Santos Dumont, da semana anterior. Eu já conhecia o lugar, mas confesso que o olho clínico de uma câmera e da vontade de fotografar muda todo o ambiente. Mesmo a grama parecia mais verde, e a água, ainda mais bela! E os patinhos na lagoa, posando para as fotos, foi simplesmente sensacional! Tudo emaranhado na natureza, com flores e cores, formas e vida, muita vida mesmo! Circular pela pequena trilha que o Parque da Avenida Olivo Gomes nos oferece é maravilhosamente recompensador. Respirar aquele ar puro, surpreendentemente existente no meio da grande cidade que é São José, faz com que, na medida do possível, esqueçamos que estamos imersos na floresta de concreto que é a maior cidade do Vale do Paraíba.






  
  

  



  


  


Prosseguindo com os passeios, no domingo, 25, tive a honrosa oportunidade de me embrenhar numa Caminhada Fotográfica, oferecida pelo Sesc de Taubaté, na qual coletamos experiências e conhecimento teórico e prático sobre Técnicas de Enquadramento! Mesmo os profissionais saíram caminhando e fotografando como amadores, e esse convívio com amantes das fotos foi algo que me agraciou o dia! Ao lado de minha irmã, também vidrada em fotografia, e de diversas outras pessoas com habilidades e dificuldades distintas, tiramos fotos, brincamos de edição e aprendemos bastante sobre a Regra dos Três Terços, que muito contribui para o fotógrafo que pensa em se destacar.





Voltei para casa ao término do final de semana com gostinho de quero mais, e realmente quero. Mais fotos, mais verde, mais ar puro, mais natureza, mais caminhadas fotográficas, mais parques, mais lagos, mais animais.
Mais vida.

segunda-feira, 24 de junho de 2013

Nas Cordas do Desespero - Capítulo 6 [Web Novela]

