terça-feira, 31 de julho de 2012

Resenha - O Livro do Cemitério


Hoje terminei a leitura de mais um livro do Neil Gaiman.
Trata-se de O Livro do Cemitério, uma obra de arte em suas 330 páginas (aproximadamente, isso na versão brasileira) que já tem previsão de se tornar filme nas mãos da Disney. Em mais uma história de ambiente hostil e clima sombrio, Gaiman nos apresenta o pequeno Ninguém Owens, um garoto comum que, após perder a família num assassinato aparentemente sem explicações, é levado para um cemitério e salvo pelos fantasmas que o habitam. Crescendo naquela paisagem desolada, Nin recebe a Liberdade do Cemitério, que permite a ele utilizar parte dos poderes dos mortos.
O Livro do Cemitério, em grande parte, pode ser entendido como um livro infantil, o que não é nem de longe o marco principal de Gaiman. A história é excelente, tem um desenrolar simples e bastante criativo, algo que já não me surpreende nos textos de Gaiman, mas ela circular de maneira corriqueira sobre coisas sérias e particularmente incompreendíveis pelo garoto. Acompanhamos Nin durante seu crescimento, desde bebê até a adolescência, assistindo seus relacionamentos com os fantasmas de cada túmulo, com uma bruxa enterrada numa área proibida do cemitério, com Silas, um membro da Guarda de Honra, ao mesmo tempo que o vemos se relacionar com outras pessoas vivas enquanto descobre várias coisas surreais, muitas das quais sequer é capaz de entender, como a Dama Cinzenta, Jack e outros mais.
O ritmo dos acontecimentos é preciso, do vagaroso clima introdutório ao ápice do desfecho, e não peca em parte alguma quanto a isso. Há sempre novidades espalhadas pelas páginas, diálogos construtivos com personagens de épocas distintas e um nível baixo de mistério, brando e soturno, mas ali, presente e instigante. É claro que essa obra não escapa dos clichês, mas e daí, nenhuma escapa atualmente! O importante não é diferenciar na história a ser contada, mas sim em como você a conta, e Neil Gaiman é um especialista em arrumar infinitos modos de se contar infinitas histórias.
Com ilustrações magníficas entre suas páginas, O Livro do Cemitério é mais uma das histórias do Gaiman que me impressionou pela maneira inovadora de narrar, sem pressa, sem medo de ousar, sem receio de arriscar novidades e retomar clichês esquecidos. Ele sabe como cativar, como surpreender, como fazer de cada parte do texto fabulosamente memorável, e são poucos os autores que conseguem desenvolver essas sensações. Se tiverem a oportunidade de adquirir esse livro, o façam sem pestanejar! É uma obra que recomendo, de verdade, como todas as outras deste autor fantástico!
Até a próxima!

