quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Um Ano de Medo

Postagem super rápida, apenas para divulgar um projeto muito bacana que encontrei recentemente na internet! Trata-se do Um Ano de Medo, um blog onde seis autores se reuniram para postar diariamente contos de terror, suspense e similares durante o ano todo! A ideia é seguir alternando entre os autores, que têm um dia fixo de postagem, e um autor convidado, que terá seu conto postado no sábado, para postar histórias ao longo de 2013! A ideia é muito boa, e pelo jeito esse pessoal está com o gás todo! Não deixe de conferir essa iniciativa literária que tem tudo para alavancar leitores e autores!
Confira aqui: UM ANO DE MEDO.

Animação - Detona Ralph!


Detona Ralph é, sem dúvida alguma, a maior homenagem aos games jamais feita!



Quando me sentei para ver esta animação, esperava pela imensa qualidade na indústria atual. Temos vistos grandes filmes e roteiros apresentados em personagens carismáticos, isso é um fato, e eu esperava por mais do mesmo, aquilo que agrada, mas que não surpreende. Fui na certeza de que gostaria do filme, mas na dúvida se encontraria algo que me deixasse impressionado.
Então tudo começou com o curta 'O Avião de Papel', da imagem acima.
Esta história pequenina, previamente apresentada antes que o filme propriamente dito se inicie, já impressiona. A qualidade da produção, o roteiro simples, sem diálogo algum, mas imensamente emocionante, é tudo tão gratificante que já fez valer o ingresso do cinema! Não tem nada relacionado à história de Ralph e os jogos, mas esse pequeno curto revolucionou, como os curtas dos Pokémon sempre revolucionam os filmes da franquia. Assistir a uma história de amor garantida pelo destino fez daquela sessão de cinema muito melhor, e aquela tradicional lição de moral que diz que, quando algo tem de acontecer, o mundo todo gira a favor disso, está tão explícita que chega a dar gosto!


Agora, a animação de verdade! Logo de cara, conhecemos Detona Ralph, o grande vilão do jogo Conserta Félix Jr., mas ele não está tão feliz. Conforme seu jogo completa 30 anos de existência (como um dos poucos fliperamas que ainda não saiu de circulação), Ralph vê todos os personagens comemorando com Félix Jr., enquanto ele ainda vive no lixão, sozinho e mal visto. Assim, após uma intriga com um dos personagens, Ralph abandona seu próprio jogo na busca por uma medalha, o que, ele acredita, poderá mudar toda a sua vida. Mas isso leva a ele a uma imensa aventura!
Enquanto acompanhamos Ralph em sua busca por reconhecimento e mudança, somos gratificados por infindáveis referências ao mundo dos games! Ouso dizer que, ainda que as crianças admirem por completo essa produção, Detona Ralph agradará muito mais àqueles que acompanharam os jogos dos anos 90 em diante, pois lá encontrarão os antepassados Street Fighter, Sonic, Pac Man, entre outros. Os vilões dessas séries estão lá, todos aceitando seu cargo, mas não sendo totalmente maus (tipo o Zangief na reunião dos vilões, haha). Também temos a oportunidade de ver inúmeros easter-eggs passando pela central dos games (como a Chun-Li, o Sonic e outros), bem como várias referências cômicas às clássicas atitudes dos games (como aqueles personagens de armaduras imensas que ficam correndo na direção das paredes, a la Gears of Wars, haha). É tudo tão natural, ao mesmo tempo que tão agradável, que algumas passam despercebidas, infelizmente. Mas todas elas estão lá, como uma homenagem perfeita, e agradam. Até fazem pensar em como essa ideia nunca tinha sido feita antes, de tão sensacional que a animação ficou!


Detona Ralph tem passagens engraçadíssimas, cenas marcantes e um roteiro glorioso que, arrisco eu, pode tirar lágrimas dos mais sensíveis em mais de uma situação. Ao fim, no entanto, restam apenas sorrisos e lembranças boas, fora aquela vontade de assistir de novo e de novo, e quem sabe de jogar alguns antigos clássicos. Cá entre nós, a experiência de assistir essa animação fez com que eu sentisse o peso da minha idade, é sim, mas também me deixou admirado por ter vivido numa época tão boa dos games, e ainda mais admirado por encontrar num filme de pouco mais de 90 minutos tanta coisa sobre a minha infância, sobre aquilo tudo que sempre gostei e sempre vou gostar. Para os amantes dos games, seja de qual geração vocês sejam, é uma produção imprescindível, que vocês realmente NÃO PODEM PERDER! Para aqueles que jogaram pouco, mas que ainda assim guardam boas memórias dessa época, fica a dica de uma animação bem trabalhada, com uma história bonita de se ver e personagens extremamente simpáticos. Eu adorei, adorei mesmo, e acredito fielmente que, da mesma maneira que me agradou como poucas animações foram capazes de agradar, Detona Ralph tem capacidade para agradar qualquer pessoa que admire esse tipo de produção.
Então, não perca tempo!
Vamos detonar!

domingo, 13 de janeiro de 2013

Sonic e Megaman nos quadrinhos!



É isso mesmo, você não leu errado: Sonic e Megaman se encontrarão num crossover. Para você que, como eu, jamais imaginou ver o protótipo do Dr. Light se encontrar com o ouriço mais rápido (e estiloso) do mundo, prepare-se para ver a maior colisão de mundos de 2013. Reunidos para uma grande saga de 12 edições, Megaman e Sonic estarão nas mãos do roteirista Ian Flyinn e do desenhista Patrick Spaziante para agraciar a editora Archie Comics com um prêmio de originalidade na ideia! E agora, o que vai acontecer com os dois maiores mascotes azulados de todos os tempos?



Lembrando que Sonic já conta com cerca de 20 anos de publicação na Archie Comics, enquanto Megaman ainda está no berço, há apenas 2 anos na editora. E vale a pena ressaltar que a Capcom e a Sega gostaram da ideia, o que pode, num futuro não tão distante, nos presentear com um jogo do crossover. Vai encarar?