6

O SONO É TRANQUILO QUANDO ESTAMOS TRANQUILOS. Mauro não estava tranquilo, e assim, sonhava. Pesadelos, na verdade. Sonhos negros, conturbados, abstratos e surreais, porém malignos e tormentosos.
Naquele sonho, Mauro estava amarrado a uma cadeira de balanço. Ela rangia a cada movimento, empurrada por um vento que não aliviava o calor desumano que ele sentia naquele lugar. O cenário, por sua vez, era obscuro, uma mancha negra num palco alvo. Era como se a cadeira de balanço estivesse suspensa no escuro da noite, e dali Mauro podia ver as estrelas, a lua e algumas poucas nuvens de chuva.
À sua frente, algo balançava de maneira rítmica, acompanhando os rangidos da cadeira de balanço. Era uma corda surrada, amarrada ao nada, sacudindo da esquerda para a direita como um pêndulo de relógio. O tique-taque, no entanto, era um murmúrio, um ganido.
Alguém estava enforcado.
Mauro queria enxergar, mas não conseguia. Forçava os olhos, tentava ver além, o escuro não permitia. De súbito, alguém empurrou sua cadeira. Ele olhou para trás e viu mãos femininas, carinhosas e delicadas, ainda que o rosto não lhe fosse visível. Sentiu saudades daquelas mãos, daquele toque. Queria aqueles dedos em seu corpo, em sua pele, não na cadeira que lhe sustentava. Queria aquele corpo para si.
A cadeira se aproximou da pessoa enforcada. Mauro gritou, chocado.
Era sua filha.
Elizabeth fedia carniça. Sacudindo como um porco num açougue, a garota tinha cicatrizes por todo o corpo, o sangue gangrenado nos ferimentos. Sua boca guardava um sorriso asqueroso.
Mesmo que morta, ela se virou para Mauro e abriu os olhos.
—Você prometeu cuidar de mim, pai —bradou a menina, e sua voz escarrou moscas e baratas e vermes. —Você prometeu e falhou.
Mauro olhou para trás, confirmando que as mãos que empurrava sua cadeira de balanço eram de Daiana, sua antiga esposa.
—Eu pensei que você cuidaria dela quando eu não estivesse aqui —disse a mulher. —Pensei que podíamos confiar em você. Como pude me enganar assim?
Um telefone tocou no escuro.
Assustado, Mauro acordou suando frio. Era seu celular que tocava sobre a cômoda. Antes de atender, olhou as horas: pouco mais de vinte e três. Pelo tormento que o sonho lhe garantira, chutava que já seria madrugada, mas ainda era cedo.
Atendeu o número desconhecido.
—Alô?
—Mauro? —perguntou a familiar voz feminina.
—Sim. Quem fala?
—Sou eu, Luciana. Troquei meu celular na semana passada, mas não tive tempo de te passar o número novo. Aproveita a ligação pra marcar aí na sua agenda. Tudo bem?
—Acho que sim. Aconteceu alguma coisa? Meio tarde pra uma ligação casual.
—Casual? —Luciana riu em deboche. —Você saiu no meio do trabalho hoje. Rubens te mandou descansar, você sabe como aquele cara é mercenário. Não é uma ligação casual, bobinho. Eu só tô preocupada contigo. Como você tá?
—Sei lá —foi a resposta de Mauro. —Eu nem me sinto muito vivo, pra ser sincero. Tô meio estranho. O tempo passou, mas eu ainda fico vazio. Não consigo dormir tão bem, e quando durmo tenho pesadelos. Coisa de louco.
—As coisas têm sido bem loucas ultimamente. Faz o seguinte: vou passar aí na sua casa.
—Agora?
—É, agora. A gente dá uma volta, bebe alguma coisa, sabe como é. Alivia. Também não tive um dia muito legal. Rubens falou umas merdas pra mim. Ele tá estressado demais com as coisas, ultimamente.