Fic Harry Potter - Entre o Mundo e o Medo - Cap 1


I
Os Fantasmas se Divertem

Hogwarts era uma escola frequentada por alunos dos 11 aos 17 anos, cursando 7 anos de aprendizado que fornecem aos bruxos tudo aquilo o que eles necessitam para viver, desde o Estudo dos Trouxas, os não-bruxos, até os Feitiços propriamente ditos, passando pela Transfiguração, o Trato das Criaturas Mágicas, a coleta de ingredientes na Herbologia e o preparo de Poções.
Eu conhecia bem aquele lugar. Não fora ali a minha escola, mas eu a estudei por livros e reportagens, por documentários e trabalhos de campo. Eu estudei o local onde deveria trabalhar, pois somente assim estaria familiarizada à infinidade de salas e escadarias, mantendo assim um disfarce perfeito.
Pensava nisso durante uma aula de Defesa Contra as Artes das Trevas, ministrada pelo senhor Bremmer, um velho de bigodes curvilíneos cujo sotaque francês era carregado o suficiente para tirar a calmaria de quaisquer alunos.
Ele explicava algo que eu já aprendera anteriormente quando eu abri o espelho circular que tinha em mãos, encontrando no reflexo um olho que não era meu.
Atrás daquela íris cor-de-mel, pude ver as paredes do Ministério da Magia.
—Como andam as coisas?
O responsável por minha caçada, o antiguíssimo senhor Fiennes, falava através daquele artefato mundano, mas somente eu podia escutá-lo, bem como somente ele poderia escutar a minha voz. As facilidades da magia eram perfeitas, ainda melhores do que a tecnologia dos trouxas, e cresciam em proporções similares, permitindo-nos estar sempre um passo a frente dos não-bruxos.
—Bem, em termos —sussurrei. Para os demais, ainda estava riscando meu caderno, aprendendo mais e mais sobre algo que já vira anos atrás. —Ele ainda me parece um aluno qualquer. Não encontrei nada do que as suspeitas indicavam.
—Ele não é um aluno qualquer, Lane, pode ter certeza disso —rebateu Bremmer, tão rígido quanto um homem de sua idade conseguiria ser. —Não deixe que as aparências te enganem, ok? Você é uma das melhores que eu tenho por perto. Não se perca, e acima de tudo, não o perca. Pode ser nossa única chance.
—Sim, senhor.
Desde a queda de Lord Voldemort —miseravelmente conhecido como Aquele-que-não-deve-ser-nomeado, o clima do mundo mágico mudou sensivelmente. Tudo era motivo de receio, tudo era perigoso e estranho. Qualquer feiticeiro de maior talento poderia almejar o posto abandonado por Tom Riddle, o que o Ministério tentava impedir de qualquer modo. Comensais ainda estava nas ruas, vagando como cães sem dono; nenhum deles desejava liderar. Eles caçam nas sombras, buscando um único nome, um único bruxo que postaria sua varinha em riste, fazendo um nome negro ecoar outra vez perante as nuvens, para que a caveira e a serpente pudessem representar outra vez a linhagem mais pura da feitiçaria, fazendo dos mestiços e dos fracos de sangue escravos, lugar este que eles jamais deveriam ter deixado para trás.
Sem um líder, eles não eram nada além de arruaceiros dispersos, desorganizados e malévolos, mas tolos. Nosso objetivo era caçá-los, mandá-los para Azkaban, fazê-los se arrepender de todas as suas maldades diante da sombria aura dos dementadores.
Quando digo nosso objetivo, me refiro aos outros como eu, os servos do Ministério, a milícia do mundo bruxo.
Os aurores.
—Haley estará aí, em breve —continuou meu superior, e eu assenti, indicando entendimento. —Conte com ele para suas observações.
Haley Shunpike era um auror, como eu, porém sua experiência era terrivelmente maior. Ele tinha sérios problemas de personalidade, mas era um bom homem, sempre disposto a oferecer ajuda e se sacrificar pelo bem maior, o que o mantinha assim, sozinho, como um bruxo desolado em sua missão de paz. Anos antes, Haley teve de escolher entre sua vida pessoal, sua amada e sua caçada, e a solidão ensandecida que o assola nos dias de hoje é o resultado de tal escolha.
—É mesmo necessário?
Não gostava de parecer a rebelde, mas eu estava observando um aluno de quinto ano, nada além disso. O que ele poderia fazer, virar Hogwarts de cabeça para baixo e conjurar dragões para atacar a todos?
—Não podemos arriscar, Lane. Espero que entenda.
Fiz que sim, ainda confusa.
—Nos falamos novamente mais tarde —ele concluiu, e o espelho novamente revelou a minha imagem, os olhos claros, a madeixa dourada me caindo à testa.
Ao término da aula, eu deixei a sala acompanhada de Mirela, uma ruiva inteligente e valente, valente a ponto de afrontar o preconceito dos sonserinos para com a sua família mestiça. Ela era uma boa amiga, sempre discutindo coisas interessantes do mundo bruxa e trouxa, assuntos que o pai dela, um homem que muito se surpreendeu ao descobrir a magia dentro de sua própria casa, comentava durante suas raras folgas do trabalho. Sua inteligência às vezes me deixava com certo receio: um passo em falso e ela poderia descobrir meu disfarce, e então tudo estaria em ruínas.
Alguns degraus abaixo, enquanto eu escutava sobre a dissimilação do novo Ministro diante da sociedade mágica contemporânea, me deparei com Chad. Ele admirava os quadros do quarto andar, carregando diversos livros, possivelmente retirados da biblioteca daquele mesmo nível. Despedi-me de Mirela com um aceno e saltei os últimos degraus, desviando meu percurso para atravessar o corredor onde ele se encontrava.
O plano era me emparelhar a Chad por alguns instantes, antes de me esgueirar pela porta da biblioteca, mas tudo deu errado quando eu ouvi a sua voz:
—Olha, se não é a senhorita Lane, apaixonada por quedas de vários metros.
Sua ironia me fez corar, mas eu era uma veterana, e tinha de agir como tal.
Ri com certo sarcasmo, virando-me sem a necessidade de apresentar a educação costumeira.
—Pois é, é ela mesma —ironizei, fugindo da brincadeira. —Como vai, Dominic?
Ele se fingiu de surpreso, zombando da formalidade que optei por usar.
—Melhor agora ao encontrar uma professora de normas cultas —e riu, aquele sorriso curvo e bonito. Me senti ruborizar mais e mais, disfarcei. —Está indo para a biblioteca?
—Não, na verdade é, bom, é que eu, sim, sim, estou.
Parecia uma novata abobalhada na sua presença.
Ele ria com gosto do meu modo de agir.
—Timidez é uma coisa bastante rara nos dias de hoje —começou, o timbre soando com a superioridade que inexistia. Eu era a mais velha ali. Eu deveria saber como ser superior. —Receio, esse sim existe. Receio de se meter com aqueles que não merecem nossa atenção. Eu espero que não seja esse o seu caso, senhorita Lane.
—Ah, imagina. Eu por um acaso deveria ter medo de você?
Chad deu de ombros.
—Alguns têm. A escolha é sua.
—Relaxa —falei, acenando despreocupada. —Eu sei me cuidar bem.
—Acredito que sim. Aliás, acredito também que vai saber cuidar bem de algo que tenho para lhe oferecer. —Ele caçou em suas vestes um pequeno objeto prateado, uma espécie de pingente circular com runas que, unidas, formavam a figura de um pequeno morcego de asas abertas. Estendeu o braço em minha direção, deixando o pingente escorrer por entre seus dedos. —Vamos, pegue.
—O que é isso?
—Um presente.
—Presente?
Estranhei.
—Sim. Um presente. Não posso presentear uma amiga de casa?
Aquilo era prata de verdade. Chegava a pesar em minha mão.
Como sempre, sonserinos mimados por pais ricos. Certas coisas nunca mudariam.
—Pode, claro. Só não pense que vai me conquistar com isso. Eu valho mais do que uma corrente de prata.
—Tenho certeza disso. —Ele sorriu outra vez, e então pôs-se a andar, deixando me para trás, perto dos quadros. —Espero que nos encontremos mais vezes assim, Lane. Sua companhia é sempre interessante. Quem sabe um dia você não me ensina algumas coisas do sétimo ano, não é?
Eu queria responder, queria mesmo, mas a minha voz parecia ter sido roubada por fantasmas, e eu só fiquei ali, inerte, assistindo enquanto ele desaparecia nas escadarias.
Foi quando ouvi alguém gargalhar.
—As garotas da Sonserina também têm coração, acreditam?
—Não, sério? Pensei que elas fossem tão geladas quanto as estátuas dos corredores!
—Imagina, elas adoram corações! No almoço!
Risos e mais risos, e mesmo antes de olhar eu já sabia quem eram os donos daquelas vozes.
Anos antes, houve em Hogwarts um poltergeist conhecido como Pirraça. Como todo bom poltergeist, Pirraça era mestre na desordem e no caos, um espectro caótico e insano, diferente dos mundanos fantasmas das casas. Quando a escola foi reconstruída, no entanto, Pirraça não estava mais lá. Alguns dos fantasmas antigos mantiveram-se presentes, mas vários outros desapareceram, partindo para um lugar melhor, e novos tomaram seus lugares.
Pirraça cedeu seu posto a três poltergeist, todos iguais, senão piores do que ele próprio.
Seus nomes eram Birra, Desfeita e Teimoso, e eles habitavam um mesmo corpo, o corpo de um garoto de baixa estatura, cujo pescoço se dividia em três cabeças miúdas e bizarras, cada qual com suas peculiaridades, seja um olho fora do lugar, lábios inchados ou narinas avantajadas.
—Engraçadinhos vocês, não? —bufei, e me virei para ir embora.
—Olhem para ela, que coisa mais meiga, apaixonada por um garoto mais novo!
—O que você viu nele, pequenina? O sonho de sua vida era trocar fraldas?
—Ou será que você gosta de rebeldes descontrolados?
Eles falavam muito rápido, quase ao mesmo tempo, e eu nunca sabia apontar qual dos três era responsável pelas frases que escutava.
—Fiquem com suas teorias, eu tenho mais o que fazer —disse quando já estava no primeiro degrau da escada que me levaria aos andares inferiores da academia.
—Talvez sejam mais do que simples teorias.
—Está escrito nos seus olhos, garotinha.
—Você gosta do estranhinho que faz coisas feias!
Eu estava de sangue quente, ainda que um pouco corada, mas aquela última frase me chamou a atenção. Parei no lugar, voltando meus olhos para o monstrinho de três cabeças que me zombava e, ignorando todas as suas provocações, falei:
—Coisas erradas?
—Ó, ela não sabe!
—E não seremos nós a contar.
—Não mesmo, nunca contaríamos.
Os três cobriram as bocas com suas mãos translúcidas.
—Do que vocês sabem, insolentes? —brami, em certo tom de hostilidade, tentando fazer soar como uma ordem de alguém superior, mas talvez não tenha funcionado como desejado. Eles se uniram numa ciranda de somente dois braços e giraram, giraram sem parar, enquanto cantarolavam.
Ela está apaixonada por um menininho
Tá gostando, tá gamada naquele estranhinho
Ela é uma Sonserina cheia de peçonha
Quero vê-la declarar-se toda sem vergonha
E eles cantaram e dançaram por mais um tempo, e então desapareceram, deixando-me para trás com os olhos incrédulos e os lábios semiabertos.
Fiquei curiosa para saber sobre o que aqueles idiotas falavam mas, acima de tudo, fiquei receosa de que suas preocupações tivessem algum fundamento válido.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Fic Harry Potter - Entre o Mundo e o Medo - Prólogo

Dias atrás, fui a um encontro de um grupo de fãs de Harry Potter, o Potter Vale, organizado aqui mesmo na minha cidade. Reavivar o gosto pela série foi uma experiência muito boa, ao mesmo tempo em que conhecer outras pessoas que também admiravam a franquia da nossa querida J.K. Rowling me fez sentir falta do tempo das fanfics, quando eu ainda utilizava o Nyah para postar histórias. Desde algum tempo atrás, mais precisamente com o surgimento dos primeiros trailers e imagens de Auror's Tale, a web série feita por fãs no cenário de Harry Potter, com uma abordagem mais adulta e uma premissa bastante interessante, comecei a elaborar uma história em minha mente, algo que, num primeiro plano, deveria se tornar um RPG de mesa, mas enfim, acabou que não rendeu nada e ela ficou por ali, em hiato. Após o Potter Vale, as ideias voltaram a fluir, e então surgiu Entre o Mundo e o Medo, uma história que não será muito curta, mas é completamente original, ambientada alguns anos após a queda de Voldemort, quando Hogwarts já estava restabelecida e os bruxos da Inglaterra tinham de volta sua academia de magia.
Sem mais demoras, confiram o prólogo dessa história. Espero que gostem!