Estranhos no Espelho - Parte 4 / Ato VIII

REFLEXO TURVO

VIII

Um relógio badalou ao longe.
Uma, duas, três. Sete vezes.
Abri os olhos, e só então percebi que adormecera. Todos se levantaram ao mesmo tempo, surpresos pelo toque inesperado. O estrondo parou, deixando reinar o silêncio enquanto todos bocejavam pelo cansaço.
Então, outra vez. Um, dois. Sete toques de um mesmo sino.
—Que merda é essa?
Hector, como sempre sutil. Olhei o relógio circular na parede.
Sete horas.
—Coincidência?
Suzan deu de ombros.
—Que diferença faz?
—Toda a diferença. Aquele cara ainda me assusta.
Lucius parecia pensativo.
—Tem alguma coisa estranha.
Hector riu em deboche.
—Difícil é encontrar uma coisa que não seja estranha!
—Não, você não entendeu. Sete toques de um sino, cara. Não tem sinos aqui perto. Não tem nem mesmo uma igreja ou um relógio central!
Ele estava certo. Como era possível escutar o estrondo do sino sabendo que a igreja mais próxima ficava a pelo menos três bairros de distância?
A garota acordava naquele momento, sorridente. Abria seus olhos sem cor e sem brilho, olhos que chegavam a incomodar por tamanha estranheza.
—Sete horas! Deve ser uma bela manhã lá fora!
Era bizarro imaginar uma garota cega sabendo as horas sem que ninguém dissesse, mas ela, por vezes, enxergava mais do que todos nós.
—Eu vou ver que barulho é esse.
Sem esperar por ninguém, abri a porta do quarto e saí, e o que vi me surpreendeu como um soco ríspido.
Não encontrei o corredor do hotel, nem mesmo as paredes pintadas e a decoração barata. Não encontrei as pessoas hospedadas em outros quartos, possivelmente por sequer existirem outros quartos naquele lugar. Eu saíra de um cômodo mundano para dar de encontro a uma planície inóspita, um deserto gélido e noturno, onde as sete horas da manhã pareciam tão macabras quanto a madrugada de uma cidadela.
—Mas que —
Antes que eu pudesse exaltar minha indignação, todos os demais deixaram escapar murmúrios confusos. Atrás de nós, onde há pouco havia um quarto com nossos pertences, nada mais. Nada além do horizonte negro, da linha obscura e interminável daquela terra arenosa e malcheirosa, uma terra que, de tão sombria, lembrava-me um espelho do céu que nos circundava.
—Tá legal, quem foi que jogou a droga nas nossas comidas?
—Ninguém jogou nada, Hector. Nós não estamos mais na cidade.
—E que porra de lugar é esse?
—Como eu vou saber, cara? Acabei de acordar, como você? Até onde eu sei, a gente terminou o ritual com os Herdeiros e voltou para o quarto, e então aquele sino começou a tocar e —
—Eu estava lá, Victor, mas obrigado pelo resumo. Se isso tem alguma coisa a ver com aquele cara-relógio, alguém vai morrer hoje!
Deixei que ele despejasse suas reclamações contra a noite enquanto me dispunha a estudar a paisagem. Dentre tudo o que era idêntico, encontrei, muito ao longe, algo que me chamou atenção.
Uma construção.
—Olhem aquilo.
Apontei a direção, e todos os olhares se voltaram para ela de imediato. Parecia uma grande casa, ou um estabelecimento de vendas, algo assim, todo construído em madeira escura, com luzes coloridas escapando pelas frestas de suas vigas.
—Que merda é aquela, uma boate pra vampiros?
Olhei com certa surpresa para Lucius. Vê-lo ironizar algo me fazia entender o quão insana a situação estava.
—É nosso único ponto de referência até então. Vamos. Quando estivermos mais próximos, poderemos saber o que é.
Deixando de lado os comentários desnecessários e as lamúrias da confusão, seguimos uma caminhada que parecia infinita.
O mundo ao nosso redor mudou. Mudou em termos, obviamente, pois o deserto ainda estava ali, tal como o céu negro e o vento frio, mas a paisagem se alterava conforme caminhávamos. Ramos de plantas esqueléticas se erguiam em estacas, e muitas delas tinham corpos putrificados fincados em sua extensão, abandonados para sangrar até a morte.
Suzan vomitou ao lado da Cega, o instinto maternal feminino obrigando-a a cobrir os olhos de alguém que já não enxergava.
Mesmo eu, com todo o sangue frio que adquirira após tantos acontecimentos nauseantes, sentira ânsia ao assistir aquelas atrocidades sem fim.
Pedras deformadas se estendiam num muro de lamentações, cada qual riscada como se rostos fossem, olhos em pranto, lábios congelados em gritos, narinas de ferimentos surreais. As pedras choravam, escorrendo de seus poros artificiais o choro sanguinolento daquela cena macabra, tudo acompanhado de uma música aterradora que surgia quando o vento trespassava cada cicatriz que assolava os rochedos.
A Cega caminhava com um sorriso, e isso era inacreditável.
Por um momento, por um só momento, eu quis ser cego também.
—Eu vou enlouquecer.
Suzan estava mal. Ela, que demonstrara uma força superior a todas as mulheres que eu já conhecera na vida, vira demais naquele tempo todo. Aguentara a situação de ver-se diferente, de encontrar-se em outra realidade, aceitou essa verdade maldita como uma verdade definitiva, ainda que soubesse que, além de nós, acima daquele lugar, sua vida a aguardava outra vez.
Mas ela estava mal. Estava cansada de não entender, cansada de tentar entender o que se tornava cada vez mais confuso. Cansada de viver uma vida sem rota, sem rumo, sem destino certo.
Postei minha mão sobre seu ombro.
—Vai ficar tudo bem.
—Não. Não vai ficar tudo bem.
—Você tem que acreditar, Suzan. Se você não acreditar, quem vai?
Silenciosa, ela começou a chorar, mas engoliu o choro rapidamente.
—É. Você tá certo. Eu preciso acreditar.
—Então acredite. Nós estamos aqui. Nós todos —
—Cuidado!
O grito atrapalhou meu raciocínio, quase me fez cair pelo abalo. A voz era de Lucius, mas por um instante eu não o encontrei. O tempo pareceu congelar, e a expressão de Hector me revelou que nada do que acontecia naquele instante poderia ser bom.
Foi quando eu vi aquela coisa.
Ela tinha dois olhos e uma boca, e eu juro que tentei me prender naquele padrão para aceitar que algo daquele porte poderia existir. Seu corpanzil me lembrava um urso cuja pelugem fora retirada, deixando a carne pútrida e leprosa despencar em movimentos exagerados, e três línguas gordurosas se arrastavam na areia, tão rústicas quanto as pedras que nos acompanhavam nos arredores.
—Hector!
Ele se virou para mim. Foi uma boa coisa a ser feita, em termos. Meu grito chamou sua atenção, e isso salvou a vida de Hector, a carne alvejada por aquele ser monstruoso.
Agora, eu era o alvo.
—Suzan, corra!
—Victor!
—Corra!
Ela obedeceu, mas o faria mesmo que eu não mandasse. Levou consigo a Cega, que acabou por derrubar seu material de desenho.
Eu agarrei a folha de Outono em meu bolso com toda a fé que tinha, o que não era muita coisa. Ainda assim, acreditar na mágica que eles me prometeram me parecia mais tentador do que me tornar alimento para uma criatura cuja existência desafiava as leis da lógica.
—Funcione, funcione, você tem que funcionar!
Aquele era eu, falando com uma folha.
Louco.
—Acredite, pense e realize.
—O que?
Quem dissera aquilo?
—Acredite, pense e realize.
A voz vinha de longe, mas vinha de perto. Do alto, dos lados, de todo lugar.
A voz era um murmúrio do vento.
—Acredite, pense e realize.
Uma terceira vez, e só com essas palavras eu pude compreender a mágica que tinha nas mãos, mas a bocarra esquelética já estava sobre meu corpo, baforando um odor fétido que me pareceu capaz de derrubar um exército.
Eu aceitei a morte, pois reação alguma seria tão rápida quanto aquele monstro medonho, mas a morte não me abraçou. Senti o sangue escorrer em meu corpo, quente e asqueroso, mas não era o meu sangue.
Era o sangue da criatura.
—Mas o que —
Lucius tinha nas mãos a simbologia da Primavera, e com ela fez nascer do solo infértil tantas plantas quanto me pareceu ser capaz de ver na maior das florestas. Os chicotes verdejados eram carregados de espinhos que, de tão pontiagudos, atravessaram a espessa camada de carne flácida daquela aberração, livrando-a do contato com o solo antes que sua velocidade irreal permitisse que meu corpo se tornasse uma nova refeição.
Agora ela jazia à minha frente, o corpo aberto ao meio, os órgãos despencando como uma chuva de podridão.
—Deu certo! Deu certo, vocês viram? Eu usei a mágica! Eu usei magia!
De alguma forma, Lucius parecia feliz por aquilo.
—Olhe agora, Hector! Vai me dizer que isso também não é magia?
Hector tinha um pedaço de sol nas mãos.
—Cale a boca, Lucius! Essas coisas devem ter algum efeito especial, sei lá —
Surgiram outros dois monstros como o anterior, e eles pareciam tão famintos quanto o irmão. Ao avistarem o cadáver sacrificado da primeira das criaturas, a ira os consumiu, lançando-os numa investida desprovida de precaução.
Um deles se incinerou no lugar, coberto por um fogo espiralado e assombroso.
Hector gargalhou, o braço em chamas.
—É mágica, filhos da puta! Se essa merda é magia, eu vou queimar todos vocês até que o inferno pareça a porra de uma geladeira!
E queimou.
Eu não sabia o que fazer. Levantei outra vez a folha nas mãos, e Suzan fez o mesmo, o floco de neve das Damas do Inverno frio e brilhoso entre seus dedos delicados. Acredite, pense e realize. Aquilo não me dizia nada.
O gelo rompeu o deserto na forma de estalactites e estalagmites, perfurando todo o corpo da deformidade que nos afrontava, deixando-a sangrar até que nada de sua vida restasse.
Suzan comemorou, acompanhada da Cega e de Lucius, e eu me senti um inútil.
—Me ajudem!
Era Hector.
O fogo em seu braço o queimava, e eu pude ver sua pele queimar como papel atirado em lareira. Jogado ao solo, ele rolou de um lado para o outro, buscando uma forma de apagar aquele fogo que há pouco o servira.
—Merda! Nós temos que ajudá-lo!
Eu corri até ele e bati com minhas roupas, fazendo o possível para aliviar aquele incêndio localizado, e por sorte consegui evitar que as chamas se alastrassem. Ainda assim, a pele toda fora perdida, e parte do braço se desfizera nas chamas, deixando-o incapaz de utilizar o membro esquerdo.
—O que aconteceu, Victor? O que aconteceu com essa coisa?!
—Eu não sei, eu não sei!
Suzan gritou.
Lucius caíra ao meu lado, uma vinha espinhosa rodeando uma de suas pernas como uma armadura de castigo infindável. Logo atrás, o mesmo gelo que nos salvara atravessava os ombros de Suzan, deixando-a marcada por estacas cristalinas cujo tom azulado se perdia no sangue que jorrava dos ferimentos.
Eu me levantei, confuso. A Cega saltitava, sorridente.
Cantarolava:
—A magia é perigosa, a magia perigosa!
Por um único instante, eu agradeci por ser inútil.