—Não sei se serei o melhor conselheiro da noite...
—Para com isso, Mauro! Ficar trancado dentro de casa não vai resolver nada. Tô aqui na porta, desce quando estiver pronto.
—Como assim?
—Digamos que eu estava por perto —disse ela, sorrindo. —Vai descer ou não?
Mauro desligou o telefone e trocou de roupa. Vestiu uma camisa fresca, sem se preocupar com desodorante, cabelo ou sapatos novos. Desceu até o portão e deparou-se com Luciana, que aguardava com o carro ligado.
—Entra aí —disse ela.
Ele entrou, e ela dirigiu sem muitas palavras até um bar de renome local. Estacionou na esquina, desceu do carro, Mauro a acompanhou. Quando entraram, viram que a boate não estava com grande movimento, o que era bom. Não queriam uma festa imensa: queriam tranquilidade para conversar.
Luciana acenou para um garçom, que trouxe duas cervejas para a mesa dela.
—Como foi seu dia? —perguntou ela.
—Terrível. —Mauro se lembrava do velho e da garota, mas fazia um esforço imenso para reprimir aquela memória em sua mente. —Eu supero. O que aconteceu no escritório?
—Ah, o de sempre. Deixa isso pra lá. Não quero falar dos meus problemas, você sabe. É você o cara que tá meio doido por aqui.
—Claro, obrigado.
—Estamos aí. Tá se sentindo estranho por beber com uma mulher?
—Deveria?
Luciana deu de ombros.
—Sei lá. Você e o Felipe sempre saem. Quis fazer diferente dessa vez. Mostrar que você não tá sozinho. Deve fazer bem.
Mauro respondeu com dois goles de sua bebida.
—Acho que isso tá meio fraco —disse ele, olhando para a lata que tinha nas mãos.
—Tá querendo beber pra esquecer?
Ele suspirou.
—Nem bebendo eu esqueço essas coisas, sabe. Mas seria uma boa ideia.
Luciana sinalizou outra vez, mas agora o garçom trouxe dois drinques de destiladas.
—Essa deve ser forte o suficiente —brincou ela, oferecendo a Mauro o copo da bebida. Mauro provou o drinque, e algo em seu corpo grunhiu como um porco abatido.
—Que merda é essa?
—Pensei que queria algo forte —zombou Luciana.
—Quero esquecer os problemas, não o caminho de casa.
—Eu sei o caminho da sua casa. Deixa que eu cuido disso.
Mauro e Luciana beberam, sem se importar com horário ou limites, e a noite tornou-se uma criança com sérios problemas compulsivos. Pediram uma porção de fritas, mas ela não permaneceu muito tempo no estômago de Luciana, que devolveu ao próprio estabelecimento numa das viagens de minuto a minuto que ela fazia ao banheiro. Tomaram drinques diferentes, bebidas de cores fortes e vibrantes, misturaram muita coisa.
O relógio marcava alguma coisa parecida com ovelhas albina horas, e aquilo possivelmente significava que estava na hora de ir para casa.
—É melhor irmos —disse um dos dois, ou ambos, ou ninguém, mas eles foram mesmo assim.
Alguém pagou a conta, alguém abriu a porta do carro, alguém entrou primeiro e dirigiu. As ruas pareciam tortas, perdidas. O caminho mudava a cada segundo. As calçadas gemiam como monstros anormais, e os prédios urravam mais alto do que ursos buscando por filhotes desaparecidos.
O carro parou, em frente a uma casa que Luciana e Mauro não sabiam dizer de quem era.
—Você quer entrar? —um dos dois perguntou, com a voz amolecida.
—Não sei se deveria sair do carro —respondeu o outro.
—Nem eu. Vamos lá.
—Vamos sim.