Prólogo
Ao Cair Feito Pluma

Tudo começou com uma queda.
Eu o observava, tenho de admitir. Segui-lo durante tanto tempo me fez conhecer cada um de seus hábitos, admirar seus feitos, me impressionar com suas façanhas, e assim eu o conheci, mais do que me foi dito, mais do que os demais aluno conseguiam enxergar. Como sua veterana, ainda que recém-transferida, eu o olhava como superior, mas ele era incrivelmente talentoso. Mesmo no quinto ano de Hogwarts, aquele garoto demonstrava um exímio domínio na magia e suas propriedades, bailando com os braços livres, a varinha em riste, 31cm de mogno com pena de fênix.
Muitos o invejavam.
Ele invejava a todos.
Escorada na amurada de um andar superior, eu mantinha os olhos fixos em seus movimentos. Ambos éramos da Sonserina, representando o grotesco legado de Salazar, vestidos no verde e prata costumeiros. Os anos se passaram, mas o tradicionalismo da Escola de Magia e Bruxaria da Inglaterra se manteve, e ali estava ele, treinando para uma nova apresentação do clube de duelos, preparado para afrontar os mais incrédulos Grifinória, derrubando-os um a um, como sempre fazia.
Agora, no entanto, ele era um dançarino numa melodia silenciosa. Aperfeiçoava seus movimentos, rodopiando a varinha entre os dedos pálidos para encantar as árvores do campo aberto, fazendo com que as folhas voejassem, soprando-as numa brisa involuntária, desenhando no solo terroso imagens de sua mente perturbada.
Chad Dominic era um nome conhecido para a época. Um garoto renomado, de aparência agradável e cinzenta, esquecido não fosse suas chamativas performances em sala de aula. Tinha seus cabelos trançados, fios próximos dos ombros, castanhos e alinhados em simetria. Os olhos eram escuros, tão escuros quanto a noite, mas nada foscos; carregavam um brilho sem igual, uma centelha de vontade e temperança.
No quinto ano, Chad já vencera alunos de sexto e sétimo ano em seus duelos, o que deixava-o confiante a ponto de não baixar os olhos quando afrontava a desaprovação na mente de cada um de seus veteranos.
Isso me incluía, obviamente.
Eu era intangível entre os demais. Lane Maxwell era um nome que chegava a escapar soprado na chamada dos professores, tamanha a inexistência que me cercava, e eu achava isso ótimo. Ali, nas sombras dos mais populares, sentia-me em meu lugar, fazendo o que tinha de ser feito da maneira que tinha de ser feito, nada mais.
Ali, apoiada nas lacunas da amurada do terceiro andar, assistia a Chad em sua prática, e ele me encantava.
Não soube explicar o que sentia. Talvez não fosse nada. Talvez eu sentisse pena, isso. Piedade. A mesma piedade que muitos sentiam ao conhecer parte da triste história carregada por aquele garoto. Não, não era isso. Admiração, talvez. Ele tinha seus quinze anos e era muito melhor do que grande parte dos maioritários parecia ser. Respeito? Impossível. Ele era mais novo, e eu só lhe devia educação. Então o quê era?
Reducto!
Quando os arbustos mais próximos implodiram diante de seu feitiço, eu me desequilibrei. Até então, tinha o disfarce perfeito, a posição perfeita, seguia-o sem ser notada. Agora, desajeitada como sempre fui, fazia de meu segredo um livro aberto, mostrava-me ali, gritante, numa queda de infindáveis metros repentina a ponto de impedir que eu brandisse a varinha de salgueiro em minha cinta.
Aresto Momentum!
Eu pairei.
A queda veloz foi retardada até o belo ato de planar e, como um pássaro de asas entreabertas, cedi ao vento meu peso, e ele me carregou, sem pressa, até o gramado estofado dos jardins. Eu quase adormeci, tamanha a serenidade daquele instante; postei-me em pé rapidamente, e ele já estava ali, à minha frente, os olhos abertos pela surpresa, os lábios como cela, aprisionando um sorriso de cinismo sem igual.
—Você está bem? —ele me perguntou, sua voz soando como um canto.
Engoli em seco.
Aquele diálogo não deveria acontecer, não mesmo!
—Estou, estou sim! Obrigada! Eu me desconcentrei, acabei caindo.
—Tome mais cuidado da próxima vez, erm —
—Lane! —exclamei, ainda afobada. —Lane Maxwell, do sétimo ano.
—Sétimo ano?
Ele parecia surpreso.
Como boa aluna do último ano de Hogwarts, o mínimo que eu deveria saber era como me salvar de uma queda iminente como aquela.
—Sim, sétimo. Somos da mesma casa.
Ele me olhou de cima a baixo, estudando cada detalhe das vestes de cores idênticas às dele.
—Imaginei. É um prazer, Lane. Meu nome é Chad Dominic, mas talvez você já saiba disso. Os boatos correm livremente pelos corredores, não acha?
—Que boatos?
Ele riu em ironia, e então me deu as costas.
—Se me dá licença, Lane, eu tenho de retornar aos meus alojamentos. —Suas palavras eram sempre carregadas de formalidade e compostura, uma raridade sem tamanho na atualidade. —Espero que nos encontremos outras vezes.
—Ah, sim, claro, isso certamente vai acontecer! Não, me desculpa, não foi isso o quê eu quis dizer, mas é que somos da mesma casa, então possivelmente vamos nos cruzar durante o intervalo das aulas, então vamos nos ver, vamos sim, com certeza!
—Até breve.
Eu escutei sua risada uma última vez, e ele então se retirou com um aceno.
Eu fiquei ali por mais um tempo, esperando que o mundo voltasse a girar.
O meu mundo, ao menos.
Quem era aquele garoto?