sábado, 12 de janeiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 3 / Ato VII


VII


Eu me surpreendi com as palavras das Damas do Inverno, mas não tive tempo de pensar em qualquer coisa. Nós piscamos, respiramos, livres da pressão dos herdeiros por um único instante e, quando menos percebi, estávamos em outro lugar, longe da neve, das folhas secas, das flores e do sol quente.
A área em que nos encontrávamos era desmatada, nada além de um gramado baixo num local circular. Dali eu conseguia observar todas as árvores, e elas se dividiam, parte floridas e coloridas, parte secas e sem folhas, parte de frutos amarelados e quentes, parte de arbustos tomados por neve. Era uma floresta de estações, onde todos os herdeiros agiam ao mesmo tempo, um lugar que não devera existir, mas estava ali, ao nosso redor, tão lindo quanto inexplicável.
Ainda estava pensando no amor de Cigano por Decrépita quando chamas verdes desceram dos céus, espiraladas e fumegantes, atingindo troncos cerrados no centro da área desmatada, o que criou uma fogueira da cor das esmeraldas, tão brilhante quanto as joias de mesmo nome. O fogo crepitava, intenso e vívido, movendo-se numa dança bruxuleante, cujos passos eram sempre belos, mesmo que aleatórios.
—Onde estamos agora?
Hector olhava ao redor, indiferente. Ele era cético demais, quase cego diante de tantas coisas sem explicação. Como era possível alguém não acreditar naquilo que lhe circundava?
De súbito, uma voz cantarolou algo que eu não consegui compreender. Lucius parecia intrigado.
—É latim.
—O que disse?
—É latim! Essas vozes...
Ele se concentrou por um tempo. Eu ainda tentava entender, me sentindo numa festa de músicas orientais.
—Filhos da floresta.
—Como vimos antes, na entrada da floresta.
—Exatamente.
—Como era a mensagem mesmo?
Não conseguia me lembrar.
—Eu não me lembro.
Lucius buscou em sua mente, sem se lembrar. Estava tão abobado com todas aquelas coisas quanto eu.
—Respeitai os filhos da floresta.
Foi Suzan a primeira a se lembrar. Ela ainda tinha o braço envolto nos ombros da Cega, assistindo-a em sua produção artística.
—Isso, Suzan! Respeitai os filhos da floresta.
—É isso o que eles estão cantando, Lucius?
—Eu não sei ao certo. Parece que —
Uma árvore ao longe oscilou. Alguma coisa vinha daquela direção, grande e pesada.
—O que é isso?
A resposta não veio, pois todas as vozes desapareceram pela surpresa.
Cinco criaturas surgiram da floresta, e elas eram imensas. Em minha noção de medida, chutei algo bem próximo dos cinco metros, mas talvez fossem ainda maiores. Eram monstros humanoides, de longos braços e pernas, e suas peles eram cascas de árvores, rígidas e cobertas de musgo. A cabeça e o torso tinham arbustos bastante verdes, trajados como pelugem artificial; um cordão de vinhas se enrolava no pescoço de cada um daqueles seres e, neste, carregavam tartarugas cujos cascos eram feitos inteiramente de grama e flores, como se estas fossem pingentes memoráveis.
Os cinco surgiram com passos lentos, tranquilos demais para seus tamanhos avantajados, e postaram-se ao redor da fogueira, indiferentes quanto à nossa presença.
—O que são essas coisas?
—Fique quieto, Hector!
Eu geralmente não me incomodava com as bobeiras que Hector falava, mas elas poderiam custar as nossas vidas naquele instante.
Um dos monstros se aproximou de nós, mas seus olhos foscos e grotescos estavam fixos em Hector. Pensei que ele tinha se sentido ofendido, que planejava se vingar, algo assim, mas ele não o fez. Se o fizesse, infelizmente teríamos de assistir à morte impiedosa de um de nossos companheiros, pois nenhum de nós desenvolveu coragem o suficiente para relutar quanto a aproximação daquela criatura.
Ela se ajoelhou, estendendo a mão para o antigo presidiário. Sobre os cascos de árvores de seus dedos, havia uma pequena flauta feita de madeira.
—Ah, claro. Eu e minha cara de flautista, merda!
Um pouco hesitante, Hector pegou o instrumento das mãos da criatura, e então ela retornou para seu lugar.
—Você sabe tocar?
—Mais ou menos. Eu sei bastante de gaita, sim, mas nunca tentei tocar uma flauta antes. O princípio é o mesmo, mas é bem diferente ainda assim.
—Algum de vocês sabe tocar?
Todos eles responderam que não.
—Deixem fluir.
Aquelas eram palavras da Cega. Hector se virou para ela.
—Como é?
—É só deixar fluir. Às vezes, os melhores acertos vêm de coisas erradas. Quem sabe a magia que você não acredita não te ajuda, não é?
Hector se sentiu ofendido.
—Quem você pensa que é, garota?
—Eu não sou ninguém, e nem você. Em alguns momentos, no entanto, somos algumas coisas. Em alguns momentos eu sou uma desenhista. Agora, você é um músico.
Ela nos mostrou um desenho simbolizando a flauta que ele tinha em mãos.
Os cinco seres nos olhavam com certa impaciência, mas todos eles eram lentos demais, calmos demais e inertes demais. Quando parados daquela maneira, lembrava árvores com olhos curiosos, movendo-se de um lado para o outro.
Hector examinou a flauta uma última vez.
—O que eu tenho a perder, não é?
Sem mais demoras, ele soprou a flauta.
A melodia era incrivelmente linda.
Eu tinha certeza de que Hector não sabia o que estava fazendo, mas a música estava ali, perfeita, agradável de se escutar, apaixonante. Ela ecoou, agradou as folhas e as flores, fez as frutas amadurecerem rapidamente, fez a neve brilhar no sol que parecia aumentar no céu.
Os cinco filhos da floresta uniram os braços, entrelaçaram os dedos de madeira e começaram a girar, dançando ao nosso redor como uma roda de gigantes, e eu senti vontade de dançar, coisa que nunca antes sentira, e quando menos percebi já estava me movendo, ao lado de Suzan e Lucius e da Cega, e todos nós dançávamos, e Hector soprava sua música, bailando com passos precisos, de um lado para o outro, com os olhos brilhando pela proximidade das chamas verdejantes.
Suzan riu alto.
—Isso é incrível! Vejam isso, sintam essa coisa toda, é lindo demais! Conseguem sentir?!
Eu conseguia.
Sentia a vida como um todo, o mundo, o ar, as nuvens, sentia tudo aquilo dentro de mim, tudo ao meu redor, o chão sob meus pés e o céu sobre meus olhos. Mais do que tudo, sentia a natureza, o verde das folhas, o azul dos oceanos e lagos, as cores e sabores dos mais variados frutos, as formas e belezas das mais distintas flores. Sentia perfumes e odores, sentia gostos e desgostos, tudo e muito mais, uma sensação única em turbilhão, uma sensação infinita em extermínio.
Percebi que estava rindo, bem como Lucius e Hector e a Cega, rindo como crianças, como tolos adultos numa festa de alucinógenos, mas aquilo era real, uma verdade sonhadora, um devaneio verdadeiro.
—Você é bom nisso, Hector!
—Eu nem sei o que estou fazendo!
E ríamos.
—Olhem como esse lugar é bonito! Olhem todas as cores, todas as estações! Olhem a magia da natureza!
—Estamos todos vendo!
E ríamos mais e mais.
A dança continuou, e então surgiram os Herdeiros do Alvorecer, todos eles, cada qual de sua área, de sua estação, e eles se juntaram ao festejo. As Damas do Inverno giravam ao redor de Primavera, e elas gargalhavam quando as flores se congelavam e voltavam para suas cores originais. Verão e Outono saltitavam numa melodia agitada, os braços trocados de acordo com os passos, a armadura brilhando como o sol, o manto despejando suas folhas secas para todas as direções.
Esbarrei em Primavera num giro não intencional, me desculpei.
—Não há desculpas no Baile das Sete Nuvens!
—Então o que há?
—Não há nada além da música e da mágica.
E só existiram a música e a mágica por muito tempo.
Eu não soube dizer quanto tempo durou aquilo tudo. Pareceram minutos, minutos que deixaram saudades, mas horas podem ter passado, até dias, e eu não perceberia de modo algum. Não senti fome, sede ou sono, não senti nada além da magia e da melodia, nada além da natureza e daquela dança perfeita.
—No final, só vai restar um herdeiro para cada um de vocês.
Eu escutei aquelas palavras, mas não soube dizer de quem elas eram. Poderiam ser de Verão, ou das Damas do Inverno, talvez até mesmo de um dos filhos da floresta. Talvez fossem minhas. Não pude me lembrar.
Lembro-me da música, somente da música, e daquela sensação de estar completo, de estar vivo, vivo de verdade pela primeira vez.
Eu fechei os olhos em algum momento e, quando os reabri, estava no quarto do hotel, o mesmo quarto que deixamos tempos atrás, sejam minutos ou anos. Pisquei sem pressa, a cabeça latejava sem explicação. Olhei ao redor, estavam todos lá, igualmente exaustos, igualmente confusos. Não sabia dizer se tudo aquilo fora um sonho ou realidade, muito menos se a magia era real, se a música era verdadeira, se as verdades não eram mentiras.
A única coisa que tinha em mente era aquela melodia, aquele som que não mais me abandonaria, o som do encontro de sete nuvens claríssimas, de sete purezas num mesmo céu.
Sentei-me na cama, ainda tonto.
Abri a mão direita e encontrei, ali, uma folha seca de outono.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 3 / Ato VI