O mundo girou, ouviu-se passos, toques na parede, o estrondo de alguém caindo, então silêncio. No meio do silêncio, gemidos, depois silêncio outra vez e mais nada.

domingo, 23 de junho de 2013

Folhas de Outono


Não será a vida toda como o outono?
No outono, as folhas caem. Talvez, junto delas, tudo caía, desmorone. É o mundo fraquejando, livrando-se de um peso que já não aguenta carregar, imaginando se, assim, poderá ele outra vez caminhar sem que as pernas oscilem. As folhas caem, circundando a árvore que, um dia, fora tão bela, verdejada ou colorida. Ficam ali, ao seu redor, e morrem, como morrem as esperanças de quem se livra do tal fardo que já não suporta. Exaustos, deixamos que, no eterno outono da vida, tudo aquilo caia ao nosso redor, disperso, perdidos, ilustrando o chão e embelezando-o, de forma a nos mostrar que, sim, era tudo tão belo, mas agora, está caído, perdido, distante demais para que possamos reaver.
E o que faria da vida bela, num eterno outono?
Se estamos destinados a uma eterna queda de folhas, como sorrir, como viver? Como manter-nos alegres com a mentalidade de que, numa tarde ventosa e tristonha, toda e qualquer folha de nossa árvore de sonhos pode voejar na brisa, carregada para longe ou, ainda pior, quedar aos nossos pés, visível, distante, impossível de se alcançar.
O outono, por mais eterno que seja, chega ao fim. Se as folhas caíram, talvez assim desejassem. Se os sonhos se perderam, talvez não fossem sonhos verdadeiros. Se as flores deixaram de nascer, talvez não fossem elas a embelezar nosso jardim.
O outono, por mais infinito que pareça, termina. E, ao terminar, as folhas nascem outra vez, límpidas, fortes, sonhadoras. É um processo doloroso, sim, uma dor que poucos sabem como afrontar, mas ao fim, somos outros de nós mesmos. Somos como uma árvore que choraminga ao perder todas suas folhas, e então sorri, recuperando-as, cada vez mais bela, ainda que saiba da dura realidade de que, um dia, tantas delas cairão outra vez, num ciclo eterno e penoso, mas gratificante.
Tal ciclo é o responsável por manter-nos livres de um peso desnecessário. É ele o responsável por afastar de nós sonhos falsos, vontades perdidas, sorrisos perversos. Assim, sacudindo o corpo numa dança primaveril, repleta de calor estivo e da brilhosa magnificência invernal, somos autunais, eternamente, mais leves, mais brandos, mais singelos e incompletos, porém, mais felizes. São nossos sonhos, em dura realidade, como as folhas de outono: eles sempre caem ao nosso redor. Mas, tal como as folhas de outono, eles sempre renascem, mais vigorosos, mais coloridos, mais bem dispostos a se realizar.