domingo, 29 de julho de 2012

Conto - Sozinho no Escuro


Sozinho no Escuro

Aquele tinha sido um dia exaustivo, numa semana exaustiva de um mês exaustivo.
Ali estava eu, abrindo a porta de minha casa para o merecido repouso, disposto a me livrar dos problemas com um banho quente e uma boa noite de sono.
Já em meu quarto, joguei as tralhas que carregava no chão, tirei a camiseta e me postei sobre a cama, bagunçando o lençol carinhosamente ajeitado por minha mãe. Sim, eu ainda morava com meus pais, na época. Era uma casa boa, uma família interessante, por mais que o pai tivera sido substituído por um padrasto e eu pouco o visse. De qualquer modo, a cama estava arrumada, e por ora isso bastava.
Permiti-me suspirar, aliviado por estar ali, e não de frente a todos os meus problemas. Eu precisava de um banho, precisava mesmo, mas a cama estava tão boa. Olhei o relógio no pulso, ele marcava 18h40. Minha mãe chegaria mais tarde, longe das 20h. Eu tinha um bom tempo antes disso. Resolvi esperar ali, assistir uma televisão e esperar até que a coragem novamente me abordasse.
O telejornal que me recepcionou falava sobre morte e violência, e eu me perguntei se não era o mesmo programa do dia anterior, e do anterior ao anterior, pois todas as noites era a mesma coisa. Mudei o canal, vi a mídia alienar, carregar os telespectadores com suas notícias macabras e então aliciá-los num momento de fraqueza súbita com suas novelas emporcalhadas de situações desprezíveis. Eu odiava aquilo tudo, mas não tinha tantas opções em meu pacote de tv a cabo. Tive de me contentar com a dublagem bizarra de um filme trash.
Foi quando a luz apagou.
Era um blecaute, imaginei, talvez somente ali, em minha casa. Olhei pela janela e constatei que não, era uma falta de luz um pouco agravada, agarrando parcialmente meu bairro. Do segundo andar, era fácil entender que as proximidades ainda tinham iluminação, o que resumia o problema como simples. Logo ela estaria de volta, tive certeza. Teria que esperar pelo meu banho quente.
Dei de ombros e tirei meu celular do bolso, usando sua tela de led como única fonte de iluminação. Minha gata estava ali, lambendo meus pés. Ela não tinha medo do escuro. Eu também não, obviamente, mas ela enxergava muito melhor do que eu. A gatinha ronronou, esfregou-se em me tornozelo, esticou-se por segundos ao meu lado, brincalhona, e então se foi, correndo pelos corredores.
O celular apitou, anunciando que a bateria estava baixa.
Eu sempre fui um pouco impaciente, parte pela hiperatividade, parte pela velocidade irreparável dos acontecimentos do dia-a-dia. Sendo assim, precisava arrumar algo para passar o tempo, algo que me sustentasse ligado diante daquela escuridão.
Resolvi ler as minhas mensagens de celular.
Abri a primeira, e ela me dizia sobre uma garota que conhecera há alguns meses, com a qual não tive oportunidade de me relacionar como deveria. Ela era bonita e agradável, sempre cheirando a flores. Uma amiga. Talvez ela quisesse mais do que isso, mas eu tinha medo de arriscar. No escuro e no silêncio, pensava no quão grandioso um pseudo-relacionamento com tal pessoa poderia estar naquele instante, mas ele não existia, e possivelmente não existiria durante a vida toda, graças ao medo da perda e do vazio. Como amiga, ela sempre estava ali, sempre estaria. De resto, não conseguia imaginar nada.
Algo estalou em meu apartamento. Apontei a luz do celular, até então voltada para meu rosto, para a porta de meu quarto, iluminando parcialmente o corredor que me guiaria até a cozinha. Não havia nada.
Voltei à posição original e fui para a próxima mensagem.
Ela era de uma antiga pretendente. Anos antes, senti algo muito forte por ela. É estranho tentar compreender os sentimentos, não é? Eu a amei, ou sei lá, o mais perto disso que minha mente me permitiu chegar. Depois, quando as coisas deram errado, tudo escorreu pelos dedos, vazando pelas frestas como água. Todas as promessas se perderam em novos lábios, novos abraços, e o tempo passou como passaria de qualquer forma. O relógio não espera por ninguém. Eu percebi que não gostava tanto dela assim. Percebi que deixei de amá-la com facilidade. Agora, quando a reencontrei, percebi que talvez estivesse enganado. Eu notei que nunca antes senti nada por aquela pessoa. Agora, no entanto, o coração palpitava em sua presença. Isso era um bom sinal, ou uma pequena loucura de reencontro, descontrolando o entendimento do teatro iniciado pelos pensamentos?
Ouvi um barulho estranho, outra vez.
Apontei a luz para o corredor, e lá estava a minha gata. Ela tinha um rato morto na boca. O sangue escorria por seu pelo branco, manchando seu rosto e seus bigodes. Eu a xinguei, e ela correu, deixando o cadáver do animalzinho ali, à frente de meu quarto.
Tive a impressão de escutar passos, mas sempre me confundia quanto à distância dos ruídos. Eles poderiam estar ali, ao meu lado, ao mesmo tempo em que poderiam estar no apartamento de baixo, no vizinho, no prédio da frente.
Os pelos de meu braço eriçaram.
Voltei os olhos para o celular, li a terceira mensagem.
Era de um amigo. Um ex-amigo, quem sabe. Isso realmente existe? Ele me ofendia. Tomara as dores de um relacionamento que terminou de maneira errônea, comprava uma briga que não existia. Eu nunca me deixo levar pela irritação. Nunca levantei a voz para ninguém que desmerecesse, raramente o faço para quem merece, na verdade. Fico ali, na minha, calmo como sempre. Mas há tantas mentiras quanto pessoas, e elas afastam-nos de quem é volúvel aos boatos. Mentiras se espalham como veneno, saídas da boca de pessoas sujas, da imundice repugnante de víboras com pernas e braços, serpentes que podem sorrir e enganar. Elas não matam, mas ferem por dentro, marcam sem cicatrizar. Assim eu me indagava sobre o provável ex-amigo, sobre a vida que ficara para trás, sobre tudo o que passamos juntos e, ao fim, tentava acreditar que um amigo não se perde, e que se o estava perdendo, talvez ele nunca antes fora um amigo de verdade.
Ouvi passos, e dessa vez tive certeza de que estavam ali, bem pertos.
Mirei a luz para o corredor. A gata não estava lá.
Também não estava lá o rato.
O que existe de tão peculiar na escuridão? Aquilo que nos faz acreditar ver coisas, ouvir barulhos, que nos faz pensar no improvável e no inacreditável. Eu adorava filmes de terror, mas estar na cena de um deles não me era agradável. Ali, no escuro, eu pensava em minha vida, no que fiz e no que hei de fazer, e me sentia vazio. Não estava vazio, é claro, mas assim me sentia, como uma bexiga furada, deixando todos os temores escaparem enquanto eu murchava no lugar, incapaz, fraco e infantil. Ri da incompetência de meus pensamentos, recompondo-me. Quanta bobeira. Aquilo era apenas uma falta de luz, nada mais. Não havia ninguém ali.
Algo passou nas sombras, oscilando a luz de meu celular. O tempo do display chegou ao fim, e ela se apagou. Acionei o botão novamente, a luz retornou, não havia nada.
A sensação era estranha. Eu me sentia vazio, e agora, acompanhado. Mirei as bordas da cama, ninguém. Mirei o teto, a janela cerrada, o computador e a televisão desligados, nada. O corredor, outra vez, sem sinal da gata e do rato. Ela provavelmente o pegou, arrastando-o numa brincadeira cuja finalidade era indizível. Ela o levou, tinha sua companhia, e eu fiquei sozinho, sozinho no escuro, sem nada de útil para pensar.
Mudei para a quarta mensagem, mas ela se fechou antes que eu pudesse fazer algo.
A bateria chegara ao fim.
Ouvi passos, novamente. Um miado, distante, e o barulho das garras de meu animal de estimação. Ela faria uma bagunça com o sangue do rato, eu sabia. Minha mãe ficaria brava e a xingaria, e ela se esconderia embaixo da cama, e eu riria de algo cuja graça inexiste. Por que estava pensando naquilo tudo? Era o escuro, claro. O escuro ofusca os pensamentos. Eu deveria pensar nas provas da semana seguinte, nos resultados da semana anterior, mas não, pensava no rato e na gata, em minha mãe e suas reações.
Sacudi o rosto, ainda ouvindo barulhos. Eu estava cansado, era isso. No completo escuro em que estava, sequer me arriscava a levantar, temeroso de acertar algo das proximidades. Fiquei ali, tentando refletir se deveria arriscar algo com a amizade diferenciada que encontrara, tentando encontrar defeitos num relacionamento que terminou sem razão, buscando um meio de me vingar daqueles que espalhavam calúnias sobre minha pessoa, por mais que repugnasse a vingança. Esqueci das provas, esqueci da cama, concentrei-me no escuro. Quantos problemas encontraria ali, no silêncio? Quantos gritos calados me fariam tremer e arrepiar?
Não sabia se meus olhos estavam abertos ou fechados.
Passos.
Olhei para os lados, a visão era a mesma: escuro. Luzes apagadas, noite sem estrela, olhos abertos debaixo de um cobertor pesado. Escuro, não mais, não menos. Pisquei, forcei os olhos abertos, senti a cabeça doer. Cocei o cabelo, escutei o barulho das unhas nos fios.
E passos, mais passos.
Um miado, então silêncio. Um carro buzinou lá embaixo, acelerando. A rua ainda existia. Eu havia me esquecido. Só me lembrava do escuro.
Alguém gritou algo, um som abafado que trespassou minhas janelas. Era outra pessoa, não eu. Outras pessoas também existiam. Eu não era o último homem, não era sozinho. Mas estava sozinho. Sozinho no escuro, no silêncio, sozinho numa noite emudecida, sob uma coberta negra e vazia, uma lacuna da inexistência. Por quanto tempo ficaria assim, calado na vontade de gritar?
Abri a boca, tentei falar algo, a voz me falhou, ou talvez tenha saído e eu não a escutei.
Outros passos.
Algo caiu na cozinha, o metal tilintou no chão duas, três vezes, estacou. Uma faca, talvez? Um garfo? Uma panela pendurada para secar? Era minha gata, claro. Ela sempre fora bagunceira. Ela sempre fora complicada, sempre criou problemas.
Ela estava ali, ao meu lado, deitada. O rato morto estava em sua boca, sobre o lençol limpo de minha cama.
Ela o mastigava.
Coloquei-a no chão com seu novo brinquedo, ela correu para longe, sumiu de minha vista, e tudo era escuro outra vez. Encostei-me à parede, o frio me arrepiou a espinha. O silêncio era uma música, e ela cantava sem alegria, cantava de maneira tediosa e branda, como um sussurro melódico, uma sinfonia cadavérica. Lembrava-me a trilha sonora de um cemitério, por mais que isso soasse bizarro de se pensar.
Olhei para o lado, a gata estava ali outra vez. O rato não estava mais com ela.
A porta de meu quarto sacudiu, como se empurrada. O metal rangeu conforme a madeira deslizou no chão.
Havia alguém ali.
Eu me peguei tremendo. Ela estava ali, aquela pessoa. Eu pude ver a sua sombra. Eu pude sentir sua respiração, pude ouvir seus dedos estalando. Sabia que ela estava ali. Eu poderia me preocupar com a minha vida, com a minha segurança.
Ao invés disso, preocupava-me com as palavras que saltaram até a ponta de minha língua e, pelo medo, foram engolidas outra vez, engolidas para nunca mais se aventurarem.
O Eu te Amo, o Vá Embora, o Fique Comigo, tudo me passava pela cabeça, tudo girava num turbilhão. Sentia-me incapaz de resolver qualquer problema, pois problema algum escaparia da escuridão. Eu estava ali, no escuro. Não mais sozinho.
Não mais seguro.
Passos.
Ela se aproximava. Eu não sabia o que fazer. Queria gritar, voz não havia. Apertei o celular algumas vezes, a bateria não faria milagre algum. Eu me escorei na parede. Respirei, uma respiração pesada, pois só então percebi que segurava o ar dentro de mim. A respiração que tocou meu rosto era outra. Tão quente, tão manhosa, tão serena.
Você está bem?
Eu abri os olhos, o escuro não estava mais lá. Minha mãe mexia em meus cabelos, bem próxima. Percebi que suava frio.
Respondi que sim, que estava, e ela me disse que a luz voltara algum tempo atrás. Estava tudo bem agora. Tudo estava certo, e eu tinha a luz, tinha o mundo outra vez. Liguei a televisão, deixei o som me acalmar outra vez.
Tudo estava certo. Eu não tinha motivos para ter medo. Voltava a pensar em minhas provas, nas notas e nos resultados, deixando de lado a sorte no amor, as mentiras, as intrigas, a covardia dos infames, o medo de arriscar e errar. Pensar em tudo aquilo não me levaria a lugar nenhum.
Desliguei a televisão, apaguei as luzes e parti para meu banho. No caminho, a gata afagou minha perna, e eu a acariciei. Ela parecia estar com saudades. Brincou algum tempo antes que eu me fechasse no box.
Eu ri de meu receio pelo escuro. Nunca antes me senti daquela maneira. Era uma grande bobeira, não era?
Sim, eu era um grande idiota.
Contei a minha mãe, horas mais tarde, que a nossa gata caçara um rato em sua ausência, e ela me perguntou em que dia isso aconteceu. Que estranho. Acontecera agora há pouco! Procurei pela casa, mas não encontrei sinal de rato algum. A gata não parecia ter sangue nos pelos e nos bigodes, como vira anteriormente.
Resolvi me deitar, apagar as luzes e fechar a porta.
Sozinho no escuro, conseguia pensar em meus próprios problemas, sem ter de recordar que minha gata estava no veterinário com a minha mãe, e não ao meu lado, não caçando ratos, não ronronando em minha perna.