VI


Ela era linda demais para ser descrita.
Seus cabelos eram folhas e flores, e toda a sua roupa era feita dos mesmos materiais, um longo vestido florido, cujas bordas de pétalas deslizavam pelo solo conforme ela dançava seus passos.
—Quem é você?
Lucius perguntou por estar impressionado, não por medo. A sensação oferecida por aquela mulher, por aquela presença, era de uma calma impossível de ser descrita.
—Eu sou as folhas e as flores, o vento e a chuva, as cores e formas. Eu sou aquela que nasce da neve, que faz florir o calor que em breve fará do mundo um lugar terno e brando, aquela que envolve a todos num abraço perfumado e carinhoso.
Eu entendia pouco do que ela falava, mais preocupado em admirar cada segundo daquela existência tão magnífica, de curvas simétricas, de dotes ajeitados, de perfeição mais que perfeita. A cada respiração, sentia infindáveis perfumes, a mente banhada por tantas cores quantas existiam em todo o mundo ao meu redor.
Por fim:
—Eu sou a Primavera.
Ela não nos disse, mas todos nós sabíamos que ela era uma das herdeiras. Talvez fosse a mais bela, pois beleza maior do que aquela era simplesmente inacreditável. Primavera, como herdeira do alvorecer, não era uma simples mulher, não era sequer humana. Ela era um ser vivente, como uma deusa, como uma divindade superior ao mundo que habitávamos, responsável pela estação das flores, das cores e da brisa perfumada.
—Aqueles que buscam pela mágica necessitam de um justo motivo para que possam alcançá-la. O que os traz até aqui?
A Cega desenhava Primavera em seu bloco de folhas, mesmo sem vê-la, e aquele era seu modo de demonstrar a admiração que possuía. Ao seu lado, Suzan estava tão impressionada quanto todos nós, mas foi ela quem falou:
—Sete Horas nos indicou o caminho. Precisamos da mágica para sobreviver na Terra de Baixo. Precisamos dela para retornar ao nosso lar.
—São vocês sobreviventes, pelo que entendo. Sobreviventes do acaso de ruptura de Decrépita. Ainda me entristeço ao saber da empreitada desvairada de tal entidade, cuja finalidade não é outra senão a de se alimentar, de viver, de manter-se viva.
Eu me senti um pouco confuso. Pensei em fazer uma pergunta, mas Hector foi mais rápido.
—Não me importo com o que ela quer fazer. Por mim, ela pode até conseguir. Eu só quero voltar para a minha casa.
—E novamente se tornar um alvo de críticas e olhares, se me permite dizer. O que há de tão ruim na Terra de Baixo? Alguns sobrepujaram seus status, e hoje são muito melhores. Azarado é aquele que fora algo bom, e aqui se encontrou em decadência.
—Eu prefiro minha vida antiga, por mais imunda e podre que ela possa ser. Não tem nada melhor do que o nosso lar. Foi algo que aprendi desde minha infância.
Primavera sorriu, e seu sorriso era ainda mais apaixonante do que sua beleza, tão encantador quanto o ocaso deslumbrado entre montanhas e o mar aberto.
—Bela motivação. Todos fazem o necessário para que suas vidas prossigam nos degraus da existência. Indagando-me de tal forma, reflito sobre a Decrépita e sua malevolência. Se ela necessita disso para viver, como podemos incriminá-la por isso?
Engoli em seco. As palavras de Primavera faziam sentido. Decrépita não estava destruindo mundos por pura diversão. Ainda que antagonista, ela precisava de universos para sobreviver, precisava de poder para existir. Não era um crime. Não era uma malícia exacerbada, uma maldade impura nascente de um coração gelado. Ela era aquilo e, como aquilo que era, tinha de matar para viver.
—Não acho justo que milhões desfaleçam para que somente um se mantenha em pé.
As palavras de Suzan pareceram firmes demais, o que me surpreendeu.
—Certamente que não. Mas e se esta fosse a sua vida, donzela? E se fosse você, ou algum de vocês, a precisar de tantas vidas para que dessem continuidade à sua? O que fariam?
Pensei por um minuto. Obviamente, homens, como homens que são, fariam qualquer coisa para que seus dias fossem prolongados, para que os minutos do viver se perdessem nas contas do infinito.
Pigarreei antes de responder:
—Não podemos culpá-la, realmente. Ela não faz por mal, em termos, mas faz o mal por fazê-lo.
—Não pensem que estou a defendendo, meus caros, mas nós, os Herdeiros do Alvorecer, presenciamos coisas que vocês sequer sonhariam. Em tantas andanças pelo infindável, entendemos muito da existência, muitos dos caminhos fazem sentido sem que isso seja possível. Não a defendo, pelo contrário, mas ainda enxergo aquilo que a motiva a fazer o que é feito.
A Cega terminou seu desenho, e Suzan o pegou para admirar. Pude ver de relance. Parecia perfeito.
Lucius tomou a frente.
—É por isso que não desejamos seu mal. Decrépita não é assunto nosso. Só queremos recuperar nossas antigas vidas, nada mais. Não somos heróis, como bem dissemos a Sete Horas. Se ainda existe alguém que acredita nisso, é melhor que deixe de sonhar.
—Tantos outros antes foram capturados. Nenhum deles foi capaz de descobrir o que lhes acontecia, muito menos de fazer algo para evitar as estranhezas que lhes cercavam. É por isso que estamos aqui. Fazendo aquilo que o homem-relógio disse, teremos maior facilidade em nosso caminho. Não que eu acredite na magia, mas foda-se. Eu preciso dela, ou disso que vocês podem nos oferecer, e farei de tudo por isso.
Primavera deixou-se sorrir, apesar do desrespeito demonstrado por Hector.
—Que assim seja. Admiro a valentia presente em cada um de seus corações, mas não acredito que somente ela seja o suficiente. Façam o melhor, no entanto. Por vocês, por seus objetivos, por desejos ou pelo mundo, somente façam o melhor. O resto não é importante.
Ela soprou com suavidade, e a brisa nos trouxe uma pétala rosada, brilhante e manhosa, que se acomodou na palma de cada mão.
—Isto que agora têm em mãos é minha benção, e com ela têm direito à mágica que os herdeiros podem lhe oferecer. Existem outros, no entanto, e cada um deles é unicamente responsável por seu julgamento. Em minha mente, a voz do interior clama para que vocês se tornem reais diante do universo, para que recebam o dom que tantos sonhos, mas a mente de meus irmãos pode pensar de maneira diferente, o que me impede de lhes oferecer algo além de minha benção.