Como andar de bicicleta



Ali, num parque, bem próxima a mim, uma garota aprendia a andar de bicicleta.
A grama era um empecilho; o medo, outro. Mas seus pais estavam lá, ao seu lado, erguendo os braços e comemorando cada pedalada. Ela hesitava, como todos nós hesitamos, um dia. Eles vibravam como uma conquista metódica, como todos os pais vibraram, também. Não era nada de diferente; era bem simples, na verdade.
E, de tão simples, me encantou.
Ao fim da manhã, a garota não mais sentiu medo. Existiram quedas, não que eu as presenciasse, mas certamente elas existiram. Sempre há quedas quando se aprende a andar de bicicletas. E ali, quando crianças, quando pequenos, compreendemos uma verdade que, em grande parte dos casos, é esquecida pelos adultos: o chão é o limite de qualquer queda. Não há porque ter medo de cair. Você sempre vai poder se levantar e tentar outra vez.
Aquilo me fez pensar em tudo.
Um dia, muito antes, eu também aprendi a pedalar, da mesma forma. Caí, me machuquei, levantei e tentei outra vez, como muitos outros o fizeram. Hoje, já adulto, olho para trás, para todos aqueles instantes, e repenso: já que tudo na vida é tão similar, por que tal fato não funciona para a vida como um todo? A verdade é que nada muda, na vida propriamente dita, mas sim em nossos olhos, na nossa maneira de enxergar as coisas. São olhos de adulto, agora. E olhos de adulto falham. Enxergam menos, pior. Enxergam o que é possível enxergar, e não o que é possível ser. E olhos de adulto têm medo das quedas. Sabem, pela ciência estudada que somente os adultos possuem, que do chão não passarão, e ainda assim não arriscam. Uma queda, hoje, é uma humilhação desnecessária, não um aprendizado. Levantar-se, agora, não é tentar outra vez, mas admitir que, uma vez mais, você fracassou. E adulto nenhum deseja isso.
Mas as crianças, sim.
Elas sempre aprendem mais, com seus olhos de criança. Sempre se arriscam, sempre se machucam, mas sempre voltam e tentam outra vez, e outra, e mais outra, até que conseguem. A vida não é um obstáculo para suas vontades e seus sonhos; é, na verdade, um caminho, uma trilha divertida de seguir, que nos suja, nos rala os joelhos e nos rasgas as calças e meias, mas que, no fim, proporciona uma conquista admirável, e todo o restante terá valido a pena.
Ali, enquanto a garota aprendia a pedalar, enquanto seus pais comemoravam uma enorme vitória de um simples fato, peguei-me sorrindo, com olhos de criança. Orgulho, sim. Talvez, algo mais. E ali, naquele momento encantador, jurei para mim mesmo, como todo adulto deveria jurar para si, um dia, que toda queda me seria um aprendizado, e que me levantaria todas as vezes, quantas fossem necessárias, até alcançar quaisquer que fossem os meus sonhos.
E esse juramento é como andar de bicicleta: uma vez que se faça, você nunca mais esquece.

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Sobre as Manifestações do Brasil


O Brasil tem visto que, de uma hora para outra, seu povo resolveu acordar. Foi demorado, sim, e talvez não seja esse despertar o responsável por resolver todos os nossos problemas de imediato, mas já é um bom começo, temos de admitir. Frases como "muda Brasil" e "o gigante acordou" se tornaram gritos de guerra, tais como os trechos das músicas do Legião Urbana tornaram-se lemas de passeatas ("somos o futuro da nação", entre outros).


É neste clima que, na data de hoje, 20 de junho, eu tive a oportunidade de me envolver com um dos protestos, realizado na minha cidade, Taubaté-SP. Não me pintei, não estendi faixas, não corri e gritei com a animação que tinha reservada, ainda que muito admirasse tais ideias. Fiz o que, ultimamente, mais tenho feito: fotografei. E, na posição de fotógrafo, ainda que amador, tive a oportunidade que, basicamente falando, poucas pessoas tiveram: a de observar as manifestações. Ali, no meio delas, imerso nos gritos e nas revoltas, acompanhados de cartazes e caras pintadas, mas somente para observar e registrar.


Assim, observei e registrei cenas que muitos outros não puderam presenciar.


Havia crianças, muitas delas. Misturadas aos adultos, carregando cores do pavilhão nacional, bandeiras vestidas como capas, cartazes, pinturas; orgulho, em resumo. Havia famílias. Pais e mães, acompanhados de seus herdeiros agitados, gente ainda mais experiente, talvez avós, igualmente caminhando, seguindo o fluxo que congestionava as ruas, que agitava as calçadas, que mudava o mundo. Havia cores, cores demais, não somente o verde e o amarelo que nos representam. Havia, em suma, o branco da paz, pintado nas representações de nossa bandeira, carregados pelo pedido que o brasileiro jamais cansará de fazer. Havia tudo isso, e havia muito mais, mas muita gente não viu.


Eu, vi.


Tirei fotos, obviamente, mas o registro principal ficará somente comigo e com poucos outros fotógrafos ali presentes, agraciados com a mesma sorte que eu. Com a dádiva de ver um povo se reerguer das cinzas adormecidas para gritar o hino de sua pátria, encerrei meu dia com um sorriso verde e amarelo, em termos. Nunca fui muito patriota, rebelde e cansado pelo miserável destino que ostentávamos no Brasil, mas só agora percebo que tal opinião era nada além de um erro: aquele que não é patriota não tem o direito de reclamar. Ele desonra, e assim, será desonrado. Se você não está preparado para acreditar, ao menos, para sair nas ruas e, no mínimo, assistir, ou mesmo que ouvir, o povo que tenta lutar por seus direitos, você não tem o direito de reclamar de nada. Como eu, mesmo, não tinha. Mas, hoje, tudo é diferente.


E é com um sorriso verde e amarelo que eu carrego a esperança de que, através de gritos, de marchas e de uma guerra sem violência alguma, possamos conquistar a paz, a justiça e a igualdade que tanto merecemos.