Anime - Bakemonogatari

Há algum tempo, voltei a assistir alguns animes que tinha abandonado meses atrás, e esse é o caso de Bakemonogatari. São somente 15 episódios, eu sei, mas o tempo é complicado por aqui, ainda mais conciliando trabalho, faculdade e escrita. É tenso. Ontem consegui terminá-lo, enfim, e o resultado foi incrível! Os cinco últimos episódios me motivaram a escrever esse pequeno texto sobre a série e, bom, é melhor começar do início, hehe.
Bakemonogatari é um anime baseado numa série de Light Novel, cada qual apresentando um caso das Singularidades, lendas orientais que tomam conta dos personagens, criando assim situações bizarras e perigosas, como é o caso do Caranguejo que anula o peso de uma pessoa, do Macaco que lhe garante forças e descontrole, do Gato que cria uma segunda personalidade com base no stress reprimido, coisas do tipo. É fantasia, sim, mas ela também conta com uma boa dose de situações do cotidiano, e esse é um dos pontos fortes da série. Apesar de se focar em somente um garoto, rodeado por mulheres estranhas, como de costume, Bakemonogatari não precisa apelar para conteúdo abusivo ou de índole duvidosa. Ele conta o que tem de contar, com uma animação que, particularmente, achei extremamente criativa, apesar de se basear em sequências de imagens velozes, textos, fotos de paisagens reais e pessoas reais e também imagens sem nexo algum. Tudo isso auxilia na criação do clima sombrio e insano que circunda o cenário das Singularidades.
O personagem principal, Araragi, é um vampiro, um pseudo-vampiro, um meio-vampiro, ou como preferir. Vinculado a ele, temos a pequena Shinobu, uma garota que precisa estar perto dele para que possa usar seus poderes, se alimentando de seu sangue vez ou outra. Araragi é o exemplo prático de 'bonzinho-só-se-fode', sempre disposto a ajudar todo mundo, o que não faz dele um protagonista banana, muito pelo contrário. Vemos situações que muitas vezes acontecem na vida real, que aproveitam-se da ficção para criticar a atitude de certas pessoas em momentos chave.
Há referências, sangue, efeitos bons, diálogos que prendem, cenas inertes, ou seja, existe de tudo em Bakemonogatari. Ele tem episódios que realmente prendem sua atenção, pois uma piscadela errônea pode custar todo o entendimento da cena. Bakemonogatari tem 15 episódios, e já conta com uma segunda temporada, Nisemonogatari, a qual eu comecei a assistir também. É altamente recomendado para quem busca uma obra inteligente, sério. Ela tem um excelente roteiro e, apesar de não contar com cenas de lutas frequentemente, possui um gráfico e uma produção que deixa incontáveis shonem para trás. Recomendadíssimo!
Até a próxima!