Primavera se curvou com elegância, um gesto que teve de ser retribuído até mesmo por Hector, por menor que fosse sua educação.
—Cacem as demais, obtenham todas, e assim serão merecedores de tais virtudes. Estarei aqui, diante de todas as flores, ocultando minhas preces para que o sucesso que almejam seja possível.
Ela girou no lugar, e o perfume encantou minhas narinas. Fechei os olhos, sonhei com um bosque de flores de arco-íris e, quando os reabri, ela não mais estava lá.
As árvores agora tinham folhas amarelas.
—Ainda é o mesmo lugar?
Suzan olhava ao redor, confusa.
—Quem sabe? Na verdade, não faz muita diferença. Que seja o mesmo, que seja outro. Estamos num lugar diferente do comum, um lugar nenhum, em lugar algum.
—E desde quando você é filósofo, Victor?
Dei de ombros.
Um homem se aproximava de nós, trazendo consigo o Calor, e o Calor não era um simples calor, mas sim o maior dentre todos eles. Nas mãos daquele homem, uma esfera brilhava imponente, e sua luz parecia capaz de cegar-nos com facilidade, mas ela estava ali, serena, tão calma quanto a brisa de Primavera.
O homem vestia uma armadura vermelha, tão vermelha quanto seus cabelos, quanto as sardas em sua pele clara, quanto o brilho de seus olhos. Sua simples visão era quente como uma tarde de sol fervente.
—Há tanta vida por sob o sol quanto há por sob o mundo. As vidas são as mesmas, tão idênticas, tão distintas. Tão monótonas.
Ele se curvou, e nós retribuímos sem perceber. Era quase uma obrigação, mas não era algo ruim. A sensação que eu tinha era a de realizar uma vontade interna, gritar um obrigado reservado há eras, sonhar acordado um pesadelo perfeito que sempre esteve ali, adormecido, conforme eu via as estações passarem no céu, através das nuvens, nas folhas das árvores e nas ondas do mar.
—Você é —
Antes que eu terminasse minha indagação, ele me respondeu:
—Sim, eu sou. Aquele que precede o florir, que antecede a queda das folhas, que coexiste com o mais fervoroso dos filhos dentre os herdeiros. Verão é meu nome e minha vontade, um desejo inflamado e ardente que vento algum pode soprar para longe.
Hector deixou escapar uma risada.
—Essas pessoas são meio loucas. Aqui, todo mundo age como se fosse um deus. Acordem, meus caros, vocês não são os super-heróis como pensam, são pouco diferentes de nós!
Eu o olhei com desaprovação, e o mesmo foi feito por todos os outros. A Cega continuou seu desenho, agora uma representação de Verão.
—Veja essa garota, meu caro homem. Ela tem olhos prejudicados pelo destino rítmico, e ainda assim enxerga tanto quanto vocês, mais do que você. O ver, o abrir os olhos, nada disso importa para aquele que reprime as verdades pela incredibilidade, pelo ceticismo, por se afastar do melhor e afrontar o que não lhe serve de nada.
Hector nada disse. Suas palavras foram incineradas por uma entidade poderosa, parte sol, parte inferno.
—A concepção de seus dizeres se perde no perfeito, distorcida pela fraqueza de um subconsciente irreparável. É como vocês vêm o paraíso, a terra das recompensas, a maior das mentiras da humanidade.
—O paraíso?
Verão caminhou de um lado para o outro, pensativo. Coçava o queixo com suas manoplas escarlates, apontava nuvens e estrelas. O sol ainda rutilava em sua mão, diminuto, mas não menos admirável.
—O paraíso não existe, nunca existiu e nunca existirá. O que há depois é o mesmo que há antes, mas não é isso o que nos importa. Paradiso, este sim, esta é a terra que têm de entender, de encontrar, de admirar e repugnar.
Suzan, que assistia ao término do desenho da Cega, virou-se intrigada para Verão:
—E o que seria Paradiso?
—Aquilo em que acreditam, cujo nome se distorceu, bem como a aparência. Ali se encontra a perfeição, e também o que de mais imperfeito existe. Pode ser o real, pode ser a mentira, mas nenhuma mentira será pior do que acreditar que tudo após o fim é um deleite de benevolência. Há o cruel, o timbre caótico do término de um musical organizado, a terra da vida e da morte, onde vida e morte inexistem.
Eu não conseguia entender.
—O que isso quer dizer?
—No que acredita, Victor?
Me peguei pensando em diversas coisas, incapaz de citar quaisquer delas.
—Hoje, em nada, pois tudo o que eu acreditava ruiu.
—E tudo o que existe e inexiste um dia tem de ruir. Assim é Paradiso. A vida que almejam, a vida que desprezam. Ela está lá, e há muito mais.
Eu ainda não entendia.
—Hão de entender quando a hora chegar. Até então, sustento as palavras de Primavera: entendam o que é certo e o que é errado, aprendam a diferenciar. Há aquele que se toma pelo ódio afrontando o correto, e há também aquele que se apaixona pelo irremediável.
Ele estendeu o sol, e o brilho nos cegou por instantes. Quando voltamos a enxergar, tínhamos partes da estrela nas mãos, calorosas e vívidas.
De Verão, restara somente a voz:
—Aqueles abençoados por Primavera são merecedores de minha benção. Sigam seus destinos, trilham o que há para ser trilhado. Peço somente que não se arrependam.
E o calor então se foi, e as folhas começaram a cair.
Aquele baile de sensações era peculiar. Os instantes que tínhamos para respirar, para lembrarmos de que também existimos, eram tão sem importância que passavam despercebidos, velozes demais, e logo já estávamos em outro lugar, com outro herdeiro, banhados por uma mágica diferenciada.
Outro homem se postou à nossa frente. Ele tinha orelhas pontudas e cabelos imensos, fios lisos que se enrolavam às pernas cruzadas em sua posição confortável. Vestido num manto de folhas secas, parte de suas roupas se solidificava, tornando-se uma cadeira de aconchego indizível, e ele ficava ali, como um rei em seu trono, soprando uma fumaça castanha na forma de espirais.
—Tenho em mente que, a esta altura, vocês devam se perguntar sobre a tolice dos herdeiros em acreditar que há um motivo justo por trás das ações de Decrépita.
A forma súbita como ele abordou tal assunto me surpreendeu, e fez o mesmo aos demais, pois mesmo Hector foi incapaz de disparar quaisquer de suas bravatas costumeiras.
—Outono, este que vos fala, pensa diferente. Eu acredito em sabedoria, e sabedoria não há naquela que causa a extinção para evitar que se torne extinta. Discordo dos demais, de todos aqueles que acreditam em tais proezas, discordo de Decrépita e suas atitudes. Não há finalidade em sobreviver se aproveitando daqueles que sobrevivem.