Rumo à mudança, Brasil!












Nas Cordas do Desespero - Capítulo 5 [Web Novela]

5

O CLIMA FRIO FAZIA DAS RUAS UM LUGAR INCÔMODO. Mauro sempre gostou da liberdade. Sempre perdeu tempo olhando o ar ao seu redor, o vento, o céu. Agora, não mais. Agora o mundo parecia grande demais para ele. Grande demais para tudo.
Ou talvez fosse ele pequeno demais para o restante do universo.
Já anoitecia. Algumas horas atrás, fora liberado de seu trabalho para um repouso necessário. Diferente do combinado, não seguiu para sua residência. Decidiu caminhar. Andar por aí, sem rumo, sem pensamentos. Andar por aí, somente por andar, para evitar a sensação vazia que sua casa, a qual já não era mais capaz de chamar de lar, lhe garantia.
Todos os televisores gritavam notícias sobre as pequenas Júlia e Elizabeth, afortunadas com um destino fatídico e cruel, nas mãos de um psicopata alucinado.
—Maldito seja...
Mauro estava sozinho, mas às vezes deixava uma frase ou outra escapar. Falava consigo mesmo. Pensava alto. Enlouquecia.
—Se eu pudesse encontrá-lo.
Mas não podia. Não era um herói. Não era um policial, um investigador, um detetive. Não era ninguém.
—Se eu soubesse quem ele é.
O que faria? Uma denúncia anônima que jamais geraria resultados? Uma vingança fria e tenebrosa, que faria de sua imagem corrompida e deturpada ao invés de livrá-lo da angústia de coexistir no mundo em que um homem tão asqueroso pode residir?
—Se eu pudesse mudar tudo.
Parou. Na calçada, interrompendo o caminhar de tantas outras pessoas que ele não notava, Mauro estacou seus passos. Aquele pensamento florescia em seu peito há muito tempo. Precisamente falando, há mais de três anos.
Se pudesse mudar tudo, sua casa não seria vazia, fria e silenciosa. Suas cobertas não teriam somente seu cheiro. Sua cama de casal não teria somente um travesseiro.
Daiana portaria uma aliança dourada na mão esquerda, ainda, e Elizabeth estaria sorrindo neste momento, discutindo com o pai sobre possíveis namoros enquanto Mauro lhe diria que ela era muito jovem, mesmo sabendo que ela sempre lhe pareceria muito jovem para crescer e deixar de ser criança.
Se pudesse mudar tudo, mudaria.
Mas não podia.
—Sai da frente, cara!
Um homem o empurrou, e Mauro se deu conta de que todo seu corpo estava amolecido pela situação quando quase despencou com o toque indelicado do transeunte. Pediu desculpas, incapaz de sentir rancor ou infelicidade maior do que aquela que abraçava seu coração gélido. Prosseguiu sua caminhada. Não sabia para onde ia, mas sempre seria assim. Não havia um lugar para ir. Talvez não houvesse nem mesmo um lugar para voltar.
Júlia e Elizabeth são os dois nomes mais escutados na mídia. As garotas, de idades similares, foram alvejadas por um homem cruel, cuja mente doentia jamais poderá ser compreendida. Mas o que leva alguém a agir dessa forma? O que faz com que um homem se torne um monstro?
Mauro fechou os olhos e a mente, e decidiu que assim faria toda vez que passasse por uma loja onde os televisores reportassem o caso de sua filha e da outra garota assassinada.
De repente, algo chamou sua atenção. Do outro lado da rua, um homem caminhava de mãos dadas com uma garota. Ela vestia uma blusa de capuz, enquanto ele tinha um casaco castanho e barba grisalha por fazer. O velho tinha passos rápidos, a garota tinha dificuldade em acompanhá-lo. Como se ela não desejasse segui-lo. Como se ela não o acompanhasse, mas sim fosse forçada a andar.
—Pare!
Mauro gritou, mais alto do que imaginou que pudesse, e atravessou a rua sem pensar. Carros derraparam na frenagem desajeitada que o ímpeto de loucura de Mauro os obrigou. Buzinas ecoaram ao lado de ofensas e xingamentos, todos absurdos numa revolta temporária. O stress de um dia de trabalho saltou da boca de diversas pessoas na direção de Mauro, mas ele não os ouvia. Corria, apenas, até alcançar o calçamento paralelo ao seu, onde o velho caminhava com a garotinha encapuzada.
—Pare, agora!
O que ele estava fazendo?
O velho e a garota se assustaram.
—Eu mandei parar!
Eles não pararam, como ninguém pararia quando um louco desconhecido gritasse daquela forma.
Mauro ofegava. Com passos deslocados e tortos, alcançou o velho, saltando em sua frente como um ladrão em abordagem. O homem de barba grisalha recuou, assustado, a garota deixou escapar um gritinho de pavor, cobrindo os olhos com as mãos.
—O que é isso? —o velho perguntou, confuso.
—Eu sei o que você tá fazendo, cara! —Mauro acusou, mas não sabia. Não sabia nem mesmo o que ele próprio fazia.
—Quem é você?!
Mauro empurrou a garota para longe do velho, puxando-o para perto de si, as mãos cerradas de maneira firme e ríspida.
—Você não vai mais matar nenhuma garotinha, seu assassino maldito! —ele gritava, sem perceber. Todos escutavam. Todos o olhavam com receio de reagir, de ajudar ou impedir que ele fizesse algo de errado. Todos sentiam pena daquele homem.
—Assassino?! —o velho parecia atordoado. —Do que você tá falando?
—Não adianta tentar me enganar, eu sei que você tá levando essa garota!
—Papai, quem é esse homem?
A voz da garotinha fez com que Mauro acordasse de seu transe.
Papai.
Era difícil se recordar de que ele perdera sua filha.
—Ela é a minha filha, amigo —disse o velhote. —Você não pode acusar as pessoas desse jeito. Eu poderia te processar, ou coisa —
Antes que o velho terminasse suas reclamações, Mauro se foi. Correu, como uma criança humilhada em sua própria brincadeira. Correu, desajeitado como um adulto que não sabe o que quer, nem mesmo sabe se realmente deseja algo. Correu, pois só lhe restava correr, mais nada.
Corria, e via nas calçadas tantos outros suspeitos. Casais apontando para crianças de colo, homens solteiros usando toucas e coletes, mulheres mais velhas vistoriando carrinhos de bebê. Tudo parecia suspeito. Tudo parecia errado.
Mas o erro era ele.
Chegou em sua casa sem que percebesse. Abriu a porta e entrou, arfando num desespero que não deveria existir. Lacrou todas as trancas, cobrando de si mesmo uma segurança surreal, empurrou o sofá contra a porta de madeira que impediria um invasor de entrar, ou um homem enlouquecido de sair. Tirou suas roupas e jogou-se sob as águas do chuveiro, deixando que o frio lhe esfriasse os pensamentos. Ainda nu e molhado, desabou sobre o sofá da sala, fechou os olhos e tentou se tranquilizar.
—Vai ficar tudo bem, vai ficar tudo bem.
Nada estava bem. Nada ficaria bem. Nada poderia ficar bem.
—Eu não vou deixar nada te machucar, Elizabeth —repetia ele, ainda com os olhos fechados. —Não vou deixar que nada te machuque.
Mas ela já estava morta.
—Eu não vou permitir...
Falando sozinho dessa forma, Mauro acabou por adormecer, inquieto e suando frio. Suas noites nunca mais seriam tranquilas.