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Web Novela - A Melancolia de Raymond - 11


XI

Era uma noite como outra qualquer, grotesca, fedorenta, silenciosa e escura.
Mas era o meu aniversário, e eu ali completava dezessete anos, o que não era tão importante. Minha mãe não mais se recordava disso. Eu não poderia culpá-la, de fato, ela tivera a mente destruída pela podridão dos atos que ruíram minha família. Nunca senti falta, no entanto. Um parabéns não era algo que me faria sorrir, que me deixaria feliz.
Eu caí quando o skate deslizou, e isso era algo raro. Percebi que estava desconcentrado, fora de mim. Meus olhos vagavam nas estrelas, no céu escuro, no irreal. Eu quase pude sentir um abraço confortável em meus ombros. Estranhei aquela sensação.
Foi quando eles apareceram.
Havia fogo em suas mãos.
Não fogo de fogaréu, um fogo miúdo e singelo. O fogo de velas. Duas delas, dezena e unidade, formando a idade que eu completava naquela noite. Camila carregava um bolo apresentável, Robert aplaudia num ritmo exótico. Eles cantaram uma velha canção de aniversário com meu nome, fizeram rimas toscas, me desejaram felicidades e mandaram que eu assoprasse as velas, mas não sem antes fazer um pedido. Eu fechei o rosto, mas estava feliz. Por dentro, estava feliz demais, até. Nunca imaginei que algo assim pudesse acontecer, nunca em minha vida acreditei que algo tão simples fosse capaz de me satisfazer de tal maneira a ponto de quaisquer problemas parecerem apenas riscos de grafite numa folha em branco.
Anda logo, faça seu desejo! Eles me apressavam com graciosidade.
Eu não sabia o que pedir. Tinha tanta coisa, ao mesmo tempo em que não tinha nada para desejar. Qual era a minha maior vontade? Qual era o meu maior sonho? Pensando dessa maneira, percebi que me conhecia tão mal quanto os dois que sorriam enquanto me esperavam escolher.
Pensei no quanto desejei que as coisas ficassem assim, mascaradas de maneira alegre, como se a guerra inexistisse, como se o mundo fosse um bom lugar. Decidi que o meu desejo seria o de sempre, o tradicional, aquele que todo mundo pede, mas que ninguém recebe.
Pedi para ser feliz, para que tudo ficasse bem, então soprei as velas, assistindo a fumaça carregar para as nuvens as esperanças que eu tinha daquela baboseira interferir em minha vida.

Dia do Escritor


Eu sempre gostei de escrever.
Desde pequeno, quando mal sabia contar as primaveras de minha vida, eu amei as palavras. Admirava as letras que se uniam para compô-las, entoando uma canção sem ritmo, certas vezes rítmica demais, declamando poemas de rimas ou sem elas, e eu as admirava ali, sentado com um livro aberto nas mãos, ainda com dificuldade para ler todos aqueles universos. Era tão maravilhoso imaginar, deixar a mente correr solta, livre e desimpedida, alcançar limites muito além dos meus, limites nascidos da imaginação de outros, de infindáveis autores cujos esforços permitiram nobres proezas que me guiavam ao infinito, em ida e volta, em puro êxtase.
Um dia, decidi me aventurar. As palavras ainda eram inimigas, obviamente, mas eu já as riscava em folhas brancas, dobradas ao meio, contava meus clichês em tantos pontos e vírgulas que mal se podia ler, mas eram minhas histórias, meus dizeres, vidas e mais vidas saídas de minha imaginação, dobradas numa boneca de livreto, tão falsa e tola, tão linda e amável. Eu não era bom, não era nada, mas era feliz, feliz demais, e mais feliz me tornava a cada nova história, a cada nova folha dobrada, a cada caneta que se acabava.
Foi quando me aventurei, de uma vez por todas, num mundo só meu. Era uma terra grandiosa, grande até demais, e ela abrigou dezoito meses de emoções, garantindo-me adrenalina num roteiro sem estrutura, que me surpreendia a cada novo capítulo, e lá estava ele, tomando forma num manuscrito que, hoje, é mais do que um tesouro, algo que guardo em minhas gavetas como a maior riqueza que hei de possuir. Oitocentas páginas mostraram-me que sim, eu poderia ser como eles, poderia ser um deus em meu próprio mundo, e então eu o fiz, e continuei a fazer, e decidi que para sempre o faria.
Escrevi mais e mais, escrevi muito, por mais que poucos lessem. Amigos críticos, companheiros virtuais, leitores em sites de postagens digitais, eu fiz o possível, eu fiz mais que o possível, eu fiz  o que tinha vontade de fazer, e fiz por gostar, não por esperar nada em troca, e decidi que sempre seria assim e que, por ser assim, seria melhor. Escrevi e escrevi até os braços doerem, os dedos latejarem, a mente pulsar pelo clímax de desfechos e brechas soltas, de pontas de livre continuidade e introduções melancólicas, por situações aterrorizantes e por amores correspondidos, ou não correspondidos, ou deixados ao vento pela perda iminente.
Eles morreram, eles viveram felizes para sempre, eles encontraram ou desencontraram aquilo que mais procuravam, mas eu sempre encontrava o que procurava, pois procurava por eles, por personagens, por companheiros, por vidas que inexistiam, mas para mim sempre existiriam, nobres e impuras, tão vívidas quanto o mais real dos reais seria incapaz de ser. Enquanto eles morriam e viviam, eu sorria e chorava, com eles, por eles, por todos, e os via chorar e sorrir, como um filme, como uma peça de teatro, como um amontoado de letras, palavras, frases e parágrafos.
Eu era um pai, mas um pai de filhos incontáveis, um pai de deuses e guerreiros e de seres mais velhos que eu, um pai realizado e orgulhoso de todas as suas proles. Eles não me agradeciam, não viviam por mim, mas eu vivia por eles e os agradecia por cada conquista, por cada vitória, por cada plano maquiavélico; agradecia-os por respirar quando as páginas eram viradas. A cada final de dia, quando meus olhos se fecham no repouso, ainda os vejo, vivos e mortos, felizes e tristonhos, realizados ou sem esperança, cada qual em seu mundo, em sua localidade, com culturas variadas, manias peculiares e vestimentas atípicas, cada qual com sua existência inexistente, com seus amores e ódios, com suas revoltas e glórias.
Por essas e outras —por filhos, por mundos, por problemas e soluções de tantos universos —eu amo o que faço, e o faço por amar, mais do que tudo, a liberdade que somente as palavras podem garantir. Por essas e outras, por tudo aquilo que realizei e hei de realizar na vida, mantenho-me na trilha do escritor, no rumo dos contadores de história, no caminho imaginativo daqueles que sonham acordados, que deslumbram o irreal em suas realidades, que fazem do surreal o existente, material nas mãos de cada leitor, estampados virtualmente nas páginas de um blog ou site, sólidos, rígidos, densos, tão leves quanto uma pluma carregada pela brisa.
Por essas e outras, por todas essas e por todas outras, que os incito e motivo a escrever, a ler, a viver a fantasia de fantasiar a vida. Sejam escritores ou leitores, tenham sonhos ou vontades, parabenizo a todos pelas letras, pelas frases, pelas criações, e aplaudo de pé cada nova cena, cada nova alegria e tristeza em nossas crias, cada vingança completa, cada amor encontrado. Aplaudo o fantástico, a ficção, pois somente assim toda a sua irrealidade se torna real, vive ao nosso lado, inspira, respira e transpira por mundos e universos que, por mais distantes que sejam, vivem abaixo de um mesmo céu.
Parabéns a todos pelo dia do escritor.