Eu queria dizer algo, queria dialogar, fazer perguntas, mas nada pude fazer. Sentia circular em meu sangue um ar de superioridade, uma inteligência fora do comum, um conhecimento de milênios, de universos e mais universos.
—Um dia antes, existiu um universo cujos segredos de todos os outros mundos foram descobertos, escritos em livros infindáveis e postados numa biblioteca surreal. Mas creio que vocês não saibam sobre isso, estou certo?
Fiz que não com a cabeça. A voz parecia tão distante quanto um sonho.
—Ela estava ali, sempre esteve. Então, quando a fome sobrepôs a consciência, ela não mais existiu. Todo um universo ruiu diante da fome de um só ser, da vontade inescrupulosa de uma única entidade. Que ela seja mulher, imortal ou deusa, isto me é indiferente. Que ela seja o que quiser, mas que seja por si só, e não pelos outros.
Vi, nos olhos de Outono, lágrimas de um pai sem filho, de uma mãe que assiste à morte de sua prole, de um homem que viu o sonho se realizar e, pouco tempo depois, desmoronar num borrão de lembranças. Senti-me tomado por uma tristeza indescritível. assolado pela dor mais perversa dentre as dores.
A dor do vazio.
—Ainda há um lugar onde se encontram todas as respostas. Não tão belo, não tão organizado, mas está lá, sempre disposto a responder, a ludibriar e matar, sempre disposto a existir. A Torre dos Murmúrios responde aquele que pergunta, mente verdades e escarra mentiras, mas está lá, e sempre estará, num universo que a Decrépita é incapaz de alcançar.
Eu tentava organizar as informações, mas era muita coisa, e eu me perdia nas palavras e nomenclaturas. Paradiso, Torre dos Murmúrios, biblioteca de conhecimento, Decrépita, Cigano, Sete Horas, tudo voejava em minha mente, um turbilhão confuso e disperso de gritos e sussurros.
—Em tua Terra de Baixo há também uma torre. Quem sabe ela não vos conte o necessário, não é?
Ele aplaudiu, e cada um de seus aplausos fazia desmoronar todas as folhas de uma árvore, e elas secavam e morriam, mas ele permaneceu. Pegou quatro folhas do chão e entregou a cada um de nós.
A Cega havia o desenhado também.
—As folhas caem e morrem, mas a esperança não nasce numa árvore. Diferente do que se perde, ela nascerá outra vez, e mais outra, até que sua fonte se perca em desistência.
O vento soprou forte, e o mundo congelou. As folhas agora eram brancas pela neve, bem como o solo, alvo e estofado. Abracei-me pelo frio, era quase que sobrenatural.
Outono desaparecera sem aviso algum.
Ouvi uma risada infantil, então outra, e uma terceira, e todas elas riam juntas.
Elas vinham caminhando ao longe, as mãos unidas, os vestidos carregados pela neve, arrastados numa trilha que se formava sob seus pés. Uma criança, uma adolescente, uma adulta, todas idênticas, como se fotos de diferentes épocas de uma mesma pessoa, como se sonhos de tempos inversos de uma única vida.
—Tudo muda, como podem ver. Tudo já foi, é, e ainda será. Tudo.
Todas elas falavam ao mesmo tempo, com a mesma voz, criando um coro de vozes idênticas.
—Ao que nasce e há de morrer, ao que morre e um dia nasceu. Decrépita assim o fez, bem como todos nós. Ninguém nasce deus. Ninguém nasce pronto.
Franzi o cenho.
—Quer dizer que ela não era uma devoradora de universos?
—E hoje ela é?
Me perdi em sua frase.
—É o que dizem.
—Muitos nada dizem, poucos o fazem em silêncio. Há tantas palavras dispersas, há tanto conhecimento perdido.
—O que quer dizer?
Elas giraram no lugar, numa dança bela e provocante.
—Somos as Damas do Inverno, aquelas que nada sabem, mas que tudo reconhecem. Representamos o que existe, existiu e deixará de existir para que reexista. O ciclo é único, intenso e irreal, mas está ali, invisível e tão visível que mesmo a cria sem olhares pode vê-lo.
Eu não sabia o que dizer.
Suzan interveio.
—Tudo passa por fases, é isso? Tais como os herdeiros e a Decrépita, pelo que entendi. Ou seria —
—Ela assim o fez. Muito antes, fora bela e digna, bondosa e viva. Ela amou, foi amada. Ela viveu o que tinha de viver, mas cresceu e não parou, cresceu e ambicionou crescer, gostou de ser mais e mais, gostou de estar além de todos.
Lucius perguntou:
—Decrépita se tornou uma deusa, então?
—Ela nasceu para ser mais, mas não o quis. Ela amou, foi amada, e com isso se contentou. Então foi amaldiçoada, e sua maldição lhe gerou a ambição.
—Amaldiçoada?
—Por falhar, por se contentar, por sentir-se bem e feliz.
—E quem a amaldiçoou?
—Deus.
As Damas do Inverno deram as mãos, circundaram o mesmo lugar numa dança alegre e agitada.
Hector zombou.
—Deus? Então ele desceu das nuvens para amaldiçoar uma mulher por que ela não fez o que deveria ter feito? Claro, faz todo o sentido do mundo.
—E que sentido há senão o da realidade? Deuses são crianças com poderes. São fracos, são tolos, são os juízes da existência. Não sabem nada, mas podem fazer tudo, governantes juvenis, bebês na presidência. Isso são deuses. Crianças, nada mais. Crianças poderosas demais.
Eu tentava armazenar o máximo daquilo tudo, mas as palavras pareciam passar pelos meus ouvidos como a brisa gélida daquele lugar.
Quando dei por mim, tinha um floco de neve na mão. Ele era mais frio do que todo o mundo congelado ao meu redor.
—Guardem consigo minha benção, e assim serão merecedores da maior dentre as conquistas. Lembrem-se do que aprenderam, coexistam com tal conhecimento. Pela norma do Outono, não há sabedoria a ser desperdiçada.
Elas terminaram a dança e se viraram, prestes a partir.
—Esperem!
Chamei sem perceber, tomado pela dúvida.
Os olhos das Damas do Inverno me encontraram, envolventes como uma nevasca.
—O que aconteceu com o amor de Decrépita?
As Damas deram as costas, prosseguindo no rumo escolhido.
—Ele vaga numa vida sem sentido, perdido, vazio. Vaga por mundos que não são os dele. Perdeu a esperança, a vida, a vontade e o nome, tudo isso há tempos. Hoje, resta-lhe somente o que escolheu para si.
—E o que foi isso?
Quase gritei para que elas me escutassem.
A resposta me veio aos ouvidos, como um murmúrio assombroso.
—A alcunha de Cigano.