Angústia



Angústia

Realça um proveitoso sentimento, que se perde, se desfoca, se atinge, se desdobra. É quando, assim, nos vemos fraquejando, inseguros, imersos na dúvida do amanhã, quando não do próprio hoje. Olhos abertos sem que nada avistemos, mente fechada, lábios cerrados, incapazes de pronunciar quaisquer palavras que se aproximem de uma resposta para tantas quantas são as dúvidas que nos cercam. Nos prendemos com amarras invisíveis, acorrentados à rotina, à sequência de dias que passam sem que sejam percebidos e, ainda pior, sem que nos tragam alívio algum.
Angústia, é como a chamamos.
Aquela sensação de estar incompleto. A saudade do que não se tem, do que não se teve e, possivelmente, nunca se terá. A saudade de algo que passou há muito, mas passou porque assim permitimos. Um erro que, antes, fora um acerto, um movimento correto que desliza por entre os dedos entreabertos de mãos hesitantes. Uma piscadela que nos fez perder o filme favorito, a peça de teatro que jamais se repetirá, e junto disso, nos fez perder a vontade de assistir qualquer outra coisa.
Encontramos, na vivência imediata e peculiar, tantos momentos de angústia que sequer podemos nos assegurar de um dia posterior a tais pensamentos. Por vezes, enquanto buscamos somente o mais próximo da tranquilidade do sono, dos sonhos confusos ou mesmo dos pesadelos grotescos, deparamo-nos com o que mais nos assombra: a incerteza. Tivemos, um dia, a chance de ser diferentes. A chance de mudar tudo, de sorrir mais, de chorar menos. Agora, a chance se foi, e resta a angústia.
Compulsivamente, dói.
É provável que não seja a pior das dores, mas certamente dói. Fere por dentro e, em casos, jamais cicatriza. Dói, e dói um tanto mais pelo conhecimento fatídico de que a culpa é toda sua. Seus olhos não estavam abertos, ou talvez estivessem, mas não puderam, ou não quiseram, ver. Você hesitou. Você tropeçou, andou devagar, não acertou os passos daquela música. Você deixou o vento passar, e o vento passou. Agora, no silêncio monótono e aturdido de uma terra sem vento, nada resta.
Somente a angústia.
E ela se deleita em tal momento. Gargalha, assombra, enlouquece. Machuca. Ela vai e volta, por dentro, por fora, por todo o lugar. Ela te cerca, te abraça, te acolhe, te violenta. Você, em dados instantes, procura chorar, mas de que adiantaria? As lágrimas insistem, percorrem, deslizam, rebeldes, contrariando ordens demasiadamente importantes. E? São só lágrimas. A exibição de sentimentos reprimidos, o teatro de dores internas, guardadas, escondidas sob cortinas que jamais hão de se abrir. Apenas lágrimas. Não curam, não fazem a dor passar, não lhe dão outras chances. Nada. Só lágrimas.
E angústia.
E o que nos cabe diante da angústia senão angustiar? E, angustiados, o que nos resta senão, desesperançados, esperar? Torcer, rezar, se nisso ver proveito, acreditar que as coisas podem ser diferentes. Que pode haver outra chance, enfim. Que podemos, dessa vez, enxergá-la, sem deixá-la passar. Somos capazes de sentir o próprio nervosismo, e isso assusta. Somos capazes de enxergar os próprios erros, e isso entristece. Mas, acima de tudo, somos capazes de vivenciar a própria angústia, e isso dói.
São erros que, como quaisquer erros, cobram seu preço. Um preço caro demais, que só quem experimenta sabe o sofrimento de pagá-lo. Um preço que, sem escolha alguma, tem de ser pago, e será, de uma maneira ou de outra. E o preço da angústia é eterno, por vezes. Não compra uma ferramenta, não conserta; não compra um remédio, não cura; compra um alívio, ou, na medida do possível, o esquecimento e, assim, esquecemos, superamos. Seguimos.
Angustiados, porém.

Mas seguimos.

quarta-feira, 19 de junho de 2013

Nas Cordas do Desespero - Capítulo 4 [Web Novela]