Taubaté, 25 de julho de 2012.
Rodolfo Santos

terça-feira, 24 de julho de 2012

Web Novela - A Melancolia de Raymond - 10


X

Um dia Robert me disse que queria escrever uma história sobre a minha vida.
Como assim?, eu perguntei. Não há história em minha vida. São dias desolados, sem emoção alguma. Quem leria uma obra tão catastrófica e bizarra?
Ele deu de ombros, indiferente, e disse que escreveria ainda assim. Me perguntou se eu leria, e eu confirmei, obviamente. Não por vontade. Por educação, por admirá-lo como pessoa, não como escritor, por ser seu amigo. E por se tratar de uma coisa sobre mim, é claro, o maior de todos os fatores. Eu pensei tudo aquilo, mas disse a ele apenas que sim, eu leria, e ele me disse que, nos tempos atuais, já seria o suficiente.
Às vezes, quando eu me sentia sozinho (o que, em suma, era a minha realidade na maior parte do tempo), contava a Robert sobre Camila. Ele a viu uma vez, quando eu a ensinava algumas manobras básicas de skate. Disse que ela parecia uma patricinha sem rumo e sem personalidade, mas eu a defendi, erroneamente. Era isso o que ela era: uma filha de ricos fujões, movida por um modismo que a levou até o abismo, já que nada da estética e da moda sobrevivera ao caos do conflito. Mas eu a defendi mesmo assim.
Então ele riu, babaca. Disse que eu estava apaixonado, e eu respondi com o dedo médio em riste. Eu não estava apaixonado! Ela era somente uma garota magricela! Eu tinha sexo quando tinha vontade, encontrava alguns dólares na rua e alugava uma prostituta ou comprava uma revista pornográfica de um mendigo qualquer, sei lá. Quem precisa de uma mulher? Quem precisa de uma companheira fixa?
Refletindo sobre isso, vi o quanto ela me fazia bem. Ela estava lá, ao meu lado, conversando sobre as coisas que eu mais gostava, ou o que sobrara delas. Como Robert, que era meu amigo, meu melhor amigo. Como ele, porém em menos tempo, em meses, como ele fazia há anos. Seria verdade? Eu estava mesmo sentindo algo por ela?
Disse a mim mesmo que não, e então me virei, mas não sem antes escutar a piadinha infame sobre o livro da minha vida se tornar um belo romance dramático de merda. Acenei um foda-se para Rob, e então parti, vagando pensativo no quão sofrível poderia ser a vida de meus amigos, ingênuos quanto à mágica que habitava minha existência, se a caçada que marcou meu corpo fosse guiada de modo a ferir aqueles que me circundavam.
Eu precisava ser forte.
Precisava defendê-los, como não pude fazer ao meu pai e à minha mãe.

segunda-feira, 23 de julho de 2012

Web Novela - A Melancolia de Raymond - 9


IX

Aquele era mais um dia em que minha mãe tinha seus surtos.
Eram frequentes, cada vez mais, cada vez piores. Ela se atirava contra as paredes, gritava coisas sem sentido, chamava por meu pai, por mim, implorava para viver. Eu imaginava que, em suas alucinações, ela era obrigada a assistir àquela cena outra vez, ao massacre que levou meu pai de seu leito, que mutilou nossa família com uma dor que jamais cicatrizaria.
Quando a via assim, sentia pena, mas não fazia nada.
Eu ficava ali, sentado, dominando os brinquedos que eram minhas únicas companhias, deixando-a gritar no banheiro, trancada, como louca que era, e sua cela era aquela, seu quarto de sanatório, fedendo a uma descarga de funcionamento duvidoso e aos esgotos que vez ou outra vomitavam suas imundices pelo ralo. Ficava ali por horas, presa como um animal e, quando ela saía, seu corpo tinha marcas, sangue e hematomas que me lembrariam por semanas de um novo dia em que sua sobrevivência fora testada.
Insana como estava, minha mãe era incapaz de utilizar a magia. Eu a retirava de lá, ainda trêmula, auxiliava na restauração de seus ferimentos. Confesso que nunca fui bom em magias de cura e recuperação, mas fazia meu melhor, e ela não reclamava. Jamais reclamaria. Era aquilo que a mantinha viva, na realidade.
Enquanto eu cuidava dela, ela repetia um nome em murmúrios, um nome que eu jamais me esqueceria: Caraway.
Eu nunca o conheci. Na verdade, possivelmente o vi uma vez na vida, e só. Não me lembrava de seu rosto, de sua voz, de suas expressões, de nada. Me lembrava de somente uma coisa: eu o odiava. Eu tinha de odiá-lo, tinha de desejar sua morte com todas as minhas forças, e minha vida era assim, feita de ódio e de dias negros, sem escolhas, sem vontades. Caraway era um velho cão de guerra, um bruxo de tenebrosidade sem igual, um dos cabeças daquela guerra escrota que ocorria além de minhas janelas, e também dentro delas. Era ele o responsável pelos problemas de minha cidade, de meu estado, talvez de todo o mundo.
Era ele o responsável pela morte do meu pai.
Minha mãe suspirava, chorava um pranto doloroso, mas ainda assim me dizia que tudo ficaria bem, que ela me amava mais do que tudo, que nós passaríamos por aquilo e seríamos felizes outra vez.
Então ela dormia, e sonhava, mas eu sabia que sonho algum seria tão improvável quanto aquelas palavras de conforto.

sábado, 21 de julho de 2012

Web Novela - A Melancolia de Raymond - 8


VIII

Eu tinha minhas dúvidas sobre o que era o amor.
Quando eu estava ao lado de Camila, não me restava dúvida alguma. Ele falava coisas sem nexo, divagando sobre tolices e frescuras, de pares de sapatos a cores de vestidos, de efeitos de alucinógenos a sabores de bebidas alcóolicas, nada útil, nada belo.
Só ela.
Uma vez, quando ela me pedira para andar de skate, o brinquedo traiçoeiro, como ela chamava, a derrubou. Ela caiu por falta de prática, obviamente, mas jamais aceitaria tal fato. O asfalto rústico lhe marcara os joelhos, deixando seu sangue correr livre. Eu me ajoelhei aos eu lado e, com um pano não tão limpo quanto deveria estar, comecei a limpá-los.
Não era exatamente a coisa mais romântica, mas eu me senti diferente. Ela cheirava a incenso mais do que a perfume. Incenso de ameixa, chutei. Me peguei imaginando se o seu sangue teria o mesmo gosto do meu, metálico e intenso, e achei isso bizarro. Ela me perguntou no que eu estava pensando, e eu disse a verdade, preparado para escutá-la me chamar de nojento, mas ela riu. Disse que eu era interessante. Diferente demais, estranho demais.
Nada demais.
Eu terminei de limpar seus joelhos e ela se levantou, pronta para ir embora. Deu dois tapas no meu ombro e sorriu, uma despedida que achei masculina demais, coisa que nunca diria a ela, claro. Perguntei se deveria acompanhá-la, por motivos de segurança, nada além disso.
Então ela me beijou.
Seu beijo tinha gosto de ferro, mas eu acho que era somente minha imaginação.
Quando ela terminou, me deu outros dois tapas nos ombros, sorriu, e disse que eu era um merda. Eu não entendi, mas fiquei admirando seu rebolado magricela conforme ela se afastava.
Naquela noite, roubei oitenta dólares e gastei mais duas horas com outra prostituta.
Minha primeira concepção de amor dizia que ele era uma babaquice sem tamanho, que nos fazia gastar dinheiro e dava vontade de transar.
Descobri, muito depois, que não estava tão errado assim.