domingo, 6 de janeiro de 2013

Estranhos no Espelho - Parte 3 / Ato V

Parte 3
HERDEIROS DO ALVORECER

V


Nós estávamos quase prontos para sair, e ainda eram 6h45 da manhã. O horário combinado fora intuitivo, mas talvez nós estivéssemos marcados demais pelas sete horas após o encontro da noite anterior.
Por falar em encontro, era praticamente impossível acreditar que tudo aquilo foi real. Eu tinha mais facilidade em imaginar que toda aquela loucura fora um sonho, ou um pesadelo, e que eu despertaria novamente em minha cama, afogado nos beijos da minha esposa, amarrotado pelo abraço fervoroso de minha filha, mas não foi isso o que aconteceu.
Eu acordei com as reclamações incessantes de Hector, o que fez com que eu me lembrasse que a minha filha e a minha esposa, naquele lugar, eram a família de Jake.
—Na única floresta de Wyrestown, que porra de lugar é esse? Nem tem floresta nessa cidade de merda! Aquele cara com olhos de relógio é um canalha mentiroso, isso sim!
—Eu não diria isso, se fosse você.
A voz de Cigano nos pegou de surpresa. Ele estava ali, encostado na janela do quarto, por onde podíamos ver a rua através do primeiro andar daquele pequeno hotel. Apoiado no parapeito, fumava um cigarro escuro e amassado, soprando a fumaça densa para cima, na forma de argolas enuviadas.
—Legal, claro. Eu poderia estar ali, cagando na porra do banheiro, e esse cara aparecer para trocar uma ideia. Legal mesmo.
—É certo que eu não me submeteria a tal ato nauseante, meu caro.
—Tá, então engole a sua formalidade e deixa eu trocar de roupa. Aliás, se quiser levar aquela vadiazinha sem olhos embora, seria muito bom.
—Infelizmente, não há o que possa fazer por vocês. Mas posso lhes indicar um caminho, se necessário for.
—Opa, isso seria ótimo! Vai mandar a gente pra onde agora? Pra estrada de tijolos amarelos? Para o labirinto da rainha de copas? Que tal para a casa do caralho?
—Hector.
Eu tentei acalmá-lo, mas ele apenas bufou, voltando a arrumar suas malas.
—O que você quer aqui?
—Ajudar, nada mais. Pretendem visitar os herdeiros, se bem entendi, mas sequer sabem por onde começar a procurá-los. Sete Horas não lhes disse o que fazer. É de seu feitio agir assim.
—Velhos conhecidos?
—Diria que temos uma mínima rivalidade. Mas a existência de um sequer importa ao outro, na verdade. Ele tem suas metas, e eu, as minhas.
—Tanto faz. Onde encontramos a única floresta de Wyrestown? Porque, até onde eu sei, não existe floresta nenhuma aqui.
A voz de Hector veio de maneira irônica do banheiro:
—É que a gente ainda não procurou com os ursinhos carinhosos, cara!
O Cigano achou graça.
—Subterrâneo.
—Como?
—A floresta fica no subterrâneo. Procurem nos esgotos. Vão encontrá-la quando for a hora, se assim os herdeiros desejarem.
Lucius interferiu:
—Então são eles quem vão nos encontrar?
—Talvez. Eles são mais do que vocês. Mais do que eu, mais do que Sete Horas. Eles existem.
—E não vivem, tá, já escutamos essa história antes. Se é isso o que tinha para dizer, ajudou bastante. Agora é nossa vez de perguntar.
Eu me assustei com o modo como Lucius falava. Antes que Cigano pudesse retrucar algo, o professor continuou:
—Qual o lance daquela garota?
—A cega?
—Exato. O que ela tem de tão importante?
Ele deu de ombros.
—Ela é uma chave, e nada mais. O que chaves fazem?
—Abrem fechaduras.
—Então é exatamente isso o que ela fará, um dia. Até lá, guardem-na. Nunca se sabe quando as chaves serão necessárias. Às vezes, podemos nos trancar por engano, não é mesmo?
Ele acenou, despedindo-se, e deixou-se cair da janela. Eu observei as ruas no mesmo momento, mas ele já não estava mais lá.
—O que foi isso, Lucius?
—Eu não sei, cara. Essa garota, ela é meio estranha, cá entre nós. Ela desenha as coisas que nós vimos, ou que ainda vamos ver, como se ela soubesse de tudo!
—Isso não é nem de longe a coisa mais estranha que vimos desde que chegamos aqui.
—Eu sei, até aí tudo bem, mas você ouviu o tal Sete Horas falar! Ele disse que a tal da Decrépita precisa encontrar a sua contraparte para poder devorar o universo ou sei lá o quê.
—Você não está pensando —
—Eu sei lá o quê tô pensando, mas se essa garota for essa contraparte, a gente vai se foder de verdade.
Hector saiu, ajeitando as calças.
—Mais ainda?
—Ela vai comer a porra do nosso mundo!
—Vai sim, ela e o He-Man. Cara, acorda, é só uma garota, sacou? Aquela vagabunda que come universos é uma entidade, tipo uma deusa. Ela não seria uma garotinha assim, ainda mais cega e inútil.
O pensamento de Lucius não era de todo insano. Afinal de contas, por que o Cigano desejaria tanto que nós cuidássemos daquela garota?
—Não sei, mas acho que vale a pena ficar de olho nela. Uma coisa é certa: mesmo sem enxergar nada, ela ainda pode ver muito mais do que nós nesse lugar, e isso é estranho.
—Estranhos são vocês dois.
Alguém bateu à porta do quarto. Hector abriu, e lá estavam Suzan e a cega, prontas para nossa expedição à floresta dos esgotos.
—Bom dia para vocês que também acordaram decepcionados por tudo isso ser de verdade.
—Bom dia, Suzan.
—E então, já têm noção de onde procurar? Porque, se não tiverem, a cega nos fez um mapa, só pra não perder o costume.
Ela entregou um papel para mim. O desenho mostrava uma árvore sob os canos de esgoto.
Eu olhei para Lucius, que suspirou.
Afaguei o cabelo da garota com uma das mãos.
—Já que você insiste, nós vamos verificar os esgotos.
Ela sorriu e voltou a desenhar.
Lucius passou ao meu lado e, antes de deixar o quarto, sussurrou:
—Garota filha da puta.
Hector mastigou o desenho e o cuspiu pela janela.
Nós deixamos as chaves no balcão e saímos, procurando pela entrada de esgotos de acesso mais simples, e Hector nos mostrou um beco por onde poderíamos descer sem que todas as pessoas ao nosso redor notassem cinco pessoas invadindo a estação de tratamento de esgoto.
—Eu ainda não acredito que estamos fazendo isso.
Abrimos a portinhola metálica com dificuldade e, hesitando um pouco pelo forte odor, descemos.
Nos esgueiramos pelas trilhas sinuosas de placas metálicas, as quais acompanhavam as paredes dos encanamentos, deixando a imundice da cidade correr livre entre ambos os extremos. Eu preferia não olhar para aquele córrego de excrementos, mas Suzan o fez, parando para vomitar duas vezes no caminho.
Não houve muita conversa no caminhar, pois abrir a boca naquele local era uma tortura que faria grandes criminosos confessar seus maiores segredos.
Andamos a esmo durante algum tempo, sem nada encontrar. Hector arriscou duas ou três piadas infames, mas logo até mesmo ele se sentiu incomodado pelo fedor que nos assolava, mantendo-se calado durante o restante do percurso. Mais à frente, quando eu já podia jurar que estávamos procurando feito idiotas por uma coisa completamente inexplicável, Lucius viu um símbolo numa das paredes.
Era um relógio palpável, riscado com uma tinta violácea que me parecia saltar da superfície num efeito de três dimensões, por vezes fumegando quando eu me deixava piscar. Os ponteiros principais indicavam sete horas, e um terceiro ponteiro, mais robusto e chamativo, apontava uma direção qualquer.
Assentimos, concordando que, se aquilo não fosse um sinal, jogaríamos a garota na merda e desistiríamos da vida, mas a mensagem nos guiou corretamente, e então encontramos o que existe de mais normal nos esgotos de uma cidade mediana.