4

A ROTINA COMEÇOU COMO TODA ROTINA COMEÇA: PACATA. Mauro entrou no escritório na tarde de seu primeiro dia de trabalho com uma ressaca destruidora. Sua cabeça doía, seu corpo doía, sua alma doía, mas ele estava lá, inteiro.
Obviamente, estava em pedaços por dentro. Não seriam sete dias ou dez batidas de destiladas a solução para os seus problemas. Ele jamais se esqueceria daquela perda, jamais apagaria da memória a cena de sua filha enterrada, dentro de um caixão de madeira envernizada. Mas tinha que prosseguir. Tinha que continuar a caminhar, e foi isso o que fez.
—Bom dia —disse ele, e ninguém respondeu com a animação de costume. Parecia que era ele o morto. Sentiu-se como um fantasma entre um bando de céticos.
Felipe o cumprimentou distante, de sua mesa de trabalho. Tinha olheiras fundas e lábios ressecados, mas parecia bem. Melhor do que Mauro, ao menos.
—Está tudo bem?
A pergunta vinha de Luciana. Encontrando uma brecha na documentação que organizava, a ruiva se sentou ao lado de Mauro com a expressão mais compreensiva e companheira que uma mulher poderia ter.
—O que você acha?
Ela deu de ombros.
—Espero nunca descobrir. Eu sinto muito, mesmo. Só quero oferecer ajuda, para o que você precisar.
—Eu sei que posso contar com você. Obrigado mesmo, Luciana.
Ela sorriu, simpática, e então se afastou.
—Mauro —chamou Rubens, e Mauro se levantou.
—Pois não?
—Venha à minha sala um momento.
Obedecendo à ordem de seu chefe, Mauro se levantou e adentrou a sala do patrão. Não era o melhor exemplo de organização, muito menos uma grande imagem de profissional exemplar, mas tinha seus livros nas estantes, suas impressoras multifuncionais e seus computadores de gerações atrasadas. Rubens mexia em seu bigode, como de costume, mas parou quando seu funcionário chegou.
—Espero que esses dias tenham lhe feito bem —disse ele. —Se precisar de mais alguma coisa, podemos conversar. Talvez precise descansar mais alguns dias, não sei. Com alguns descontos, podemos providenciar isso.
—Não, não precisa —Mauro falou. —Eu estou bem. Obrigado pela oferta.
—Tem certeza? Bom, se está bem, preciso que me detalhe os processos da semana anterior. Sabe como é, tá tudo atrasado por aqui. Não quis colocar ninguém no seu lugar para não me arrepender de esperar por você, entende? Tem seu emprego de volta, então conquiste minha confiança com atitudes agora.
Vontades de socar, chutar e gritar passaram num lampejo na mente de Mauro, mas ele só disse:
—Sim, chefe. Com licença.
E voltou para sua cadeira.
A tarde seguiu mais lenta que uma lesma de cadeira de rodas. Antes que o expediente chegasse ao fim, quando já era noite, Mauro ouviu duas das demais auxiliares de Rubens comentarem:
—Você viu as notícias, Mônica?
—Claro que vi! Parece que encontraram um corpo todo destruído, né?
—Do mesmo jeito que a filha do Mauro. Estão falando que pode ser o mesmo assassino.
—Tipo um assassino em série?
—Sei lá viu! Esses caras hoje em dia são muito loucos! Tem gente que mata só pra virar celebridade.
—Quinze minutos de fama, vai vendo.
—Quinze minutos de fama por vinte anos de prisão. Não acho que seja uma troca justa.
—Nem eu! Mas fala sério, eu não consigo imaginar como ele tá se sentindo agora. E se esse cara estiver mesmo por aí, se estiver matando mais garotinhas como Eliz —
—Não fala —a outra sussurrou, ríspida. —Ele vai nos ouvir!
Com mais cuidado para manter a voz baixa, continuaram:
—Se alguém estiver matando garotinhas por aí dessa forma, as coisas vão ficar feias. Nossa cidade vai ficar conhecida mundialmente por um pedófilo retardado.
Mauro derrubou alguns de seus papéis, chamando a atenção das duas fofoqueiras, que deixaram de lado a conversa para voltar a seus afazeres. O homem recolheu seus documentos e se levantou, buscando um copo de água. Aproveitou a brecha para ligar a internet do celular, procurando nos sites de notícia pela morte que não vira nos jornais. Não foi difícil encontrar:
Garota é encontrada morta debaixo da própria cama.
A pequena Júlia tinha somente onze anos de idade. Encontrada nessa manhã, debaixo da cama onde dormiu por todos os anos de sua vida, Júlia estava sem vida e tinha diversos cortes espalhados pelo corpo despido, bem como pedaços retirados e espalhados pelo chão do quarto. A polícia acredita que o criminoso tenha se utilizado de envenenamento, já que os pais alegaram não escutar grito algum da filha, mas a perícia ainda não confirmou nada a respeito. A suspeitas de que esse caso possa estar relacionado com o caso de Elizabeth, encontrada morta em sua casa há cerca de sete dias.
—Filho da mãe —Mauro deixou escapar. Se aquele era o mesmo homem, ele realmente estava fora de si. Alguém tinha que pará-lo.
O que ele estava pensando naquele momento? Queria ser um herói? Bobagem! Sua cabeça girava, ainda ressentida pela perda da filha, mas o que isso poderia mudar? Restava a ele confiar na polícia, a mesma polícia que nunca resolvia nada em seu país, que se vendia para bandidos e se voltava contra o povo. Era ela a sua única esperança de encontrar o assassino de sua filha e se vingar, acreditando numa justiça que inexistia. Mas e daí? Ele veria o culpado ser levado a julgamento, preso por alguns dias e solto após pagar uma fiança que não era o preço de sua filha, certamente. E depois?
Por que ele pensava no depois?
—Mauro.
A voz de Rubens extinguiu seus pensamentos.
—Sim, chefe.
—Não acho que essa seja a sua cadeira de trabalho. Tem certeza de que está se sentindo bem?
—Eu... Eu estou sim.
Mas era mentira.
Rubens respirou fundo.
—Vai embora. Já chega por hoje. Vai descansar, você precisa.
—Mas —
—Sério, pode ir. Não vou descontar do seu salário. É uma promessa, cara.
Mauro baixou os olhos.
—Tá legal. Obrigado, chefe.
—Não é nada —Rubens falou, mas Mauro já estava distante o suficiente para sequer escutar.