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Web Novela - A Melancolia de Raymond - 7


VII

Eu fui assaltado várias vezes, mas nunca tive medo.
A reação era uma escolha. Eu podia derrubar um criminoso com a magia, podia torturá-lo e furtar seus pertences; às vezes o fazia, às vezes não. Corria, me afastava, desaparecia na noite, ou era apanhado e golpeado até que o sangue escorresse, e então vasculhavam minhas roupas, constatavam que eu nada tinha e cuspiam em meu rosto, como despedida.
Agora, era diferente.
Atrás de mim havia um mago. Não um garoto em sua provocação, não um valentão disposto a ironizar-me; um mago de verdade. Ele me perseguia, ameaçava, jorrava sua feitiçaria nas paredes ao meu redor, e a mágica era real, era perigosa e persistente, explosiva e devastadora. Ao meu redor, restavam marcas da destruição, cicatrizes da desolação de seus desejos que tomavam formas e cores.
E eu fugia, com medo.
Foi quando cheguei a um beco sem saída. Encontrei o escuro, minha respiração estacou. Eu procurei uma saída, um jeito com o qual eu pudesse escapar, em vão. Ele surgiu, sorrindo com seus lábios partidos pelo frio, e eu me virei, despreparado, pois ninguém se prepara para a própria morte.
Ele poderia ter me matado naquele momento, mas não o fez.
Sua magia me derrubou, me fez contorcer, e eu agonizava mais a cada segundo, incapaz de resistir àquele castigo criado pela vontade de um homem poderoso. Enquanto eu sofria, ele me observava, examinando algo que eu falhei em deduzir. Girei no lugar, aos prantos e gritos, escorei-me numa das paredes para tentar esticar as pernas, tossi como cão sem dono enquanto sustentava um esforço abrupto para manter a consciência e, acima de tudo, a sanidade.
De súbito, ele parou. Riu alto, se virou e foi embora, deixando-me ali, como se nada fosse, pensando com meus botões no motivo incoerente que o impedira de me tirar a vida. Ele era mais forte, mais ágil; ele era mais.
Eu não era nada.
Ofegante, me pus em pé, limpando as roupas com os braços, e só então percebi que uma luz castanha e ferrosa se dissipava em meu torso. Levantei as roupas, encontrando um símbolo irreconhecível, sem significado algum, e só entendi a situação que me cercava: eu não fui alvejado para a morte.
Ele me marcou.
Agora sim eu seria um alvo.

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Crônica - A Dor das Mulheres


A Dor das Mulheres

Ele repetia sem se cansar os comentários sobre a sua beleza.
Ela os escutava sem emoção alguma nos olhos. Eram palavras, nada mais. Palavras sem sentido, de significado fútil, cuja razão e objetivo de existirem eram somente a fornicação casual que lhe seria oferecida após uma cantada barata. Sendo assim, ela escutava tudo em silêncio, e cada um de seus pensamentos era intangível e imperceptível.
Ambos se sentavam numa mesa circular, bebericando cervejas geladas numa noite mais gelada do que qualquer cerveja poderia estar. A música ambiente era abobada, um ritmo de jazz antigo que agraciava os ouvidos, ao contrário daqueles elogios perversos e tomados por desejos infames. Sentados ali, como um casal, eles sabiam seus nomes e suas virtudes, talvez alguns de seus defeitos, e só. Eram recém-conhecidos, transeuntes do viver, amigos que se fizeram por meio virtual e que, ali, tinham interesses bastante distintos.
Ele a admirava. Aquela mulher à sua frente era bonita, com caracóis avantajados no cabelo, um brilho gracioso nos olhos e maquiagem na medida correta de sua aparência de boneca. Ele a via como gente, mas dedilhava seu corpo imaginariamente, transformando-o em números; medidas de busto, de cintura, de quadris, um possível celular com o qual trocariam mensagens sobre o sexo da noite anterior, outros mais.
Ela o admirava, mas de uma maneira diferente. Sentia o palpitar de um coração vívido, excitado pelas coxas exibidas na curva da saia, escutava o sangue deslizar nas trilhas de veias sujas, manchadas por uma ansiedade espermática. Sentia sua vida, aquela vida porca e de desuso frequente, respirava o mesmo ar impregnado pela existência de um ser cuja malícia e podridão eram deveras inadmissíveis para o universo que o circundava.
Enquanto tinham seus pensamentos ilegíveis, conversavam sobre homens e mulheres.
Ele era machista, fácil de perceber. Tinha o costume de apontar defeitos em atitudes minimalistas, criticar detalhes e minúcias, expurgar o sentimentalismo de cenas cujas propriedades eróticas deveriam transpor as barreiras do ilícito ato da cópula, do coito, da copulação inconsistente de emoções cicatrizadas num murmúrio desvairado pela náusea do libido. Ela tomava de seu copo, lambia os lábios, e isso tirava a concentração dele, fazia-o respirar de forma branda, baixar os olhos num disfarce de funcionalidade duvidosa, enrolar a franja no indicador enquanto assoviava uma melodia cuja rítmica se perdera num labirinto de nudez e perversão. Então ela dizia sua opinião, e ele escutava, assentia, concordava, mas sequer sabia o que lhe fora dito um segundo antes; sabia apenas daquele sorriso, da voz sinfônica, do palavreado de canto agradabilíssimo, das madeixas despencadas sobre a pele enuviada, das bochechas femininas ruborizadas por um frio desumano. Sabia disso, em detalhes e pormenores, e não sabia de mais nada.
Ela o provocou, seduzindo-o com um toque de dedos, uma carícia de suas unhas, crescidas mais do que de costume. As mãos dele tremiam, abraçadas parte ao copo, parte à alma que lhe tentava rasgar a pele e se afugentar. Ele se viu corar no reflexo dourado da cevada, e ali veria seu futuro, caso houvesse algo a ser visto.
O corpo respondeu a estímulos, e assim ambos se levantaram, ele pagou a conta e ela agradeceu, encenando uma discussão sobre o feminismo de dividir o custeamento de uma noite como aquela. Jogaram-se no banco de couro de um automóvel, ele dirigiu, alvejava um motel barato. Ela mandou que ele parasse no breu, disse que sua cama eram os becos de luz inexistente, ele viu a adrenalina exaltar na mente. Estacionou sem se importar com distâncias ou segurança, apagou os faróis, entraram ambos num recuo tão noturno quanto o céu que lhes cobria o erro; escoraram-se nas paredes, impacientes, e ela o beijou, e seu beijo era uma tortura de tão delicioso, por pouco não o forçando a implodir seu clímax. Ele deixou suas mãos correrem livre, guiadas pelo instinto previamente abandonado em cavernas, milênios atrás, mas ele estava todo ali, sedento pelo desejo, em descontrole e frenesi, idolatrando a perdição de ver a vida tresloucar-se como nunca antes vira.
Quando o êxtase lhe fez romper o zíper com as mãos bárbaras, ela estacou. Apoiou suas unhas rubras em seus ombros e se aproximou, em vagarosa sedução, soprando alucinada os ouvidos que lhe desejam, pois o corpo todo lhe desejava, e sua pergunta era o quão forte seriam os homens, o quanto suportariam tais seres pútridos, incapazes de se igualar às fêmeas, incapazes de respeitá-las como existentes, de não vê-las como objetos utilizados para ejaculações e nada mais, e ele não soube responder, pois se mostrava como todos os outros, se portava como homem, como porco animalesco que era, e mesmo que soubesse não o faria pois, ao ouvi-la perguntar sobre a dor das mulheres e a fraqueza dos homens, postou o membro rijo para fora de suas vestes, deixando de lado quaisquer monólogos que aquela vadia estivesse disposta a manter.
A noite terminou cedo.
Da mulher, restara sinal algum, bem como do veículo. Desapareceram na neblina, antes mesmo do sol sonhar com seu nascer, antes mesmo que ele alcançasse o repouso que lhe faz brilhar durante as manhãs.
O homem, no entanto, jazia ali, inerte e gélido. Despido numa nudez arroxeada, tinha os braços e as pernas amarrados em distância surreal, e um corte sorridente lhe rompia o estômago. Havia, em seu interior, um amontoado de carniça que, ao longe, pareceriam quaisquer coisas, mas nunca o que realmente eram.
Fetos.
Morrera ali, como fraco que era, inepto a sobrepor, do mesmo que sobrepujou, a dor sofrida por uma mulher.