Um templo.
Claro, todo esgoto tem um templo.
—Olha só isso.
Eu não pude deixar de comentar, mas percebi que o aroma próximo àquela construção era bastante diferente do cheiro de fezes e urina que nos acompanhou até então. Era um cheiro admirável, um perfume de hortelã e cravo e, ouso dizer, um pouco de canela.
O arco à nossa frente era feito de mármore, bem como os degraus que nos separavam do interior daquela localidade. Ali, entre adornos prateados e runas sem significado, encontrei uma expressão em latim, cujo significado me era desconhecido.
—Respeitai os filhos da floresta.
—O que?
—É o que está escrito ali. Respeitai os filhos da floresta.
Às vezes eu me esquecia que Lucius era um professor. Mesmo que sua área fosse a história, ele tinha um conhecimento bastante amplo sobre diversas outras culturas e, pelo jeito, latim era uma delas.
Hector achou graça.
—Nós vamos respeitar todos eles, vamos sim. Aí eles vão fazer magia com a gente. E vão transformar o meu pau num garoto de verdade, tipo a fada azul.
Ele riu sozinho, e Suzan cuidou para que a cega não prestasse atenção no que Hector falava.
—Cara, pega leve nas suas piadas —
—Pegar leve? Eu só falo a verdade, cara! Sou o típico fã da Terra do Nunca, um palerma que senta no colo do Peter Pan e fica esperando pra ser estuprado por duendes. Fala sério cara, se eu ficar mais um minuto nesse lugar, vou enlouquecer.
Como se ele já não estivesse enlouquecendo o bastante foram as primeiras palavras que vieram à minha mente, mas achei melhor suspirar e prosseguir, sem nada dizer.
Passamos pelo arco, e o ar pareceu mudar além dos degraus. Era mais denso, exaltando aquele perfume natural que já nos acolhia, agora coberto por uma espécie de aura que, por não encontrar definição melhor, me parecia completamente mágica.
Estávamos agora num salão de entrada, e tudo ali era de mármore, inclusive as quatro estátuas que se erguiam nas extremidades da câmara. Cada uma delas fora esculpida na forma de uma máscara, e tais figuras representavam as estações do ano por meio de gravuras de sóis, flores, folhas secas e flocos de neve. Perguntei-me se os herdeiros eram assim, ligados às estações, mas não perdi tempo debatendo internamente sobre tal presunção, pois logo teria de conhecê-los, um a um, se tudo corresse bem, é claro.
—É incrível, não é?
Eu perguntei, mas ninguém me respondeu. Eu jurei que ouviria a voz de Hector com seus comentários destrutivos, mas ela não veio.
Olhei ao meu redor, apenas para constatar aquilo de que tinha certeza: estava sozinho.
—Pessoal? Onde vocês estão?
Sem resposta.
—Parem de brincadeira, nós temos uma coisa séria para resolver aqui. Vamos, onde vocês se esconderam?
Achei idiota da minha parte imaginar que eles se esconderiam. Ninguém ali, além da cega —e de Hector, na maior parte do tempo —, era criança a ponto de fazer brincadeiras do tipo, ainda mais em momentos como aquele. Eu estava sozinho, e eles provavelmente também estavam.
Passei pela única porta na outra extremidade da câmara, e me surpreendi com o que vi.
Era uma floresta. Uma floresta de verdade, como nunca imaginei encontrar na vida.
Havia árvores de todos os tipos, com folhas de todas as cores. Algumas tinham flores, outras tinham frutos, e ainda havia algumas cujas folhas estavam ressecadas, prestes a quedar.
Entre todas elas, uma única trilha bastante cerrada se abria, como um sorriso riscado num papel cor-de-natureza.
—Onde vocês estão?!
Eu gritei, fazendo um cone com as mãos, mas ninguém me respondeu. Escorei-me numa árvore, observei o caminho que aguardava por meus passos e, sem escolha, me embrenhei entre a vegetação.
As árvores daquele caminho tinham galhos afiados, dispostos à frente do caminho como agulhas armadilhadas, e eu os evitei na medida do possível. Conforme avancei, no entanto, a trilha se mostrou um emaranhado de galhos, e eu percebi que não poderia saltar ou desviar deles por todo o tempo. Pareciam velhos, fragilizados pelo tempo e, assim, não poderiam me machucar, imaginei.
Esbarrei num deles, que se quebrou ante a pressão de meu tornozelo com um único baque, e eu não senti dor alguma.
Comecei a sentir uma coisa estranha, algo que me pegou desprevenido e que, por algum tempo, não sou classificar. Era tristeza. Eu me via num enterro, e o caixão aberto tinha a imagem de Marrie, sepultada num vestido de noiva, e em seus braços jazia a minha linda filha, Madeleine, com uma roupa igualmente especial, sem vida, sem sorriso, sem esperança alguma. Chorei sem rumo, como criança privada de seu doce, apoiando nas árvores para tentar evitar aquela sensação descontrolada, em vão.
Um passo ocorreu por acaso, e outro galho se partiu no toque de meu ombro.
Assim, me senti feliz. Estava numa cadeira acolchoada, no mais alto andar de um edifício, e ali todas as minhas secretárias trabalhavam nuas, oferecendo serviços e desejos sexuais, mas eu as negava, indiferente quando a seus corpos voluptuosos, tendo olhos somente para minha esposa, que se gabava com imensas joias penduradas ao pescoço e exibidas nos anéis que ilustravam suas mãos delicadas. Madeleine corria de um lado para o outro, brincando com um videogame de realidade aumentada, e ela se vestia em ouro e prata, roupas que não eram bonitas, mas que exalava riqueza e poder.
Um terceiro galho me fez entristecer outra vez, e só então eu percebi o que acontecia.
Aquelas árvores choravam e sorriam, e eu, ao encostar em suas enfermidades, era tomado pelo sentimento que delas nascia. Triste demais, feliz demais, correndo num descontrole e deixando que todos os galhos se partissem em meu caminho. Eu abri os braços, saltitei com longos passos, estiquei as pernas no limite, e chorei e sorri e chorei outra vez, sem entender.
Caí num amontoado de folhas, deixando-me gargalhar ao mesmo tempo em que convulsionava pelo pranto que não me escapava da garganta.
—Victor!
Eu ouvia aquela voz, ela era tão familiar.
—Victor!
Era feminina, bastante bonita. Eu via cabelos vermelhos, mas não sabia dizer se eles eram reais ou se faziam parte das alucinações.
A minha vida era uma merda.
Mas era a merda mais bonita de todas.
—Victor, acorde!
Senti dor, e isso era real. Parei de chorar e sorrir, estaquei no lugar, abri os olhos.
Suzan estava ajoelhada ao meu lado.
—Você está bem?
Eu me sentei, confuso.
—Sim, estou. E você?
—Estou bem. Todos nós estamos. Você foi o único que ficou desse jeito e —
—Cuidado com as árvores!
Hector e Lucius me olhavam com estranheza. A cega desenhava sem se importar, mas as palavras seguintes vieram dela:
—As árvores de sentimentos são boas ou más. Nós nunca vamos saber. Elas choram e riem, e a gente faz o que elas mandam fazer.
—Ela tá certa! Essas árvores são perigosas!
—Nada na floresta é perigoso, meu bom homem. O perigo reside nos homens.
Aquela voz não era de Suzan, muito menos de Marrie ou Madeleine. Era uma outra voz, pertencente a uma mulher que parecia cantar cada palavra, declamando um poema com seus olhos, entoando seus dizeres por sua beleza.
Nós nos viramos e, no mesmo instante, tivemos certeza de que, como dito por ela, nada na floresta é perigoso.